domingo, 30 de novembro de 2003

A República de Balthazar

Governar não é para qualquer um. Não basta ser honesto e culto. É preciso ter senso prático e saber ofender no momento certo. Deveria estar pensando assim o alferes Ataíde, quando zombava do seu colega de administração, o professor Balthazar Góis. “Meu Balthazar, você não dá para isto; seu gênio pacato, seu amor às artes, não lhe permitem que se envolva nos embaraços de um governo revolucionário. Não é melhor estar em sua casa, tratando de seus desenhos, com seu canivete a fazer suas esculturinhas?” (Góis, 1891, p. 107).
Balthazar não foi para casa. Cumpriu suas funções no diunvirato, ao lado de José Siqueira de Menezes até a chegada de Felisbelo Freire, nosso primeiro governador. Depois, reuniu o material publicado na imprensa, atas do clube Republicano de Laranjeiras, ofícios do governo, abaixo-assinados, relatórios, sua correspondência passiva e, talvez o mais importante, seu depoimento sobre os bastidores do poder, enredou-os e publicou um livro intitulado A República em Sergipe: apontamentos para a história – 1870/1889.
Não era sua intenção escrever história. Queria apenas estabelecer fatos inacessíveis aos historiadores do futuro. A idéia era livrar-nos dos exageros que acometem os escrevinhadores de “relatórios, atas, boletins, crônicas e jornais” (idem, p. I). – Somente estabelecer os fatos? Qual o quê, professor Balthazar! O truculento alferes Ataíde pode ter levado muita vantagem na política, mas equivocou-se em relação à sua suposta modéstia e ingenuidade. Não sabia ele que escrever história já era um grande ato político, tanto assim que pouco ou quase nada conhecemos do militar. Enquanto o professor, que repartiu no seu livro os republicanos entre “primitivos”, “oportunistas” e “consumantistas” é tema deste artigo, em pleno século XXI.
A República narrada por Balthazar segue o espírito recifense. Tal sistema de governo era considerado uma fatalidade. Sua formalização em terras sergipanas, uma lei inexorável. A República chegou à América por “revolução”, bruscamente, ao contrário da lentidão evolucionista ocorrida na Europa. Como Sergipe é Brasil, e o Brasil está na América, a republicanização da província eram favas contadas.
Ocorre que essa mesma fatalidade achou de prover Sergipe com elites “incultas” e “pobres de espírito” (idem, p. 8). Essa deficiência, entretanto, foi a desgraça e a ventura do movimento republicano local. Por conta da incúria educacional, a propaganda foi retardada e, certamente, a semente custou a brotar. Mas, bastaram as intempéries climáticas, o não pagamento das indenizações pela abolição dos escravos e a “falta de melhoramentos” no setor agrícola para que os grandes proprietários sentissem “no estômago” os efeitos da gestão monárquica e resolvessem “expeli-la”, como a “um corpo estranho.” (idem, p. 35).
Arguto, Silvio Romero acompanhava os últimos suspiros da monarquia. Do Rio de Janeiro, incentivou o médico Felisbelo Freire a liderar o movimento, e este difundiu o republicanismo desde novembro de 1888 até as vésperas do golpe desfechado por Deodoro da Fonseca, a 15 de novembro de 1889. Com a proclamação, assumem o governo provisório os militantes de proa do Clube Republicano de Laranjeiras, entre os quais, o pacato Balthazar Góis.
Nos triunviratos e no diunvirato, os novos políticos vão tomando conta do poder e, também, cometendo suas primeiras gafes – que fazem parte do aprendizado da arte de governar. Nada muito escandaloso, apenas pouco republicano, como denunciou o jornal monarquista A Reforma: “claros abertos no tesouro por meio de aposentadorias graciosas e duplo provimento na mesma serventia, e mais... a nomeação de uma estranha à classe para a professora da capital; a dispensa do secretário [do Governo] pela prática do mais louvável civismo”. “– Mas o secretário demitido trabalhava sob a máxima do é dando que se recebe”, argumentou Balthazar. Quanto às aposentadorias indevidas e a professora que não era professora... deixa estar. [Nem a Nova República daria jeito, meu caro Balthazar].
Chegou, enfim, o presidente Felisbelo a 13 de dezembro de 1889. Festejado e agradecido, ele anuncia, em seu primeiro discurso, a obra de regeneração idealizada pelos republicanos (pelos republicanos?): “viação férrea, navegação direta [com a Europa...], canalização [dos rios] e organização do ensino.” (idem, p. 132). Presentes, no plano, estavam as aspirações da maioria dos que refletiam sobre a autonomia de Sergipe. Ferrovia, melhoramento nos rios, e navegação direta resumem-se na expressão transporte – que escoaria a produção local. Nosso progresso vinha, então, da terra. Reforma no ensino traduz o imperativo republicano de universalizar o ensino primário, viabilizando a obra da civilização dos costumes – políticos, principalmente.
E o que disseram os colegas e os inimigos de Felisbelo? Conseguiria o governador colocar Sergipe nos trilhos? Ora, esse tipo de fato não foi estabelecido por Baltazar Góis. “Como pintor que dispõe em uma tela só todos os pormenores de seu quadro, não pode o narrador ocupar-se simultaneamente de todos os acontecimentos que lhe servem de assunto. Precisa pois de espaço a espaço interromper-se, voltar, andar lentamente, acelerar, parar, para poder prosseguir”... e de parada em parada, nesse ponto, ele encerrou a história da República. (idem, p. 77).
Felizmente, os historiadores do futuro apanharam as luvas atiradas pelo professor Balthazar e, graças à bela política que é escrever história, o leitor destas linhas não estará desprovido de respostas sobre o paradeiro das coisas públicas, ao menos para o caso sergipano. Sobre a obra regeneradora do regime republicano, é bastante começar lendo os três últimos parágrafos de As eleições em Sergipe, de Ibarê Dantas (2002). Que estranho espetáculo é comparar a trajetória das idéias e dos costumes num período de cento e quatorze anos de história de Sergipe.

Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A República de Balthazar. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 30 nov. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >

domingo, 23 de novembro de 2003

Da Bahia a Pernambuco

Era quase um martírio. Andar descalço pela lama do mangue ou na escuridão da floresta, acossado por índios ou por fugitivos da justiça; atravessar quarenta rios, comer farinha pura, andar cerca de 600 km numa viagem que poderia durar até 90 dias. Esse foi o cotidiano de parte dos coloniais que transitaram entre as capitanias mais prósperas do Brasil – Bahia e Pernambuco – há mais de 400 anos.
No meio do percurso, Sergipe, ou melhor, uma faixa de terra e mar, circunscrita entre os rios Itapoã e São Francisco. Quem morava nesse meio termo, ou nesse fim de mundo? Porcos-do-mato, antas, maracajás, gado, índios.Assim pensavam alguns cronistas holandeses no século XVII. Felisbelo Freire desconfiou dessa pobre representação. Ivo do Prado e Maria Thétis Nunes também. Em 120 anos de historiografia local, o conhecimento sobre a colônia já recuou até o século XVI, precisamente ao ano de 1501. Foi nessa data que os primeiros “sergipanos” índios emigraram para a Europa. (cf. Nunes, 1989 p. 17).
Com o Grupo de Estudos em História de Sergipe Colonial, coordenado pelo professor Francisco José Alves, a tendência é desvelar cada vez mais esses tempos longínquos. O primeiro fruto do Grupo em livro foi editado em [setembro] último, numa parceria entre o Serviço Social do Comércio e o Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. Intitula-se Da Bahia a Pernambuco: viagens entre dois pólos da colonização do Brasil. Em cem páginas, Pedro Abelardo de Santana, o autor, conta um pouco da aventura branca, vivenciada nessa parte da América Portuguesa, no século de Cabral.
O que vinham fazer esses viajantes nessa terra de ninguém? Queriam o pau-brasil; queriam índios para tocar a parte suja da empresa; queriam ganhar almas para Deus. Hoje, é bem difícil hierarquizar as motivações da conquista – ou do descobrimento, ou do genocídio.... Mas, é possível e oportuno exercitar a nossa atitude compreensiva diante do bizarro “espetáculo do crescimento” da colônia lusitana. É isso, também, que o livro de Pedro Abelardo nos propicia, notadamente em seu segundo capítulo – no primeiro, faz-se a contextualização das viagens por meio de um esboço das condições materiais das povoações mais destacadas.
Como tratar das viagens sem transformar a história em compilação das crônicas coloniais? A solução do autor é simples: estender as cartas e relatos por sobre a mesa e aplicar-lhes o mesmo questionário: finalidades, roteiros, duração, meios de transporte, e maiores dificuldades encontradas nos itinerários.
E a teoria interpretativa stricto sensu? É desnecessária. Não esqueçam: é uma mo-no-gra-fi-a de aluno de graduação. Selecionar um conjunto de fontes relacionáveis, aplicar um interrogatório e extrair algum sentido, já é bastante significativo para o trabalho acadêmico nesse estágio da carreira.
