quarta-feira, 1 de dezembro de 1999

Um modelo para a história da historiografia brasileira: a contribuição de José Honório Rodrigues (1949/1988)

José Honório Rodrigues 
(1013/1987)
Por volta de 1976, quando a profissionalização do historiador ainda principiava em grandes centros universitários, alguns profissionais da área já se preocupavam – e escreviam – sobre as condições de possibilidade de uma história da historiografia brasileira.[1] Nilo Odália e Raquel Gleser foram alguns dos profissionais que reclamaram por uma reflexão epistemológica acerca do saber em questão. Ambos estavam também interessados em examinar as práticas do ofício e, no dizer de Raquel Gleser, importava tanto o “saber” – a teoria da História – quanto o “fazer” do historiador. Os autores paulistas concordavam, ainda, em relação à qualidade e aos obstáculos impostos a esse tipo de trabalho: o excessivo biografismo, a precariedade dos instrumentos de pesquisa, a inexistência de conceitos de modelos de análise historiográfica. Gleser e Odália também tinham a mesma opinião quanto às iniciativas sérias e promissoras do gênero: o trabalho, desenvolvido por José Honório Rodrigues, sedimentava-se, então, como a mais importante referência. (Cf. Odália, 1976; Gleser, 1976).
Passados mais de 20 anos, as questões por eles levantadas  continuam atuais. No momento em que a história da historiografia ganha foros de especialidade e até status de “laboratório” do saber histórico, percebe-se que a busca é muito mais por um programa que por modelos de análise simplesmente. Mas, como chegar aos limites dessa especialidade sem antes refletir sobre os modelos esboçados – direta ou indiretamente – por aqueles que se propunham narrar as formas com as quais o conhecimento histórico vinha sendo produzido no Brasil? Como avançar sem dialogar com os primeiros sistematizadores acerca da definição utilizada, o objeto privilegiado, os métodos os critérios de escolha, os objetivos e a função de uma história da historiografia?
Este artigo pretende examinar tais questões e construir as bases que ponham em diálogo a tradição e as novas aquisições e necessidades da história da historiografia. Não é trabalho de expurgo do “velho” para ressaltar a “novidade”. É uma tentativa de distanciamento daquilo que se transformou no verdadeiro estigma da disciplina: a idéia de se estar sempre começando do zero. Este texto examina parte dos escritos de José Honório Rodrigues, o primeiro e talvez o único – nas dimensões que tomou a sua obra – grande sistematizador de uma história da historiografia brasileira. A análise estará voltada para os títulos considerados como os mais representativos em relação à temática em foco. Começará com a parte teórico-metodológica, passando pelo “breviário” do seu pensamento – as teses que defende sobre a história do país –, encerrando com os trabalhos especificamente voltados para a história da historiografia, tanto na forma de ensaios reunidos, quanto em trabalhos orgânicos. Ao final deste artigo, pretendo obter uma “síntese ideal” da postura de José Honório em relação à definição e aos limites desse campo que, junto a outros trabalhos, contribuirá para a reflexão, em bases atualizadas, sobre o programa e as possibilidades de efetivação da história da historiografia no/do Brasil.
O primado do método
Descontados os diversos sentidos que o termo “profissionalização” do historiador venha a tomar em cada um dos conhecidos marcos estabelecidos pela história da historiografia (1934, 1937, 1961 etc.), parece clara a contribuição de José Honório nesse sentido. Foi grande a luta, empreendida em vários estados do Brasil, contra o autodidatismo, em favor da coletivização dos métodos e da pesquisa, pelo inventário e avaliação da escrita histórica, produzida desde o período colonial a meados da década de 1980. Municiando-se para esses combates, José Honório planejou o “tríptico” teoria, pesquisa e história da historiografia, visando à profissionalização do historiador brasileiro, a exemplo do que acontecera na Alemanha (primeira metade do século XIX), na França (segunda metade do XIX) e nos EUA (virada do século XIX para o século XX).
