quarta-feira, 4 de julho de 2001

Verdades sobre jornais

Certa vez, numa daquelas discussões pueris no Restaurante da UFS, sobre as competências e os limites entre as disciplinas, um estudante de jornalismo estufou o peito e interpelou-me: “E vocês historiadores, que sobrevivem à custa dos nossos escritos, ainda não se convenceram de que sem jornal não há conhecimento histórico?” Naquele momento, entusiasmado com a ampliada noção de fonte histórica, introduzida pelos Annales, procurei responder à altura. E com as mesmas amabilidades. Hoje, depois de cinco anos de “formado”, não posso deixar de admitir que aquele arroubo do colega tinha lá as suas verdades. O jornal é mesmo fonte primordial para a escrita da história do Brasil dos séculos XIX e XX. Ele fornece ao leitor um coquetel de informações que abrange as esferas do público (oficial) e do privado; anuncia simultaneamente (e esse é um grande trunfo) como querem ser representados os poetas, governantes, religiosos, cientistas e madames e como devem ser apresentados as pervertidas, os tarados, migrantes, escravos e outros elementos da escória social. O jornal, tanto pode descrever a situação econômico-financeira do Estado de Sergipe durante uma década, como trazer, em quadro próximo a esse, a lista diária dos policiais de serviço em um quarteirão da periferia de Aracaju. Entretanto, apesar da riqueza de dados e diferentemente de como pensava o aprendiz de jornalista – alguns veteranos ainda pensam dessa forma (cf. Carlos Chagas, 2001, p. 10) –, a informação veiculada por esse meio de comunicação não é “o que realmente aconteceu”, não é a “realidade”. Em outras palavras, jornal não é história.
De onde vem, afinal, a força dessa afirmação? Ela tem origem na tradição cartesiana da “crítica de fontes” que vai de Mabillon a Ranke, de Bernheim a José Honório Rodrigues. Logo, nos domínios de Clio, lê-se jornal conservando o imperativo da “dúvida metódica” (Saliba, 1988, p. 1082). Talvez, por isso, os manuais de introdução à história tenham omitido o exame dos jornais dos passos da crítica documental (Langlois & Seignobos, 1946; Commager, 1967; Glénisson, 1991). Quando o fizeram, como José Honório Rodrigues, foram enfáticos: “Pondo de lado o editorial, que é a parte menos digna de fé, a própria notícia e o anúncio devem ser usados com cautela, [pois] o problema crucial não é mais saber quem escreveu, ou o que escreveu [como procede-se em relação aos demais documentos] mas a quem pertence o jornal.” (Rodrigues, 1969, p. 417). E não se trata apenas de pronunciar o velho chavão “nenhum discurso é inocente”. Mestres da historiografia contemporânea não modificam uma letra da afirmação rodrigueana. O “annalista” francês Daniel Roche, por exemplo, confessa que é “muito complicado compreender o contínuo ajustamento [existente] entre as autoridades, os redatores e o público”, sem falar nos períodos onde a censura impera na imprensa (Pallares-Burke, 2000, p. 171). Robert Darnton, jornalista e historiador norte-americano, é taxativo: os jornais não são “janelas transparentes para um mundo que perdemos (...). Eles são coleções de histórias escritas por profissionais dentro das convenções de seu ofício” (Darnton, 2001, p. 7). 
Mas, não se pretende aqui instituir uma cruzada contra os jornais. Muito pelo contrário, o que se deseja é exatamente apontar os benefícios do trabalho com esse tipo de documento. O próprio Robert Darnton vê nas “histórias-notícias” um tipo de narrativa que transmite “o modo como os contemporâneos explicaram os fatos e encontraram algum significado na confusão fervilhante do mundo a seu redor”. (2001, p. 7). Para Asa Briggs, prestigiado historiador britânico, a leitura de jornais é um obrigatório exercício de imersão na época sobre a qual se deseja estudar. Isso “nos possibilita criar um léxico, ao recuperar a linguagem técnica da época, ao perceber quais são os seus conceitos-chave.” (Pallares-Burke, 2000, p. 73). Outros historiadores aconselham aos alunos folhearem os jornais por puro prazer. Sem fazer fichas. Apenas lendo anúncios e saboreando ilustrações. Assim, pode-se aprender muito mais do que examinando um fundo de correspondências, livros de autores clássicos ou teses universitárias. (Thuillier & Tulard, 1989, p. 66). Seja por prazer ou por obrigação, o que importa ao historiador, enfim, é retirar o máximo de informações possíveis sobre os acontecimentos, sobre a formação e a reflexão da opinião pública, sobre os grupos de pressão social e sobre a própria imprensa (Salvador, 1976, p. 90-91), tendo o cuidado, todavia, de contrastá-las com outros tipos de fontes à disposição. Agindo dessa maneira, alargaremos progressivamente a trilha aberta por Gilberto Freyre que, através de recorrências dos anúncios de escravos à venda e fugidos, tentou caracterizar as relações sociais entre segmentos escravos, operários e patriarcais no Brasil (Freyre, 1963). O mesmo pode-se dizer em relação à esfera política. Em nível, local basta citar o exemplo seminal de Ibarê Dantas em O Tenentismo em Sergipe (1974). A identificação de proprietários e redatores, o mapeamento de opiniões e posições político-partidárias cruzadas com as informações colhidas através das mensagens, crônicas e entrevistas foram fundamentais para o desvelamento de uma temática quase virgem, à época, em termos de Brasil.