E quais os sentidos extraídos que podem enriquecer o conhecimento sobre o passado sergipano, sobretudo? Um dos trunfos do livro está implícito na forma de enredamento. Claro que não era o objetivo do autor tratar de um marco de origem da sociedade sergipense. Mas, como escrevemos e aprendemos história por imagens (a lição é do século XIX), não posso omitir a constatação de que, com esse texto, ficou mais fácil entender o processo de ocupação dessa terra de “porcos-espinhos, antas e maracajás”.
O que ocorre nas últimas três décadas do século XVI, anuncia a obra, é um movimento crescente de tropas, aventureiros, religiosos, orientando a história desse lugar para um certo clímax: a deflagração do processo civilizatório por parte da população branca. Jesuítas, militares, paisanos legalizados e aventureiros, partindo sempre de Olinda e da Bahia, por mar e por terra; corsários entrando pelo leste; índios em perseguição aos portugueses no sentido oeste-leste e na direção norte-sul; índios em fuga no sentido oeste-leste (litoral-interior).
Todas essas experiências, dispostas sincronicamente, oferecem uma visão diferente daquelas que os (poucos) estudantes de história de Sergipe estão habituados a construir: a imagem de que a “certidão de nascimento” do Estado foi registrada por etapas – primeiro a conquista religiosa (pacífica!), depois a conquista militar (sanguinolenta) e, por fim, a ocupação paisana (econômica) provida pelos grandes criadores de gado.
A publicação da monografia de Pedro Abelardo de Santana conjuga três boas novas. A primeira é o lançamento de um nome promissor para os estudos históricos sobre o tema. Como disse um conhecido sergipanófilo, é bem difícil produzir sentido sobre a fragmentariedade das fontes do período colonial. E o autor conseguiu.
Destaque-se também a materialização do prêmio “José Silvério Leite Fontes”, feliz iniciativa do DHI/UFS. O texto de Abelardo venceu a primeira edição desse certame, depois de renhida disputa com a monografia Formação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itabaiana, de Ângela Barros,  orientada pelo professor Fernando Sá.
A última boa nova é a demonstração dos frutos da pesquisa especializada e tutelada dentro do DHI, como registra o próprio Abelardo na sessão de agradecimentos: ao “professor Francisco... que me ofereceu o tema dessa monografia.” Venho falando aos quatro cantos que uma possibilidade para produzir massa crítica sobre a história do Estado é a tutela, não só dos temas, mas, especialmente, dos problemas de pesquisa. E mais, que esses temas e problemas tenham relação direta com o foco de interesse dos professores-orientadores. Aí está o resultado.
Da publicação, apenas algumas notas destoantes: concordo com Samuel Albuquerque que um mapa e um glossário aumentariam o valor da obra. Mas, o que desafina, no momento, é a deficiente circulação dos 500 exemplares impressos, embora os interessados em comprar o livro – eu indico a leitura – possam facilmente fazer contato com o autor. Ele é o diretor do Arquivo Público da Cidade de Aracaju.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Da Bahia a Pernambuco. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 23 nov. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >

domingo, 16 de novembro de 2003

A República de Lacerda

Há um século, a “calçada alta do palacete da rua Pacatuba” costumava reunir as mais proeminentes figuras do partido Cabaú em Sergipe, o grêmio dos usineiros (Santana, 1979, p. 77; Amado, 1999, 198). Francisco Carneiro Nobre de Lacerda (1869/19--), dono da casa, era o ponto aglutinador. Com ele discutiam-se os destinos das lideranças políticas e as questões mais candentes sobre o desenvolvimento de Sergipe. Segundo Tito Lívio de Castro, foi assim durante décadas: a residência do juiz federal dava a direção da política sergipana.
É certo que não podemos ressuscitar bate-papo daqueles homens de bengala – “o atributo da idade viril”. Mas, é provável que alguns elementos dos seus modos de pensar e agir tenham sido transferidos e conservados no livro A década republicana em Sergipe (1906), publicado, inicialmente, em forma de artigos, em O Estado de Sergipe, entre 14 de abril e 13 de junho de 1905 pelo poderoso Dr. Nobre de Lacerda. (Cf. Guaraná, 1925, p. 97).
Por que “década”, não sei. Por que publicá-lo em 1906, também não faço idéia. Por hora, é prematuro associar o título e a publicação com um possível modo de fazer história – por décadas. Da mesma forma, a data do fatídico destino de seu correligionário, Olímpio Campos, assassinado pelos filhos de Fausto Cardoso em 1906, pode não ter relação imediata com lançamento do livro.
Mas, sei que A década é obra importante para compreendermos a constituição do ofício do historiador em Sergipe, além de depor sobre a experiência dos nossos políticos no início desse regime – a República – que se propunha redentor dos costumes e desencadeador do progresso local. Registre-se que essa era a terceira versão sobre a transição monarquia/república, ocorrida em 1889. Em 1906, já circulavam também A República em Sergipe (1891), de Baltazar de Araújo Góis (1853/1914), e Sergipe republicano (1896), de Manuel Curvelo de Mendonça (1870/1914).
O texto de A década republicana em Sergipe foi estruturado sob dois extensos blocos. No primeiro, ao que chama de introdução, passa em revista os vários movimentos sediciosos, emancipacionistas, ocorridos no Brasil entre 1630 – o Quilombo dos Palmares – até a culminar com a proclamação da República, em 1889. Duas intenções são explicitadas: “assinalar o caráter libérrimo do povo brasileiro” e firmar a proclamação [da República] como conseqüência da abolição da escravatura, ocorrida no ano anterior. Mas, aparentemente, o afã de demonstrar as teses faz com que Lacerda deixe contradições teóricas e factuais à mostra.
Para exemplificar, citemos, é claro, as mais gritantes. Ele emprega com o sentido de ideal republicano as expressões rebelião, independência política, democracia, ultraliberal e abolicionismo. A república é uma espécie de vírus contido em vários movimentos sociais. Todavia, soa estranho ao leitor a afirmação de que o povo brasileiro assistiu bestializado à chegada do novo regime se, em Sergipe, como ele mesmo diz, o povo o festejou durante dois dias (!).
Outro exemplo. Ele escreve que a abolição – liberdade civil – era um desejo de todas as classes, e que se deu sem condições, nem entraves. Mas, em Sergipe, a campanha abolicionista de Francisco José Alves lhe “valeu a guerra desabrida de intransigentes escravagistas, que por meio de processo e outras perseguições o[fizeram] abandonar o solo pátrio”. (Lacerda, 1906).
A segunda parte do texto trata da experiência sergipana. Aí também as contradições abundam. A república, que chegou no entardecer do 15 de novembro, deixou os poucos (!) republicanos em delírio. E fez muito mais. Livre da centralização odienta que marcou a monarquia, Sergipe “renasceu das cinzas”, passando a viver superávits orçamentários. Os municípios ganharam vida autônoma; os sergipanos elegeram os seus próprios governantes.
Entretanto, não há como omitir a seqüência de intervenções do Palácio do Catete na política local e o ineditismo de algumas práticas que fizeram do Estado motivo de escândalo nacional, como a duplicidade de Assembléias legislativas, dos funcionários da justiça, e dos presidentes do Estado, ações desencadeadas pelo ativismo de Silvio Romero e do General Valadão.
Para falar de Sergipe, Nobre de Lacerda abandona a narrativa empregada na introdução. Baseia a partição do tempo e dos capítulos nas sucessivas administrações, incorporando dados sobre as condições de nomeação e posse de cada governante, a posição dos partidos e da imprensa sobre as gestões; os principais feitos administrativos; e, as ações políticas em que os presidentes se envolveram. Faz uso da matéria publicada em jornais de Sergipe e do Rio de Janeiro e revela correspondência trocada  entre autoridades locais e, destas, com o presidente da República. Essa grade de temas e fontes fornece os dados para explicitar os determinantes “políticos” do progresso local. Mas, as “causas eficientes”, as secas, por exemplo, não foram objeto de sua escrita.
Tais “causas inconscientes” talvez fossem do interesse do historiador e não do cronista, como ele definiu a si próprio: ao cronista “somente cumpre contar os acontecimentos”. Aí mais uma contradição grosseira do Lacerda: ele tanto investiga as causas – “missão do historiador” – como julga a ação dos personagens, encarando o desenrolar dos acontecimentos, a história vida, como um verdadeiro tribunal.
O tropo dessa retórica forense, plena de adágios e de leis cunhadas numa física prosaica, pode ser a ironia. É uma possibilidade para compreender esse festival de contradições. Afinal, o que ele poderia estar querendo dizer mesmo é que aquela década revelava “a República que não foi”; a que não estava nos sonhos dos republicanos e nunca esteve – como nenhuma outra forma de república – nos planos do partido Cabaú. Com tantos volteios de fala, Nobre de Lacerda deve ter sido, senão aluno, um grande admirador do professor e filólogo Brício Cardoso (cf. Gally, 2003).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A República de Lacerda. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 16 nov. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 9 de novembro de 2003