Teoria da história do Brasil (1949) é o nosso primeiro grande manual de “Introdução à história” e guarda estreitas ligações com os manuais fundadores de Bernheim na Alemanha e de Langlois e Seignobos na França. Teoria também é fruto de seus contatos com a metodologia dominante na historiografia universitária norte-americana, no período em que foi contemplado com uma bolsa de pesquisa da Fundação Rockefeller. Na Universidade Colúmbia (1943/1944), José Honório participou do curso “Nature, methods and types to history”, dirigido por Charles Cole, tendo como colaboradores, os professores Henrry Steele Commager, Jacques Barzum e Allan Nevins. O livro, que discute questões como o significado da palavra história, a cientificidade da disciplina, periodização, fontes, gêneros, ciências auxiliares e metodologia, resulta do entusiasmo despertado pelo curso e do seu desejo de “tentar reformar o ensino superior de história.” (Rodrigues, 1985, p. 16).
Nessa obra, o “método” – ou “metodologia”, José Honório oscila entre os dois termos – “é o conjunto de princípios que presidem o trabalho histórico em suas várias fases.” (Rodrigues, 1969, p. 222). Esses princípios são: 1. descobrir, colher as fontes; 2. criticar – crítica externa (data, local autor e autenticidade), restituir o texto ao original, e crítica interna ou de credibilidade; 3. interpretar; 4. narrar. O exercício destas tarefas prepara “a formação do historiador, tal como a gramática é indispensável ao conhecimento da língua.” (idem, p. 223). Com a difusão desse método, José Honório afirma sua pretensão de “libertar a história do diletantismo, do autoditatismo”, substituindo “o agir intuitivo, o agir empírico pelo agir reflexivo” (idem, p. 229, 223), conduzindo, assim, a disciplina ao status de ciência.
A “ciência” da história, segundo Rodrigues, mais que um instrumento para a função educativa, mais que objeto do prazer intelectual, é um tipo de conhecimento fundado na compreensão. O seu produto serve para minimizar o egocetrismo, alimentar a tolerância – diante da diversidade cultural – para o autoconhecimento humano e como orientador da ação no presente. “Assim como nos libertamos dos nossos problemas, estudando-os em suas origens e desenvolvimentos, assim também conhecendo a historiografia agimos e atuamos melhor.” (Rodrigues, 1949, p. 20).
Essa tarefa paradigmática de “compreender” o presente pode ser percebida por toda sua obra e, especificamente, em Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico político. (Rodrigues, 1965). Publicado em meio ao turbulento 1964, o livro representa uma das suas tentativas de buscar no passado as raízes dos males que afligem o país. Os males – demandas por terra, educação e saúde, nosso subdesenvolvimento econômico e o arcaicismo político social – estariam plantados na dissociação flagrante “entre o Governo e o Povo, entre o Poder e a sociedade.” (idem, p. 75). Na raiz deste aparthaid social, estaria o caráter ambivalente que singulariza o povo brasileiro: “a massa indígena e negra, mestiça e cabôcla foi essecialmente conservadora e ora conformada, ora inconciliável nas relações políticas e sociais.” A liderança [do Povo] caracterizou-se desde os tempos coloniais por uma atitude conciliadora, arcaica e personalista, evitando os excessos, as rebeliões. Assim, para Rodrigues, o passado brasileiro é uma alternância entre a “lentidão rotineira” e as interrupções caóticas; o processo histórico apresenta-se, pois, como incruento e, ao mesmo tempo, entrecortado por espetáculos bizarros, plenos de sangue, “ensopando” o chão do Brasil. Ocorre que essa tragicidade, segundo José Honório, não tem sido registrada pela “historiografia tradicional,” caracteristicamente “triunfante e oficial”. Frente a essa situação, faz-se necessário “revelar os aspectos menos óbvios da situação presente, oculto aos olhos descuidados.” (idem, p. 11).[2] A escrita do historiador não deve “falar em nome da Tradição mas da Verdade.” Deve ser viva, combatente, libertadora de consciência, integradora do país na relação passado-presente-futuro (Rodrigues, 1984, p. 38-39). Em síntese, esta [nova] história deve cessar de “engrandecer as elites e empequenecer o povo. Pois, é com ele, [o Povo], com suas virtudes e seus erros, que temos de contar para fabricar o destino brasileiro.” (idem, p. 13).
