domingo, 28 de março de 2004

O "povismo" de Clodomir Silva

Bastante acertada a decisão da Funcaju de republicar  Minha Gente: costumes de Sergipe, livro de Clodomir Silva. Não somente pela importância da obra desse intelectual da primeira República – pouco se tem a acrescentar às apresentações de Terezinha Oliva e de Luiz Antônio Barreto – mas também e, principalmente, pelo significado do livro na historiografia sobre Aracaju.  Clodomir Silva foi um dos maiores – com licença da feiúra dessa expressão – aracajuanófilos de todos os tempos, e o texto lançado no 17 de março último dá mostras dessa intimidade com a barbosópolis.
Certo que a capital onde nascera já fora por ele cantada, por exemplo, num artigo fundador – “Aracaju” (Correio de Aracaju¸ 1922) –, onde aportaram José Calazans, Fernando Porto e Sebrão Sobrinho. No Minha gente, todavia – livre para enredar – Clodomir associa cenários, costumes e pessoas. Ele dá um jeito de interromper uma narrativa biográfica para descrever, em rápidas pinceladas, a feição da rua do Arame, a movimentação na saída das fábricas, o clima festeiro do Aracajuzinho, o trabalho feminino nas salinas e a paisagem aracajuana vista da cidade de Santo Amaro.
Entretanto, não somente de Aracaju trata-se a obra. O texto de Minha gente é uma coleção de formas de pensar, agir e sentir que o autor, provavelmente, enxergaria como espontâneas e representativas de todo o Sergipe. Isso porque a capital era, para Clodomir, uma “cidade polvo” cujos tentáculos se expandiam, atraindo “tabaréus” de todas as partes do Estado. Daí a importância destes como arquivo da sergipanidade. Hoje, se vivo, Clodomir expandiria suas vistas e visitas aos bairros Santa Maria, São Carlos e Lamarão, que abrigam grande contingente de migrantes de outros Estados.
Além de síntese topográfica, o livro traz um painel da diversidade folclórica local: religiosidade, lúdica, artes e técnicas, música, folguedos, literatura e linguagem popular estão presentes na obra. É uma possibilidade de exposição, apenas. Ele “planejara um volume dedicado ao folclore de Sergipe”, livro cujos manuscritos, em 1976, estavam nas mãos do bibliófilo Antonio Simões dos Reis. (Cf. Calazans, 1992, p. 64).
Minha gente: costumes de Sergipe é simples. É uma obra de reescrita, uma coletânea. Boa leitura faz quem acompanha cada peça de forma independente (mesmo o capítulo que dá nome à obra – “Minha gente” – é, talvez, o de menor expressividade). Em alguns trechos, lembra a viagem dos românticos do século XIX à caça do povo em vias de extinção. Lembra também o Antônio Cândido cercando os modos paulistano-caipiras, forjados no tempo da colônia e embalsamados na cidade de Bofete.
Não obstante tais lembranças, não obstante a sua busca às fontes “autênticas” aos arquivos do povo, é desprovido de grandes vôos interpretativos. Clodomir Silva “era um colecionador de tradições e costumes. Um coletor de peças, voltado para as suas fontes, que deviam brotar do meio do povo, sem manifestar preocupações com o que os outros haviam colhido. Não era de seu hábito fazer citações, enunciar comparações, enumerar versos.” (Calazans, 1992, p. 62).
Essa característica chama a atenção quando olhamos ao lado, no tempo de Clodomir, os intelectuais que trabalhavam com objetivo semelhante – buscar a alma do povo sergipano. Prado Sampaio, seu contemporâneo, fez exatamente o contrário: interpretou em profusão, às vezes, bem distante da pesquisa básica. Mas, curiosa é a convergência das conclusões (do pouco que se pode extrair de Clodomir). Tanto em Prado Sampaio – com seus poetas letrados – quanto em Clodomir Silva – com seus cantores vulgares – a poesia expressa as aptidões de um povo, e o sergipano é marcadamente trabalhador, civilizador e migrante.