Histórias da BR-101


E estrada tem história? – Claro que tem! É um artefato. É um produto  da ação humana, e tudo o que provém do humano interessa ao historiador. Em teoria é assim. Bem professoral a resposta. Mas, e na prática? O que se faz para contar a história de uma estrada, ou melhor, de uma rodovia que está completando trinta e quatro anos de serviços prestados aos moradores de Sergipe? Uma alternativa é pôr os olhos sobre as comunidades marginais, ampliadas ou mutiladas, pelo tronco norte da BR 101, fato ocorrido com Bananeiras, São Francisco e Cruz da Donzela.

Sem informações detalhadas sobre o empreendimento, não sabemos se a história da BR 101 contempla alguns capítulos sobre superfaturamento de serviços. Por hora, a história vivida às margens da via é bem outra, mais saborosa que a atual novela da duplicação. Vejamos, então, algumas dessas narrativas, elaboradas, sob orientação do professor Jorge Carvalho, no ano passado, por três alunas do curso de licenciatura em História da UFS/PQD-Propriá.

Vista parcial da zona urbana de Malhada dos Bois-SE,2008. 
Hermeson de Menezes
 Conta Luzia Santos (2002) que, no município de Malhada dos Bois, vivia uma pequena população concentrada em torno de uma igreja, rendendo culto à Santa Guilhermina. Guilhermina, reza a lenda, era o nome da donzela assassinada pela “sanha bestial” de um provável estuprador. Morta a virgem, ergueram uma santa cruz à sua lembrança. Daí o povoado vir a ser conhecido como Cruz da Donzela.
Tudo ia muito bem na vida dessa comunidade de agricultores até o início dos serviços de pavimentação da BR 101. Com a chegada dos operários, o pequeno comércio animou-se. Depois, vieram os caminhoneiros. Com eles, instalaram-se postos de gasolina, bares, churrascarias e, aos fundos destes estabelecimentos, os “cabarés”. A presença das profissionais do sexo, no início dos anos 1970, logo expandiu os negócios na região. O aumento do número de moradores foi ampliando o povoado até as margens da rodovia.
Na primeira metade dos anos 1980, o pólo de lupanares registrados com nomes Deusa do Asfalto, Deusa da Noite, Safare, Girassol, Roda de Fogo, Mineira, Cortiço do Baiano e mais, Creuzinha, Luana’s Bar, Zica, Léo, e Cida fez a fortuna de lavadoras de ganho, vendedores de perfume e de roupas, e de bodegueiros. Melhor para estes, pior para os romeiros de Santa Guilhermina, que foram obrigados a se afastar do local tornado “impuro”. Pior para as senhoras casadas, confundidas com prostitutas; para as autoridades preocupadas com combate ao rufianismo, tráfico de drogas, lesões corporais e homicídios ocorridos na “zona”. Pior mesmo foi para a imagem da povoação: Cruz da Donzela, o nome, virou figura de linguagem, ou piada entre “os populares” – Cadê as donzelas?
Ao contrário de Cruz da Donzela, a povoação de São Francisco só teceu louvores à chegada da BR 101. O benefício, contudo, não fora incorporado de imediato. São Francisco, sede do município do mesmo nome, teve que esperar uns quinze anos para ver pavimentados os mil e quinhentos metros que a separavam da via federal, é o que conta Jilvaneide dos Santos (2002).