Depois de sumariamente indicados o método, a concepção e a função estratégica da escrita da história, não seria inoportuno perguntar ao autor que sentido teria uma história dessa historiografia em suas obras estritamente teórico-metodológicas. A Pesquisa Histórica no Brasil, além de ser um complemento à metodologia exposta em Teoria da história do Brasil, é, também, um bom exemplo de como seria o terceiro trabalho da tríade teoria, pesquisa e historiografia. No segmento intitulado “A evolução da pesquisa pública histórica brasileira,” José Honório examina a produção dos Institutos Históricos, dos historiadores ligados a instituições governamentais e de iniciativas individuais. Mas, a ênfase nesse livro recai sobre a pesquisa – entendida como a descoberta e o emprego correto da documentação e o desvelamento dos fatos. Não há, portanto, uma discussão aprofundada acerca da história da historiografia. Sobre este ponto, permanece a caracterização esboçada nos “Diversos gêneros da história,” onde José Honório assegura um lugar para a história da história – no “tipo História cultural, intelectual e das idéias” – juntamente com a história da literatura, arte, ciência, música, imprensa e opinião pública e das idéias econômicas sociais e políticas. Na terceira edição da Teoria (1969), os “tipos” de história transformam-se em “gêneros”, e a história da história permanece classificada como uma “espécie” da “História cultural, intelectual e das idéias”. Todavia, nessa mesma edição, há uma defesa explícita da autonomia da disciplina “historiografia” nos cursos universitários. “A historiografia, a história do escrito histórico, a história da história, a história do pensamento histórico, das principais tendências dos historiadores é uma disciplina universitária adotada em toda parte. Pôr em contacto os jovens estudantes com seus predecessores, revelar as direções principais, é uma forma prática de ensinar a história, tanto quanto possível, ensinar a escrever a história.” (Rodrigues, 1969, p. 455).
Produzindo a história da historiografia brasileira
O projeto de redigir uma história da história do Brasil era bastante amplo, estando programada a inclusão de seis volumes em sete tomos. Na “Introdução” de “A Historiografia conservadora” (1988), José Honório anunciava o conjunto de trabalhos que formaria esse projeto: Oliveira Viana, Historiografia Liberal, Católica, Republicana e Positivista, do Realismo ao Socialismo e, ainda, a Historiografia estrangeira sobre o país. Infelizmente, os problemas de saúde levaram-no a interromper o trabalho, sendo encerrado esse projeto com o volume 2, tomo 2.
Apesar do esforço em constituir trabalhos sistemáticos de “história da História” ou “historiografia”,[3] a contribuição de Rodrigues deve ser buscada muitos anos antes, no período da publicação da Historiografia e bibliografia do domínio holandês no Brasil (Rodrigues, 1949) e de uma série de coletâneas inauguradas com Notícia de vária história (1951).
Na “explicação” da obra sobre o domínio holandês no Brasil, ao caracterizar o empreendimento, Rodrigues sugere o que deveriam ser [ou em que efetivamente se transformariam] os seus trabalhos futuros em matéria de “historiografia”: uma “tentativa sistemática de classificação bibliográfico-crítica de um certo acontecimento da história do Brasil.” (Rodrigues, 1949, p. XII). O autor também sugere que esse “inventário”, uma “humilde tarefa”, talvez não fosse, a sua época, um trabalho de grande notoriedade para os historiadores.
Seguindo o enunciado pelo título, José Honório divide o livro em “historiografia” e “bibliografia”. Na “bibliografia” são  agrupados,  indutivamente,  em relação ao evento – o domínio holandês no Brasil –, livros, folhetos, histórias gerais e regionais e coleções de tratados. São obras, segundo o autor, “puramente históricas” ao lado de trabalhos que discutem “a questão mais teórica que histórica” – hipóteses sobre origem do capitalismo, por exemplo – e de obras de história literária – literatura stricto sensu influenciada por fatos históricos –, de história natural e médica, etnografia e artes.
