terça-feira, 30 de janeiro de 2001

Um Modesto contador de escravos

O trabalho no canavial. Desenho de Ciborg, Aracaju, 2008.
Os estudos relativos à "produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais" ainda são escassos em Sergipe. À grita de José Calazans (1973), sobre essa lacuna, responderam Diana M. F. Leal, Lenalda A. Santos, Milton de Araújo, Sônia S. Batista, Ibarê Dantas, Terezinha Oliva e Maria Thetis Nunes. De forma sistemática, e com maior esforço empírico, Maria da Glória Santana Almeida esboçou "uma visão de conjunto do evolver econômico do Estado" (Sergipe: Fundamentos de uma economia dependente - 1984) que foi aprofundada após uma década em Nordeste Açucareiro (Aracaju: UFS/Banese, 1993).
Desde então, a vida material tem sido descortinada através de um diálogo bastante fecundo entre historiadores e economistas locais, à luz de problemáticas clássicas da historiografia especializada. O livro Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no Nordeste açucareiro - Sergipe 1850/1930, editado pela Funcaju em dezembro passado, é também resultado desses contatos entre professores universitários sergipanos e o prestigiado Instituto de Economia da Unicamp.
A novidade de Reordenamento do trabalho pode aqui ser duplamente qualificada: primeiro, pelos novos elementos fornecidos à historiografia clássica sobre temas ligados à estrutura fundiária, agrária, mão-de-obra, e capitais nordestinos; e, depois, pelas luzes lançadas sobre a experiência de alguns segmentos sociais sergipanos no período 1850/1930 como os trabalhadores livres pobres, os escravos e os senhores de engenho.
A respeito do debate historiográfico em que se insere a tese, não é demais relembrar que o problema da transição trabalho escravo/trabalho livre vem sendo interpretado a luz de modelos generalizantes inaugurados por Celso Furtado no final dos anos 1950. Para esse autor, nos locais onde as terras agricultáveis estivessem sob o monopólio de latifundiários haveria, com o fim do escravismo, uma transformação automática dos antigos escravos em trabalhadores assalariados.
Apesar das diferenças internas (e em relação ao pensamento fundador de Furtado), a historiografia especializada chegaria a algumas conclusões auxiliares sobre a gênese das desigualdades econômicas entre o Nordeste e o Sudeste. Dentre as mais importantes estariam as seguintes: 1) houve participação efetiva dos proprietários nordestinos no tráfico interprovincial de escravos; 2) foi patente o descompromisso desses senhores com o sistema escravista - apoiando, inclusive, muitas medidas abolicionistas; 3) as taxas de emigração dos nordestinos para outras regiões do país, após 1888, foram muito baixas. Essas e outras conclusões parciais conduziram os historiadores da economia a sentenciar que o Nordeste não enfrentou o problema da mão-de-obra.
Munindo-se de censos, inventários, correspondências, anúncios de jornal etc. (um dos diferenciais dessa obra em relação à pesquisa especializada dos anos 1930/1960), o professor Josué chegou a conclusões diametralmente opostas constatando que, no caso sergipano, a "transição" esteve longe de ser tranqüila. Em primeiro lugar, as propriedades açucareiras não constituíam latifúndios e nem os senhores de engenhos monopolizavam a Zona da Mata (terras mais férteis). Em seguida, constata a importação de escravos de outras Províncias e outras regiões para a Zona da Mata sergipana. Por fim, comprova a crença dos proprietários locais na vitalidade do escravismo através da constatação das baixas taxas de alforria e da grande concentração de escravos nas áreas agrícolas.
Desmontando a última conclusão da historiografia especializada, o autor demonstra que no período de estagnação da economia açucareira - 1900/1920 - foi enorme o contingente de emigrados sergipanos, sobretudo, para regiões Norte e Sudeste. Tais contrapontos servem, portanto, para afirmar que a "transição" foi, sim, um problema enfrentado pelos proprietários locais. E estes, por sua vez, tentaram desvencilhar-se criando instrumentos coercitivos e persuasivos que obrigassem à população pobre e livre a disponibilizar a sua mão-de-obra.
Ao contrário do que possa imaginar o "não especialista", acerca de uma obra de história econômica, os números e tabelas não foram condição suficiente para refutar premissas hegemônicas da historiografia clássica. Os indícios "extra-econômicos" buscados na esfera das idéias, ganharam relevo para demonstrar as motivações e atitudes dos principais agentes acerca do ordenamento do trabalho: homens livres e pobres e grandes proprietários.