Depois de asfaltado o acesso, três grupos, pelo menos, comemoraram a boa nova: os varejistas de roupas e calçados buscaram mercadorias na feira de Caruaru; os estudantes puderam freqüentar escolas em Propriá e em Penedo; e, por fim, o mais curioso, a rodovia fez surgir uma nova modalidade de serviços: o transporte de cargas e passageiros. Motorista virou profissão de prestígio em São Francisco. Com giro pequeno e ganhos rápidos em dinheiro, o caminhão, por exemplo, tornou-se uma empresa mais rentável que as pequenas propriedades agrícolas. (Passos Subrinho, 2001).
Alguns quilômetros adiante, o impacto da construção da BR foi devastador, segundo a memória de alguns moradores. Nos anos 1950, Bananeiras era uma espécie de entroncamento rodo-ferroviário; um ponto de passagem e de abastecimento para os moradores de São Francisco, Pau da Canoa, Lages, Poxim, entre outros. Com a chegada das obras, na virada de 1968 para 1969, paisagem, economia e cotidiano do lugar foram radicalmente modificados.
Lembram os moradores das “chuvas de pedras” provocadas pelas explosões; a transferência do cruzeiro, que fazia as vezes de igreja; o desvio do riacho canoinhas; a queda no comércio da água; a migração dos indenizados. O povoado Bananeiras foi dividido ao meio, e os moradores foram obrigados a compartilharem com os animais uma passagem subterrânea construída para evitar os atropelamentos, provocados pelo tráfego intenso. O problema é que  a galeria ficava inundada quando chovia, no início dos anos 1970.
Claro que o povoado lucrou com a venda de refeições aos operários; que depois de inaugurada a via transformou-se em ponto de propaganda e de escoamento para o melhor queijo do Estado. Mas, é certo, também, conclui Élia Andrade (2002), que a decadência de Bananeiras, verificada a partir dos anos 1980, tem forte relação com a chegada da BR 101.
No final destas pequenas histórias, fica a constatação óbvia de que as vias distribuidoras de riquezas modificam a estrutura das cidades “do interior” e alteram os valores de suas comunidades, até mesmo das que estão próximas a Aracaju, como São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro (cf. França, 1999). Mas, a rodovia, em si mesma, é mais efeito que causa de mudanças na política econômica. E é fato também que ninguém ganhou mais com a BR do que a própria Aracaju, que estendeu sua influência até para as cidades de Paripiranga, Geremoabo, Coronel João Sá e Santa Brígida (Diniz, 1987, apud. França, 1999, p. 59).
Para a vulgata administrativa, esses ganhos com a supremacia sobre as outras cidades não passam de um presente de grego. Não era bem a superlotação de hospitais o que se desejava, nem a ocupação desordenada das áreas de preservação ambiental. Contudo, mantendo o controle de um terço do eleitorado estadual, Aracaju não parece estimular discursos de combate à hiper-concentração de serviços e oportunidades em detrimento das demais cidades de Sergipe. Esperemos a duplicação para saber aonde é que essa história vai acabar.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Histórias da BR 101. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 09 nov. 2003.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/historias-da-br-101.html>.