O sentido que toma o termo “historiografia” é, na parte do livro que a ele se refere, um conjunto de obras que trata de determinado tema ou fase “histórica”. Este termo dá origem a construções do tipo: literatura histórica, historiografia sobre os holandeses no Brasil, historiografia portuguesa, historiografia da guerra dos 80, entre outros. Nesse “conjunto de obras”, estão incluídos os mesmos elementos selecionados para a “bibliografia”, alvo dos comentários de José Honório. São exposições críticas menos sistemáticas que as elaboradas na segunda parte – “bibliografia” –, orientadas pelo seguinte protocolo: temática ou período histórico e, dentro deste, a relação de autores e obras; ponto de vista do autor examinado – a favor dos católicos e lusitanos, anti-holandês; indicação de virtudes e vícios –, leitura recomendada, obra que já deveria ser esquecida...; estilo – seco e fiel, correto e agradável, oratório...; dados biográficos sobre o autor; uso da obra e comentários de outros historiadores; localização da obra e indicação de outras edições e de bibliografias que as referenciaram. Neste mesmo segmento do livro – “historiografia” –, aponta-se a principal contribuição proporcionada pelos trabalhos dessa natureza. Para Rodrigues, importaria “assinalar aquêles [livros] de maior valor, [e] indicar os que têm sido injustamente considerados como valiosos, sem que nada lhes justifique o renome.” (Rodrigues, 1949, p. 6). Tomada como uma atividade, a historiografia seria uma espécie de depuração da escrita sobre um tema: uma tarefa que tem atraído, tanto o interesse de estudiosos sérios, quanto a cobiça de antiquários e “a opinião de muito intelectual desocupado de assunto.” (idem, p. 3).
Antes de examinar os trabalhos, intitulados como “história da historiografia”, é preciso verificar como o autor enfoca o tema nas diversas coletâneas que publicou ao longo da carreira. Esses “ensaios historiográficos” são numerosos. Resultam de conferências, comunicações, introduções, prefácios e artigos jornalísticos produzidos entre 1951 e 1986. Em notável artigo sobre a importância de José Honório para a historiografia brasileira, Francisco Iglésias aponta pelo menos 12 títulos que reúnem esse tipo de trabalho. (cf. Iglésias, 1988, p. 55-78).
Nessas coletâneas, classificadas por Iglésias como “ensaios historiográficos”, nem sempre é possível colher uma posição regular de José Honório acerca do objeto privilegiado de uma história da historiografia. Tomados os cinco títulos mais significativos, percebi que o autor, na maioria dos casos, refere-se à atividade como um estudo sobre as “maiores figuras,” as “mais representativas da historiografia brasileira.” (cf. Rodrigues – prefácios de 1965 e 1970). São esses estudos críticos – iniciados freqüentemente por indicações biobibliográficas – que examinam a posição político-ideológica dos autores, a metodologia empregada, o estilo, a riqueza da interpretação. Em História e historiadores, por exemplo, José Honório sugere que tais ensaios são uma espécie de preparação para a História da historiografia Brasileira, “um plano largo e sistemático de levantamento bibliográfico e de interpretação crítica que ainda exigirá alguns anos para sua completa execução.” (cf. Rodrigues, 1965, p. 7).  Mas, nessas coletâneas, há trabalhos que diferem um pouco da tipologia autor-obra e, apesar de contribuírem para a “evolução da disciplina”, não são classificados pelo autor como “ensaio historiográfico.” Estão fora dessa rubrica, por exemplo, alguns artigos sobre “os estudos brasileiros e os brasilianistas”, classificados como “ensaios histórico-políticos”; estudos sobre as tendências e interpretações da historiografia brasileira; e as reflexões acerca do ofício do historiador no Brasil – metodologia, interdisciplinaridade, etc. (cf. Rodrigues, 1982, p. 54-83; 1966, p. 48-100; 1985). De qualquer forma, nessas coletâneas de ensaios sobre temas diversos, continuavam firmes e coerentes a defesa das “teses” sobre a história do Brasil, a necessidade de profissionalização do historiador brasileiro – difusão do método – e a proposta de uma escrita ligada às questões do presente – ao presente do “Povo” brasileiro.