Mas, isso é tema para os exegetas da sergipanidade. Aqui, basta registrar que, como obra sobre folclore, Minha gente se transformou num repositório do povismo dos tempos de Clodomir. Isso também o conduz à base referencial de comparação – ele que nada comparava – de certos modos de viver de uma parcela da sociedade local. Num sobrevôo de lembranças particulares, pude notar como determinadas atividades lúdicas atravessam o tempo, conservando idênticas funções. O jogo com castanhas, o pinta-lainha, o cabra-cega, eu os alcancei na rua México, no bairro Novo Paraíso até o início dos anos 1970. Seria interessante cruzar os trabalhos do Departamento de Psicologia desenvolvidos em torno das brincadeiras de criança na periferia de Aracaju nos anos 1990.
A narrativa é um primor. Não foi pouco engenho despendido para construir o texto de forma que o provérbio, a quadrinha, a máxima fossem transmitidos em sua forma mais próxima ao evento original. Observe-se alguns títulos – “No frigi dos ovo”, “Quem non dá p’a fubá”. Não são ilustrativos. Transmitem uma riqueza de sentidos que só mesmo a cultura oral é capaz de condensar. Observam-se o vocabulário simples, mas elegante, a frase curta e o ritmo ligeiro da narrativa.
Como registro sobre as gentes de Sergipe, enfim, Minha gente já vale pelo conhecimento que sugere sobre a vida de Zé Robalo, velho pescador de Santo Amaro, nascido “no tempo da guerra do Lopes”, cheio de histórias curiosas e que nunca havia conhecido o mar; a vida de Maria de Zé Piau, fugitiva da cheia 1909 que findou seus dias como operária da Fábrica Confiança, numa tragédia semelhante à vida de Os Corumbas; as lembranças do garoto Eleotério, para quem a escola pública era “uma sala escura, [de] bancos duros, ar confinado”, a “autoridade tirânica da professora, propensa sempre a castigar.” (Cf. p. 78).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar . O povismo de Clodomir Silva. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B - 6B, 28 mar. 2004.

domingo, 21 de março de 2004

A civilização de Thétis Nunes

Escrevi na edição de 04/01/2004 que as iniciativas, de certo modo didáticas, em termos de história universal dos professores Justiniano de Melo e Silva, Alfredo Cabral e Maria Thétis Nunes mereciam atenção, sobretudo, por se postarem na contra-mão do discurso provincianizador em voga nas historiografias sergipana e nacional. Raros foram os escritos de historiadores locais que se aventuraram a interpretar a experiência de povos não brasileiros.
Como Alfredo Cabral, Thétis Nunes também experimentou a proeza. A exemplo de 1910, a iniciativa de historiar outras partes do mundo esteve relacionada à emergência de um concurso para a cadeira de História no Atheneu, concurso revelador da disputa entre grupos político-partidários e da busca por capital cultural  social. (Cf. Nascimento, 2003).
Mas, o que me interessa no momento é a tese apresentada à Congregação do Atheneu (2 ed. Aracaju: J. Andrade, 2002), trabalho que, segundo Norberto de Oliveira (1997, p. 37) – desculpando-se, talvez, pelas limitações de Thétis –, “não traduz as características essenciais da historiadora que viria a ser pós-ISEB.” Vejamos, então, algumas das “características essenciais” da jovem Thétis e o tipo de trabalho abonado com nota nove pela banca do Atheneu, em 1945.
A pergunta principal da tese é: qual a “influência” da “civilização árabe” na “civilização ocidental”? A resposta está distribuída pelos capítulos 3, 4, 5 e 6: a civilização árabe não só foi o elo entre o mundo antigo (passado conhecido) e a Idade Moderna (futuro), como propiciou a retomada, após as “invasões dos bárbaros”, do curso progressivo da civilização ocidental.
Esse papel mediador e também precursor pode ser observado nas “sobrevivências” de elementos da literatura, música, arquitetura, pintura, escultura, mobiliária e cerâmica; da filosofia, das ciências – matemáticas, física, química, botânica, agronomia, astronomia, farmacologia e medicina – e das universidades árabes na civilização européia.