Mas o que fazer para usufruir dos benefícios do jornal como fonte histórica? Certamente, para pôr em prática alguns dos exemplos indicados nesse artigo, o historiador tem que enfrentar as deficiências dos instrumentos de consulta e os problemas de conservação dos periódicos (Rodrigues, 1982, p. 170). No caso sergipano, a elaboração de inventários, catálogos e listagens dos jornais encontra adeptos antigos e modernos entre os historiadores. Tanto Armindo Guaraná (1908), Clodomir Silva (1920) quanto os trabalhadores do Arquivo Público e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe deram mostras de como facilitar o acesso dos pesquisadores às publicações. O mais recente trabalho do gênero saiu do Curso de Licenciatura em História da UFS. A aluna Márcia Regina de Andrade, orientada pelo professor Francisco José Alves, lançou em maio último, o Catálogo dos jornais estancianos: 1932/2000. Como se vê, não é bem nos instrumentos de busca que reside o nosso grande entrave, e sim, nas formas de acondicionamento e conservação dos jornais.
Vejamos apenas um caso ilustrativo em Sergipe, o da Biblioteca Pública Epiphanio Dória. A instituição tem tradição centenária na guarda e preservação de periódicos. Conserva a principal coleção conhecida sobre jornais sergipanos dos séculos XIX e XX. Como em outros lugares do Brasil, os jornais da BPED também enfrentam os problemas causados pela oxidação e ressecamento do papel, as agressões de alguns consulentes durante o manuseio das “folhas” e, ainda, o preço de tentativas de acondicionamento que se revelaram nocivas à conservação dos jornais. Para os últimos problemas, trabalho educativo, mas, para as questões técnicas, os profissionais do ofício não vêem outra saída senão a microfilmagem do material através de trabalho conjunto do Governo do Estado e da Universidade Federal de Sergipe. Enquanto as políticas públicas para o setor da cultura engatinham, mais de cento e quinze títulos de jornal continuam interditados à consulta pública e muitos outros, em breve, terão o mesmo destino. Para se ter uma idéia do volume desse acervo, basta imaginar uma sala de 20m2 ocupada por dez estantes que armazenam cadernos e pacotilhas de periódicos. A última iniciativa de salvar esse tipo de documento, data de 1997 quando foram disponibilizados trinta e oito títulos em CDs Room (SIMH/SEC). Essa já foi uma excepcional contribuição. O problema é que não são encontrados os CDs no mercado, e os pesquisadores não dispõem de alguns títulos em suporte papel.
Além dessas questões, as deficiências na conservação dos periódicos locais têm gerado um fato bastante curioso. Algumas monografias e dissertações produzidas sobre os séculos XIX e XX (primeira metade) têm se transformado, automaticamente, em fontes históricas únicas e primordiais tão logo são defendidas. Nada contra a “imortalização” precoce desses trabalhos. O problema é que a interdição dos acervos, em muitos casos, acaba inibindo o imperativo da “dúvida metódica” e abortando o surgimento de novos “objetos, problemas e abordagens.” Situações como essa, exigem  que a comunidade (científica e artística, inicialmente) tome posições firmes e mobilize-se em torno da preservação do patrimônio cultural sergipano (incluindo-se aí os acervos de periódicos). Certamente projetos de  microfilmagem ou digitalização de jornais não têm a mesma relevância social do problema da seca ou da falta de pagamento dos pensionistas do IPES. Mas, sem conservar esses mesmos jornais, o cidadão ver-se-á desprovido de argumentos para criticar e recusar os paliativos encontrados por sucessivos governos no combate à seca desde o século XIX e, provavelmente, daqui a alguns anos, nem mesmo relembrará os verdadeiros responsáveis pelos desmandos que levaram à falência o Instituto de Previdência do Estado. Até lá, parte da memória social deverá ter sido rasgada, fragmentada, e apagada juntamente com os acervos de periódicos por falta de espaço, dinheiro, funcionários e de alguma vontade política.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Verdades sobre jornais. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 4-4, 04 jul. 2001.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.