Referências bibliográficas
SANTOS, Jilvaneide dos. A cidade de São Francisco (1965/1985). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
SANTOS, Ana Luzia. Grandezas e misérias da prostituição feminina no povoado Cruz da Donzela (1869/2001). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
ANDRADE, Élia Barbosa. O povoado Bananeiras e a BR 101 (1940/1990). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
FRANÇA, Vera Lúcia Alves. Aracaju: Estado & metropolização. São Cristóvão: Editora da UFS, 1999.

domingo, 2 de novembro de 2003

O Amado Genolino

Genolino Amado (1902-1989)
Leveza e densidade, o fortuito e o reflexivo, a crônica e o ensaio caracterizam a prosa do itaporanguense Genolino Amado (1902/1989), segundo o seu maior especialista, o poeta Jeová Santana (2000). Contraditórios tais atributos – como a vida do autor, repartida entre a crítica social e a freqüência aos gabinetes do governo Vargas –, eles transformaram-se em “janelas abertas para a cidade e para o mundo”, de onde se pode observar um dos “projetos de brasilidade” em curso no período 1930/1950 (Cf. Santana, 2000, p. 142-142) e a idéia de uma identidade sergipana para a primeira metade do século XX.
Genolino Amado, cronista, ensaísta, tradutor, político, professor de História Universal, foi um exilado voluntário. Sua produção esteve fortemente marcada pelos ares metropolitanos. As referências a Sergipe, no entanto, abundam nos livros que enfeixaram suas crônicas. A prosa memorialística vai pelo mesmo caminho. O texto mais conhecido foi Um menino sergipano (1977). A este, planejou dar prosseguimento, escrevendo “a história do moço que estudou na Bahia e se formou no Rio de Janeiro”, e que se chamaria “Um rapaz sergipano”.
Um terceiro livro contaria a sua vida em São Paulo, a iniciação literária, o retorno ao Rio de Janeiro e a comemoração das bodas de ouro do casamento dos seus pais. Essas memórias eram também “a narrativa de toda uma família sergipana, a do velho Melk, a de Donana”, a dos quatorze irmãos Amado, com destaques para o excepcional Gilberto e, quem sabe até, para “um outro grande Amado que a Bahia nos levou, [s]eu primo Jorge, sergipano de origem.” (Cf. Amado, 1977, p. 41-43; 1977b, p. 199).
O surto memorialístico de Genolino não se iniciou com a visita que fez a Sergipe, nos anos 1970, início da escrita de Um menino sergipano. Ele havia publicado O reino perdido (1971), livro de reminiscências sobre a vida de professor de história no Rio de Janeiro. Quanto aos flagrantes de memória sobre os modos sergipanos de pensar, agir e sentir já estão dispersos em crônicas publicadas desde a década de 1940. É por essa janela que se pode, em parte, observar “todo um Sergipe que vive na lembrança dos sergipanos exilados, que constitui a obsessão poética do seu degredo”. (idem, 1946, p. 137). Exemplo dessa catarse: “cheiros de mangaba madura, músicas de reisado, versos do ‘colibri’ ao som da Dalila, cadeiras na calçada, serenatas de violão soluçante, a fala cantada do povo, as mocinhas de fita no cabelo passeando ao largo da matriz.” (idem, p. 1977b, p. 136-137).
Mas, por que observar “em parte”? Porque o Genolino rememorador é o mesmo que apõe a crítica à lembrança e reconhece a impotência da cultura provinciana do final do século XIX frente à “revolução” operada pelo rádio no início dos anos 1940: em Laranjeiras, Orlando Silva substitui Fausto Cardoso; em Propriá, o reisado perde espaço para os sambas de Odete Amaral; as histórias contadas sob os alpendres do Riachão dão lugar às novelas radiofônicas; os “rr” do locutor César Ladeira estragam a prosódia das meninas de Itabaianinha e de Itaporanga; as imagens do amor e da namoradinha encarnam-se na figura de Linda Batista e não mais em Julieta; enfim, sucesso do rádio significa “a morte da província”. (cf. Amado, 1946, 136-139).