Não se espantem com o ensaio antropológico (folclórico) em escala ampliada. As demais informações sobre os árabes já seriam de domínio público – leitor de história universal. Nos livros da época, os árabes eram um povo liderado e unificado pela obra religiosa de Mohamed (571/632). E o maior triunfo deste povo – motivo para a sua inserção nos compêndios – foi “evoluir”, rapidamente, de um grupo disperso de tribos da Arábia aos senhores mais poderosos do medievo, após terem conquistado a Síria (638), Pérsia (652), África (711) e Espanha (122).
O substrato interpretativo do trabalho, colhido na sociologia e na “moderna antropologia” – as leis sócio-históricas, a causalidade do meio, raça, estágio tecnológico, circunstâncias políticas e atributos culturais – conforma os dois capítulos iniciais. São eles que auxiliam ao leitor de hoje – assim como à banca examinadora à época – a não considerar a tese um inventário de sobrevivências culturais.
Por outro lado, são esses mesmos capítulos que revelam as dubiedades e imprecisões da jovem Thétis. A tentativa de equilibrar o valor dos grandes homens e o papel do conjunto formado pelo meio físico e as circunstâncias é um exemplo – liberdade ou necessidade? A candidata bem que se esforçou para descrever as condições que possibilitaram a ascensão dos árabes. Mas, no frigir dos ovos, foi Mohamed quem “ergueu o edifício de proporções colossais.” (Cf. p. 19).
Outro exemplo está na filosofia professada. Ela crê num contínuo e necessário aperfeiçoamento da humanidade, e não pediu arrimo a Werneck Sodré para afirmar que “todo grupo social tem que passar pelas mesmas etapas econômicas e sociais para alcançar a plenitude de uma manifestação cultural determinada.” (p. 17). Mas, ao mesmo tempo, não consegue desvencilhar-se da sedutora idéia dos ciclos vitais das civilizações: nascimento, apogeu e decadência.
Thétis também titubeia no uso do termo civilização. Lá está o sentido de conjunto de traços definidores de um povo -  civilização árabe, romana, latina etc., dando ao texto um tom relativista. Mas, a idéia de humanidade – o coletivo dos homens – e de estágio máximo de aperfeiçoamento atingido por “impulsos” e “graus” também estão presentes. Este último significado anuncia o padrão a ser considerado: a civilização ocidental moderna – presença de Estado, economia aberta, mobilidade social, alto desenvolvimento das letras ciências e artes. Thétis estava com os pés fincados no universalismo ilustrado do século XVIII.
Aqui, não vem ao caso atribuir tais indecisões a sua juventude intelectual, à ausência de interlocutores ou à pressa em concluir a tese. Não vale rotulá-la de colonizada ou imperialista. Pode-se, por hora, dizer que, em termos de história da civilização, Thétis estava menos próxima do viés de Manoel Bonfim – a história geral como uma equivocada “afirmação” e “consagração” dos povos ingleses e, sobretudo, franceses – e mais para a corrente majoritária de João Ribeiro – a civilização européia como “um caudal” de contribuições para a perfeição humana.
Pode-se também conjeturar que A Civilização árabe: sua influência na civilização ocidental constitua-se um típico caso de tese-compêndio, produto elaborado de maneira semelhante aos livros didáticos de história universal, até o início dos anos 1940. Mas, para testar a hipótese será preciso examinar o texto do concorrente de Thétis, o professor Manuel Ribeiro – que também foi avaliado com nota nove – e dos demais professores de história que lhes seguiram no Atheneu Sergipense.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A civilização de Thetis Nunes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 mar. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 14 de março de 2004

Leituras sobre história de Aracaju: José Calazans

Até o início da década de1940, as histórias sobre Aracaju – excetuadas as reminiscências e crônicas – procuravam, dominantemente,  responder a três questões: quem fundou a cidade? Quando surgiram os primeiros habitantes? Qual o motivo para a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju?
O historiador José Calazans também ensaiou a sua história de Aracaju, em 1942, sem, no entanto, afastar-se muito das chaves explicativas de Felisbelo Freire, Manuel dos Passos de Oliveira Teles, Enock Santiago, Epifânio Dória e Clodomir Silva. Esses homens punham ênfase na dimensão factual e na ação voluntariosa do indivíduo, fosse ele Joaquim Inácio Barbosa ou o barão de Maruim.