Depois de vários desses ensaios, em 1978, o projeto sistemático de uma história da história do Brasil foi efetivado. O “prefácio” do volume 1, Historiografia Colonial (Rodrigues, 1979, p. XV-XX), é um dos poucos espaços onde José Honório teoriza sobre essa atividade. A “história da história” é vista como a “análise crítica da evolução do pensamento e da forma da escrita histórica”. Diz ainda que o “estudo da historiografia representa (...) a libertação da disciplina em relação à “história literária” (história da literatura) e aos seus exames baseados em critérios estilísticos e estéticos. “A obra histórica deve ser vista e examinada como obra histórica, pelo seu valor intrínseco, como contribuição ao desenvolvimento de sua disciplina.” (idem, p. XV). Nesse mesmo texto, Rodrigues anuncia os grandes precursores da “história da história”: Capistrano de Abreu (1878, 1882), Alcides Bezerra (1927) e Sérgio Buarque de Holanda (1951). (idem p. XV-XVI).
Como critério básico para a seleção dos objetos nessa obra, José Honório distinguiu o documento histórico – “formado no momento exato do acontecimento” – do historiográfico – “concebido em várias épocas sucessivas ou contemporâneas”. Mas, como aplicar tal critério “quando nos defrontamos com uma historiografia tão rudimentar e pobre (...) como dos séculos XVI e XVII”? (idem p. XVII). A solução é flexibilizar os critérios e aceitar, no exame da historiografia colonial, tanto “os escritos acabados na forma da descrição ou da interpretação (...) relatem ou não fatos do passado ou se limitem ao seu presente” (idem, p. XVII) – documentos que tenham o título de Crônica, Relação, Descrição Memorial, Narração –, quanto as biografias de historiadores e os instrumentos de trabalho histórico do tipo bibliografia, genealogia ou compêndio biográfico.
A segmentação da “Historiografia Colonial”, diferentemente da que foi adotada na Historiografía del Brasil (1957/1963), publicada no México –, não é diacrônica. José Honório optou por agrupar os autores e textos por temas: “Historiografia dos invasores”, “Historiografia do Maranhão”, “Historiografia Econômica e Social”, entre outras. A análise, em alguns casos, parece seguir os rudimentos da crítica histórica, mas o caminho adotado por Rodrigues inclui a biografia e a bibliografia do autor; descrição do livro; comentários sobre o método, o estilo, concepção de história, julgamento e precauções sobre o uso da obra; indicação das edições e opinião dos demais historiadores.
Nessa obra, os “estudos historiográficos” são vistos como relevantes para o desenvolvimento da “história”, como área distinta do conhecimento e como contribuição à formação intelectual engajada.
A narrativa histórica, seja a crônica conjuntural, seja a história estrutural, é um produto final do empreendimento histórico de cada geração e, por isso, serve também para esclarecer as opiniões das minorias intelectuais e para compreender os trabalhos e sacrifícios da gente brasileira. (idem p. XIX).
Em A historiografia conservadora (Rodrigues, 1988), o termo historiografia continua a significar um conjunto de obras sobre um período ou tema ou, simplesmente, a escrita histórica. José Honório deixa subentendido que uma “história da história” efetiva-se por intermédio de produtos, como o “ensaio historiográfico” e a “crítica historiográfica” (idem p. 172-173) e tem por objeto os homens, as concepções político-ideológicas e a materialização destas em obras relevantes para a interpretação do passado brasileiro. O livro é estruturado em três partes – historiografia conservadora; monarquista; reacionária e contra-revolucionária – iniciadas com justificativas acerca da classificação adotada para a inclusão dos respectivos autores. Assim, dando a entender que a função principal da “história da história” é julgar o valor das obras e dos autores para a interpretação do passado do Brasil, José Honório começa a análise pelo exame da biografia do historiador, as concepções político-ideológicas e seus reflexos na escrita da história. Descreve e avalia como o autor explorou determinadas temáticas – o povo, os vencidos, o nacionalismo – e o quanto direcionou a abordagem para o social e o econômico. Avalia também as teses, a consistência da argumentação, o trabalho em relação ao que se produzia no período do lançamento e a repercussão da obra no ápice da carreira, no ato e depois da morte de seu autor.