Em relação aos segmentos "dominantes" da sociedade, deve-se destacar que nem sempre senhores de engenho e plantadores de cana estiveram em sintonia com as autoridades do governo, apesar da forma oligárquica e predominantemente rural que imperou na política sergipana. Quando o Estado tentou implementar medidas razoáveis e progressistas em relação ao desenvolvimento de Sergipe, como o registro, delimitação das terras e cobranças de impostos com base no uso do solo, houve recusa dos proprietários.
Entre os intelectuais, as mesmas contradições, relativas à (trans)plantação tardia de alguns elementos do processo civilizador, também podem ser detectadas. Isso demonstra que as "plantas" do humanismo, da ilustração e do liberalismo sofreram um penoso estágio de aclimatação em terras de Serigi.
Sobre os ex-escravos, especificamente, o silêncio das fontes e historiadores ainda impera. Apenas há indícios de que teriam se transformado em trabalhadores livres ligados às culturas de subsistência. De forma genérica, o livro do professor Josué demonstra como esse segmento (além dos trabalhadores pobres do período escravista) apropriou-se das terras inservíveis para o cultivo da cana-de-açúcar e aí subsistiu relativamente independente do mercado.
Após a abolição, os grandes proprietários resolveram lançar mão desse "exército agrícola de reserva para a plantation" utilizando, entre outros mecanismos, a normatização (com proibição pura e simples em muitos casos) da caça, pesca, coleta, manutenção de pequenas roças, criações e de algumas formas de lazer. A repressão ao modo de vida de parte da população e os protestos desse "campesinato marginal" contra as medidas legislativas e coercitivas geraram farto discurso em relação ao que hoje poderíamos chamar de "direito à preguiça", como também às definições de "vadiagem" e "vagabundagem" (sentidos contemporaneamente impressos na exigência policial da carteira de trabalho do cidadão comum que circula em grandes centros urbanos após as 22 horas).
Com as crises da agroindústria açucareira, o processo de modernização dos engenhos e a expansão da pecuária, os homens pobres estariam, por fim, subordinados aos proprietários rurais. Todavia, surge a alternativa da emigração massiva em busca do eldorado na Amazônia, São Paulo e sul da Bahia, desencadeando mais contradições tanto no seio dos proprietários rurais quanto dos intelectuais. Com isso, nasceriam novas explicações acerca de um fenômeno quase transformado em estigma: o caráter essencialmente migrante, "aventureiro" e "desgarrado" do povo sergipano. Estas são, em síntese, as maiores contribuições da obra do professor Josué.
Como nada pode ser perfeito, o acesso do leitor a esse valioso repositório sobre a experiência sergipana é prejudicado pelas "desafinações" da indústria editorial. A exemplo do ocorrido em Para conhecer a história de Sergipe (T. A Oliva e L. A. Santos - 1998), a Gráfica Opção portou-se com total desrespeito à produção local e à sua própria clientela. Páginas do Reordenamento foram excluídas, a reprodução dos mapas é de má qualidade e, ainda, texto e folhas do livro variam de tonalidade. São notas dissonantes, com certeza. Vale apenas o protesto do leitor, mas vale também a compra do livro, antes que seja transformada em obra rara (como sói acontecer com alguns textos sobre a história local).
O trabalho do professor Josué, na palavra de um não especialista em economia, é isso que foi aqui apresentado e alguma coisa a mais. Deverá ser incorporado aos próximos livros didáticos locais e, "se descoberto em tempo" (pelos formadores de opinião da região Sudeste), poderá desencadear uma série de pesquisas sobre espaço mais amplo, o Nordeste, alterando, quem sabe, um parágrafo nos livros didáticos de história do Brasil. Enquanto isso, o autor, que destila no texto fina ironia em relação aos seus pares, prossegue, de palestra em palestra afirmando-se um modesto contador de escravos

Para citar este artigo:
FREITAS, Itamar. Um modesto contador de escravos. Jornal da Cidade, Aracaju, 30 abr. 2001


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para conhecer o sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.