O texto de Calazans “Aracaju: contribuição à história da capital de Sergipe”, tese para a cadeira de história do Brasil e de Sergipe, da Escola Normal, inicia-se mesmo com um perfil do homem Inácio Barbosa: figura inteligente, competente, ilustre e experimentada.
Calazans dá mostras do tirocínio administrativo do presidente Barbosa, anuncia as suas metas e, somente na terceira parte, começa a tratar de Aracaju – significado do vocábulo, localização, primeiros habitantes, primeiras transferências de São Cristóvão e limites territoriais.
O capítulo seguinte, o quarto, aborda “o fato mais importante da história de Sergipe” – a transferência da capital. Aí, são expostas as explicações aventadas sem comprovação por outros historiadores e as causas nacionais e locais que influenciaram na ação do Barbosa.
Calazans também descreve as ações preparatórias, os atos legislativos que geraram a mudança, a repercussão do fato em São Cristóvão e, por fim, no último capítulo, apresenta a nova cidade em seus anos iniciais – o projeto, as primeiras edificações, os problemas de salubridade e a viagem de Inácio Barbosa à Estância para curar-se das “febres do Aracaju”.
Essa nova tese sobre Aracaju foi referendada, primeiramente, por seu Nonô, guardião do “arquivo morto” do Palácio, onde o entusiasmado bacharel fora buscar material inédito. Calazans tinha vinte e sete anos quando se embrenhou na pesquisa da qual Fernando Porto já era autoridade. Ele também adorou o resultado. Supunha ter inovado na abordagem. (cf. Calazans, 1993).
José Amado Nascimento (1943), entretanto, não teve dúvidas: “o Aracaju de José Calazans é... livro de um historiador à moderna.” Mas, em que consistiria a modernidade da escrita desse pesquisador-professor?
Para Terezinha Oliva (2002), Calazans produziu “a primeira abordagem geral sobre a história e a historiografia de Aracaju”. Seu trabalho heurístico chegou ao século XXI como “um inventário de fontes pouco exploradas e de temas ainda por aprofundar.” Thétis Nunes (1992) encarou a tese como “o melhor estudo e melhor interpretação histórica da nossa capital.”
Segundo José Amado Nascimento (1943), a modernidade de Calazans estaria patente no deslocamento da história política para uma história social com pendores sociológicos e na utilização de fontes não convencionais, como o depoimento oral e os anúncios de jornal.
A esses julgamentos eu acrescentaria que ele depurou a sua narrativa das memórias com teses pouco convincentes do fato fundado na lenda e do boato conservado pela memória do vulgo e lançou ao leitor uma hipótese tal como efetivamente ela é: uma conjectura.
Todavia, não foi desapaixonado o suficiente para abandonar as informações fornecidas pelas quadrinhas populares sobre a imagem de Aracaju e de Inácio Barbosa e fez uso do “toda gente sabe” (menos o leitor!) para identificar um personagem omitido por Felisbelo Freire.
Penso também que o maior distanciamento entre Calazans e os historiadores precedentes está no fato de ele ter desprovincianizado o debate sobre a história local, relacionando a história de Sergipe à era Mauá e ao tempo da “conciliação” do Gabinete Paraná. Isso ocorreu a despeito de seu culto à “província” e ao “provinciano,” herança de Gilberto Freire e de Clodomir Silva.
Certamente, Calazans esteve às voltas (para os historiadores de hoje) com “falsos problemas históricos”, como – Quem transferiu a capital? A medida foi acertada ou não? ...etc. –. A essas questões ele respondeu peremptoriamente: “A mudança da capital sergipana... constituiu uma medida acertada do presidente Inácio Joaquim Barbosa, de vez que, realmente, a transferência era imperiosa porque  necessária aos interesses vitais da Província” (Cf. p. 87). Entretanto, ele desloca a causalidade histórica da vontade individual para a necessidade econômica, geográfica e de mentalidade.
Ele demonstra, nas entrelinhas, que o espaço de manobra de Inácio Barbosa era bastante limitado. O presidente foi apenas o homem certo em lugar e hora oportunos, pois o meio geográfico e, sobretudo, o “deslocamento de fronteiras econômicas que se vinham processando há bem mais de um século, do sul para o norte da Província” selariam irremediavelmente o “destino” da velha capital São Cristóvão, beneficiando a região de Aracaju.