O tomo 2 da História da história do Brasil (1988) é inteiramente dedicado à produção de Oliveira Viana. Tanta atenção assim a um só autor tem suas razões. Além da repercussão como grande pensador entre as décadas de 1920 e 1950, Francisco José Oliveira Viana é considerado por José Honório como o “responsável intelectual pelo movimento estado-novista de 1937 e pela contra-revolução de 1964.” (Rodrigues, 1988, p. 3). Por isso mesmo, os parâmetros da crítica, a contra-argumentação e o “julgamento” dos trabalhos de Viana são baseados nas “teses” de José Honório sobre a “história do Brasil”, comentadas anteriormente.
A exposição obra a obra, às vezes capítulo a capítulo, segue a ordem cronológica dos lançamentos. É aberta por breves comentários sobre a formação intelectual, a personalidade de Oliveira Viana, oferecendo uma visão sobre o conjunto da sua produção. Nesse tópico, Rodrigues justifica o emprego da expressão “ultra-conservador”, aponta as virtudes interpretativas, os equívocos metodológicos e critica o quadro teórico utilizado por Viana. Em todo o livro, não há economia de qualificativos. O autor é caracterizado como racista-arianista, alienado, apologista da ditadura, do militarismo e das elites. Para o analista, Oliveira Viana “não pesquisa”. Sua obra é compilada, e as “suas citações não obedecem às normas usuais entre os melhores estudiosos” (Rodrigues, 1988, p. 17) – e isso, quando Viana faz referência às fontes, o que são casos raros. Rodrigues reclama ainda que Oliveira Viana especula demais e comprova de menos; faz uso do “se”; trabalha com “leis” durante a interpretação – “que não existem no campo da história nem das ciências sociais” (idem, p. 33); e baseia-se em cientistas de segunda ordem como Le Play, seu “pai espiritual”. Todos estes equívocos teórico-metodológicos levam José Honório a destituí-lo do status de historiador, considerando-o, depreciativamente, um “sociólogo” ou um “pseudo cientista social”.
Conclusão
Se a “ciência histórica” está fundada na interpretação, se cada geração produz a sua própria história e se essa escrita “deve responder às perguntas concretas que o processo histórico levanta” (Rodrigues, 1965, p. 22), a história da historiografia, responsável por estudar o desenvolvimento da escrita histórica – configurada nas obras do “gênero história” –, sendo parte da ciência histórica, também deve obedecer aos mesmos objetivos e seguir as mesmas estratégias anunciadas acima. Se José Honório não o colocou explicitamente, pelo menos foi o que pude perceber em sua prática e foi desta forma que cheguei ao que chamo de um “modelo ideal” composto por: definição, objeto, método e função da história da historiografia.
Apesar dos vários e nem sempre coerentes empregos que faz dos termos “história” – obras de história/todo o passado humano/ciência histórica – e “historiografia” – inventário, conjunto de obras de história/estudo sobre as obras de história –, as expressões “história da história” e “historiografia” e seus equivalentes menos freqüentes – história do escrito histórico, história do pensamento histórico, história das principais tendências dos historiadores – são responsáveis por nomear uma disciplina universitária de caráter autônomo, circunscrita/filiada à “História cultural, intelectual e das idéias”, que se ocupa da crítica do trabalho produzido pelos historiadores e da “ciência histórica” em geral.
O objeto é a escrita histórica configurada em texto impresso, em seus diferentes “gêneros” – história geral, local, da ciência, literária, política, da arte, biografia –, formatos editoriais – livro, folheto –, estilos – oratório, seco –, níveis de pesquisa – descritivo, analítico, interpretativo – e temporalidades – relatos contemporâneos aos acontecimentos ou não. Há, porém, o critério da representatividade do autor em meio aos seus pares contemporâneos ou futuros e da relevância da obra para a interpretação do passado brasileiro. O objeto por excelência é o texto impresso, mas em uma análise de conjunto pode vir a ser a trajetória de um determinado autor, de um grupo – brasilianistas –, de um tema – holandeses no Brasil – ou de uma corrente política – conservadora.