O menos famoso dos Amado era também um homem da mídia, um cultor da modernidade. Esse fato, entretanto, não o obriga a concordar com o expresso aniquilamento de um modo de vida coletivo. Essa preocupação de Genolino reverbera sempre nesses instantes de mudanças bruscas, desde Maiackowsk aos críticos da globalização: “Se perdermos a província, que será de nós, de nós que tanto já perdemos? Onde encontrar o sentido da nossa existência, se lhe turvamos a fonte de onde ele sempre veio?” (idem, p. 138).
Trinta anos mais tarde, a fonte da singularidade (a província) continuava pródiga. O rádio não era novidade, a televisão se impunha, mas ao que parece, a “alma de Sergipe” não fora destruída pela modernidade. Ela foi ganhando nitidez na cabeça do viajante Genolino à medida em que ele amadurecia, exercitando todos os sentidos, analisando, generalizando, sintetizando, comparando e diferenciando maneiras de viver, timbre de humanidade, inclinações morais e sentimentais, dotes criadores, simpatias e idiossincrasias do sergipano. (cf. Amado, 1977b, p. 193).
Genolino chegou a definir a alma de Sergipe: “um conjunto de qualidades próprias, facetas caracterizadoras, aspectos específicos e inconfundíveis dos meus conterrâneos, enfim, sergipanidade.” (idem, p. 193). Mas, na hora de demonstrá-la academicamente, recuou. Seria muito cansativo e trabalhoso!
“Sergipanizou”, portanto, ao léu, com o que lhe veio à cabeça no momento da escrita (idem, p. 196). Agiu impressionisticamente, tentando demonstrar que o sergipano era mais caboclo que negro, majoritariamente pardo, sofredor. O nativo era, como o cearense, um eterno migrante e, talvez – pela ausência de um porto –, um forte ascendente judeu. No legado cultural, não se sobrelevaram os sonetistas, oradores e romancistas (Cf. Amado, 1977, p. 192-200). A ausência dos Amandos Fontes anteriores à década de 1930, por exemplo, esteve relacionada ao caráter do “espírito sergipano”: denuncista, influenciador, inovador. “No espírito sergipano, concluía Genolino, “o senso crítico prepondera sobre o imaginativo, sobretudo de caráter meramente estético.” (Amado, 1997b, p. 41).
Genolino Amado não era cientista social, nem saudosista melancólico. Mas, é curioso como releva e, ao mesmo tempo, critica a idéia de alma cultivada pelos patrícios do final do século XIX. Para o cronista, alguma “coisa”, em última instância, deveria ser preservada. Que “coisa” seria essa, e do passado de quem seria recuperada é a pergunta que não quer calar. Com a introdução desse componente político, Genolino dinamiza o debate sobre o passado, memória e identidade sobre o qual nos debruçamos no momento.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O Amado Genolino. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 nov. 2003.

Referências
AMADO, Genolino. O reino perdido: histórias de um contador de história. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.
__________. A morte da província. In.: Os inocentes do Leblon: crônicas do Rio. Rio de Janeiro: Globo, 1946. p. 136-139.
__________. Um menino sergipano: memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
Momento entrevista Genolino Amado. Momento: Revista Cultural da Gazeta de Sergipe, Aracaju, n. 9, p. 41-43, fev. 1977.
SANTANA, Jeová. A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino Amado. Campinas, 2000. 245 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.