Não fosse o uso da expressão “destino” e o aglomerado de causas sem necessária inter-relação, poderíamos identificar no Calazans o historiador que ressignifica a dimensão factual, despojando a transferência da importância atribuída até então, haja vista a sua atitude de compreender esse acontecimento como fruto de uma mudança secular na mentalidade dos gestores em relação à função, e o aspecto das cidades resulta de transformações na paisagem e da ação dos ciclos econômicos.
Em metáfora braudeliana, o 17 de março de 1855 significaria, apenas, a espuma das ondas na imensidão do mar, a luz do pirilampo na escuridão da noite, ou seja, a transferência da capital para Aracaju seria tão somente um fato político inteligível na longa duração da história de Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: José Calazans. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 15 fev. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

Leituras sobre a história de Aracaju: Padre Aurélio de Almeida

O lançamento de Laudas da história do Aracaju (Sebrão Sobrinho, 1955) no ano do Centenário da cidade, provocou indignação de muitos intelectuais. O problema estava nas teses do historiador itabaianense. Para ele, teria sido João Gomes de Melo o fundador de Aracaju. A Inácio Barbosa (1811/1855), Sebrão reservou o papel de obediente subordinado, caixeirinho do barão de Maruim.
Entre os que discordaram e trabalharam para restabelecer a imagem do infortunado presidente da província, destacou-se o Padre Aurélio Vasconcelos de Almeida (1911/1999). O santamarense finalizou o seu alentado Esboço biográfico de Inácio Barbosa dois anos após as Laudas de Sebrão. Mas, a publicação do primeiro volume somente seria viabilizada pela Prefeitura Municipal de Aracaju a partir de 2000.
O Padre Aurélio, a exemplo de Enock Santiago (1915), José Calazans (1942) e Fernando Porto (1945), reafirma a responsabilidade de Barbosa e as motivações econômica e geográfica nesse fato capital para o desenvolvimento da província. Entretanto, a fundação da cidade é apenas um dos atos de magnanimidade na curta história de vida do personagem. (Depois de bacharel em Direito, Barbosa viveria apenas onze anos).
Para o biógrafo, o grande mérito de Inácio Barbosa teria sido o de incutir uma prática civilizatória na sociedade local. Ele “conseguira persuadir aos políticos sergipanos que a província encontraria as estradas do progresso, se houvesse neles, superados os antigos vícios partidários acompanhados dos caprichos das facções de família, o espírito associativo, o espírito público, o espírito animador do bem  comum social.” (Almeida, 2002, p. 99).
A política de conciliação empreendida por Barbosa foi, portanto, o instrumento, e as fundações da companhia de rebocamento e praticagem – Associação Sergipense (1854-1856) – e da cidade de Aracaju (1855) foram as conseqüências desse espírito cooperativo disseminado pelo presidente. Esses atos promoveram o desenvolvimento da agricultura, comércio, indústria e navegação de Sergipe e representaram um sinal de “regeneração moral e patriótica” – indício de evolução civilizatória – da classe política sergipana e não o contrário, como afirmara Felisbelo Freire, em 1891.
Para tornar a tese convincente, o Pe. Aurélio adensa o texto com longas e freqüentes transcrições. São falas do parlamento local e geral, artigos de fundo de jornais de Sergipe e da Corte, orações fúnebres, epitáfios e poemas, somente para citar alguns.
Um narrador muito discreto vai organizando os testemunhos de modo a que o leitor perceba quem foi, efetivamente, o barão de Maruim, como foram construídas as lideranças políticas de Sergipe e os traços do caráter de Inácio Barbosa impressos em suas ações desde a Faculdade de Direito de São Paulo, passando pela magistratura no Rio de Janeiro, a experiência como secretário de governo e como deputado geral pelo Ceará e como presidente de Sergipe.
No segundo volume, a cidade ganha a cena. Lá estão identificados os primitivos sítios e moradores, os limites, as primeiras obras contratadas ou iniciadas por Barbosa e, talvez o mais importante, a localização do rio Aracaju por meio de cartas e crônicas coloniais – o rio Aracaju é o nosso rio do Sal.