No que diz respeito ao método, com algumas modificações que acompanham o tipo de objeto analisado, o autor cumpre tarefas básicas, como o levantamento bibliográfico, a informação biográfica, extraindo desta a posição político-ideológica do autor e, por consegüinte, o ponto de vista expresso no texto. Seguem-se a descrição da obra e a análise crítica propriamente dita. Nessa parte, são indicados os vícios e virtudes do objeto examinado a partir do bom ou mau uso que faz do “método histórico” – coleta de fontes, crítica histórica, interpretação, e exposição. Além do “método”, são julgadas a temática, as teses e a contribuição para a ciência e para a formação da consciência histórica dos brasileiros. Por fim, são indicadas a localização do impresso, as outras edições, as bibliografias que a incluem e a fortuna crítica do autor.
Como fontes para esse trabalho, são mobilizados quaisquer instrumentos que possam informar sobre o autor e obra, estando entre os mais utilizados as bibliografias, dicionários biobibliográficos, genealogias, resenhas, biografias, autobiografias, boletins bibliográficos, catálogos e o comentário dos historiadores “mais representativos”. A história da historiografia também tem a sua função. Ela é fundamental para a formação da “consciência” e o desenvolvimento da “ciência histórica”, pois julga, esclarece e indica ao estudante e ao público em geral o que se deve ler para conhecer o passado do Brasil. A história da historiografia ensina, por meio dos bons exemplos, indicando “como se deve escrever a história”; afasta obras e autores valorizados indevidamente; e reforça e estimula a formação do intelectual engajado. A prática da história da historiografia também contribui para o fortalecimento de si mesma como disciplina – história da historiografia. Sua prática e seu aperfeiçoamento vão afastando os diletantes e incompetentes do campo, aqueles que eventualmente se aventuram em analisar a obra dos historiadores.
Não cabe neste artigo uma apreciação crítica do modelo extraído das principais análises de José Honório Rodrigues, tarefa que será tomada coletivamente a partir dos resultados obtidos com as diversas leituras sobre outros sistematizadores da história da historiografia brasileira, atualmente em curso. Mas, pelo menos alguns elementos altamente positivos para o campo, delineados por José Honório, devem aqui ser apontados. O primeiro diz respeito à iniciativa do autor em distanciar a sua análise dos clássicos critérios dos historiadores da literatura. O outro, está relacionado à passagem progressiva do seu trabalho de uma bibliografia histórica para a história da historiografia. Depois, e ligado a essa “passagem”, vem a sua atitude de fazer uma história da historiografia dentro da história e, ainda, a defesa explícita dessa atividade como uma especialidade. Por estes e por muitos outros motivos há que se concordar com a opinião de Francisco Iglésias a respeito de José Honório Rodrigues: “Quem tiver, à maneira dele, o gosto pela reconstituição da trajetória historiográfica patrícia, deverá dedicar-se à análise de quanto escreveu ... Por diversas sejam as perspectivas do futuro autor ... de certo seu trabalho será sempre o ponto de partida.” (Iglésias, 1988, p. 78).
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Um modelo ideal para a história da historiografia brasileira: a contribuição de José Honório Rodrigues (1949/1988). Rio de Janeiro, dez. 1999. 
Fonte das imagens
José Honório Rodrigues - <http://www.academia.org.br>.
Capa do livro História da historiografia brasileira -< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000300008>
Referências
GLESER, Raquel. O fazer e o saber na obra de José Honório Rodrigues: um modelo de análise historiográfica. São Paulo, 1976. Tese (Doutorado em História) - FFLCH, Universidade de São Paulo.
IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia Brasileira. Separata de: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 55-78, 1988.
ODÁLIA, Nilo. Formas do pensamento historiográfico brasileiro. Separata dos Anais de História e Psicologia de Assis. n. 8, 1976.
RODRIGUES, José Honório. Historiografia e bibliografia do domínio holandês no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional/Ministério da Educação e Saúde, 1949.
__________. Teoria da história do Brasil: introdução metodológica. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S. A., 1949.
__________. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
__________. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1965.
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__________. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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Notas:
[1] Utilizo as expressões história, historiografia e ciência histórica com os respectivos sentidos de: passado conhecido da humanidade; escrita da história, exposição do conhecimento histórico; área de conhecimento, ramo das ciências humanas.
[2] Citação de R. G. Colingwood sem indicação da referência completa.
[3] No volume 1, relativo à “Historiografia Colonial” (1979), essas duas expressões são empregadas com o mesmo sentido. Ver o “Prefácio”.