Tanto trabalho de pesquisa – e foi pesquisa exaustiva – tanta exposição de provas convencem o leitor de que a “verdade histórica” sobre o fundador de Aracaju e sobre as causas da transferência da capital estão com o Pe. Aurélio e não com Felisbelo Freire, Manuel dos Passos de Oliveira Teles, Clodomir Silva e Sebrão sobrinho.
Mas, o texto resultante não é dos mais agradáveis. Foram-se as cores da tela, ficaram as marcas do desenho na pintura, diria João Ribeiro se tivesse lido o Esboço até o terceiro volume.
O Pe. Aurélio também não conseguiu atenuar o entusiasmo pelo personagem  Barbosa: o presidente foi sempre reto, criterioso, respeitoso, decidido, honesto, zeloso, hábil, inteligente, culto, independente, superior e milagreiro. Não há máculas na sua biografia. Barbosa é quase um santo.
Até mesmo os políticos da terra organizados em partidos “sem princípios além dos inspirados no capricho e interesses pessoais” transformaram-se em honrados cidadãos, cultos, esclarecidos no momento em que aprovavam as ações do presidente de Sergipe.
Mas, o Esboço não é só paixão. É também lição de método para os seus contemporâneos. Ele esforçou-se para separar a conjectura do fato, a lenda da “documentação histórica” em suporte papel. Ele questionou, comparou e desmontou versões com segurança. A crítica de atribuição foi exercitada e louve-se a crítica de restituição sobre a tese conservada pela tradição de que uma suposta decepção amorosa, uma suposta pele escura, um suposto brinde desastrado em honra do presidente Barbosa seriam responsáveis pela decisão de se transferir a capital para Aracaju.
É preciso registrar, ainda,  que o livro amplia o conhecimento sobre os primeiros anos de Aracaju. Nele estão descritos a devoção à Nossa Senhora da Conceição, a construção dos tempos da matriz e de São Salvador, a criação da Diocese, o combate às febres, os primeiros cantores e poemas sobre Aracaju e as homenagens prestadas à memória do fundador.
Esses dados, todavia, só estarão acessíveis ao leitor quando a Prefeitura Municipal de Aracaju lançar o terceiro volume da obra. Há rumores de que o livro está pronto.
Mas, para quem esperou cinqüenta anos pelos escritos do Pe. Aurélio, não custa aguardar algumas semanas e conhecer a última parte, talvez,  da mais longa réplica desse debate sobre a história de Aracaju.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: Padre Aurélio de Almeida. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 mar. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 7 de março de 2004

Leituras sobre a história de Aracaju: Fernando Porto

Pra os filólogos Caldas Aulete e Aurélio Buarque de Holanda, o vocábulo “motivo” possui dois significados: 1) causa, razão, escopo e motor; 2) frase melódica, harmônica ou rítmica que, predomina em qualquer composição musical. Foi com o primeiro sentido que reli A cidade do Aracaju: 1855/1965, de Fernando Porto (1945), buscando as razões que fizeram desse “obscuro engenheiro municipal, no intervalo de seus afazeres funcionais” um perscrutador de arquivos sobre a capital. Mas, foi o segundo sentido que encontrei, logo na introdução do livro.
Para Fernando Porto, a razão, a causa e o motor da escrita da história sobre Aracaju estariam na intenção de desvendar a “vida física e social da cidade”, a sua melodia característica: “Cada cidade é um motivo novo, trazendo em si as notas de sua própria sinfonia. Cabe aos técnicos estudá-las e agrupá-las, compondo a monumental partitura que é o plano regulador.” (Porto, 1991, p. 8).
Mas, o que poderia fazer o historiador – no meio de engenheiros, geógrafos, legisladores e anônimos – para minorar problemas de habitação, saneamento, transportes que afligiam os 60 mil moradores da Aracaju dos anos 1940?
Simples. À história caberia apontar a origem de “características e tendências” relativas à infra-estrutura e ajuda a rememorar “os bons e maus” acontecimentos que “impulsionaram ou retardaram o progresso da cidade” (idem, p. 20). É como um item no questionário do urbanista que a história aparece. Ela amplia a eficácia de um possível plano diretor.
Sobre a origem da urbe, ele concordava com Calazans: o porto foi determinante (motivo econômico). Mas, foi a urgência da nova cidade – criada por Inácio Barbosa – (motivação política ) e os desdobramentos desse fato que orientaram a “evolução” e, por conseguinte, a periodização da história local.
São quatro as etapas dessa evolução urbana: 1) o tempo da ação determinante do governo provincial – 1855/1965; 2) do abandono deste e da impotência da Câmara Municipal na resolução dos problemas estruturais – 1865/1900; 3) da retomada do interesse do governo estadual, implantando serviços de água, esgotos, luz, bondes e do arruamento dos bairros – 1900/1930; e a última, a da transferência de serviços vitais para a municipalidade (bombeiros, pronto-socorros, ensino primário) e da organização de novos bairros – 1930/1940.
É, pois, a política – de Inácio Barbosa, a ação do Estado – que figura na origem e no desenvolvimento de Aracaju. A política também está na ação intencional do historiador em apontar e resolver problemas do coletivo, visar “o bem do maior número”, afastando a sua narrativa dos conflitos de bastidor.
Infelizmente, Fernando Porto só nos deixou a dissertação sobre o primeiro período (1855/1965), onde “a cidade do Aracaju” é tomada como um artefato, um construto mediado pelo relevo do sítio, o projeto do engenheiro Sebastião Pirro e pelas obras iniciais de urbanização.
Assim, apesar da ação de Inácio Barbosa, o “fator geográfico’ ganha relevo. O massapé da Cotinguiba e a profundidade do ancoradouro do rio Sergipe vão fazer de Aracaju “uma das mais felizes vitórias da geografia”. (idem, p. 16).
Isso justifica a saborosa descrição de riachos, fontes, lagoas, dunas e depressões e a exposição das circunstâncias em que o plano da nova cidade foi elaborado e posto em execução. Trata das primeiras construções – mesa de rendas, alfândega, palácio da presidência, quartel de polícia –, da estrutura das edificações e das primeiras diferenciações sociais, oriundas do “fenômeno geográfico”: os ricos moravam no quadro de Pirro. Os pobres ocupavam as dunas.
Está claro que Fernando Porto interpreta a cidade sob o ponto de vista do geógrafo. Até o “sentido geográfico do pensamento de Inácio Barbosa” fez questão de enfatizar. Mas, é provável que as marcas topográficas fossem atenuadas às medida que a história da cidade avançasse pelos três períodos restantes.
Sebrão sobrinho discordava de tal perspectiva e rechaçou as teses de que os registros sobre a costa sergipana eram raros, Santo Antônio do Aracaju era um inexpressivo arraial de pescadores, Aracaju era “cidade livre” de senhores, como afirmara Porto: Aracaju tinha donos e um deles era o barão de Maruim. Sebrão era detalhista. Tomou partido por Clodomir Silva e denunciou o erro do dr. Fernando na localização da estrada que ligava Aracaju a São Cristóvão.
Polêmicas à parte, as lacunas apontadas pelo engenheiro permanecem desafiadoras. A reconstituição da paisagem e ad propriedade territorial da cidade nos anos 1850 ainda aguarda pesquisadores.
Mas, o impulso inicial para preenchê-las foi dado. E bastam as tentativas de reconstituição das plantas de Francisco Pereira da Silva para justificar a leitura dessa obra, reeditada pela Fundesc em 1991. O mapa de 1865 fornece o traçado das ruas, nomeadas por critérios políticos, estéticos e religiosos.
Na planta de 1855, estão discriminados a lagoa Vermelha, os sítios Santo Antônio, Maçaranduba, Olaria e Caatinga, futuros bairros Santo Antônio, Industrial, Centro e região da praça da Bandeira. Este mapa também registra os riachos Olaria, Caborge e Aracaju, que desaguava, provavelmente, junto à fábrica de Tecidos Sergipe Industrial.
E por falar em riacho do Aracaju, já não seria oportuno fincar uma placa indicativa desse fenômeno geo-histórico durante as comemorações do sesquicentenário da capital? Devemos a Fernando Porto, pelo menos, o caminho para identificar o local desse monumento.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: Fernando Porto. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 07 mar. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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