sábado, 24 de julho de 2004

Mãe, a primeira professora de História

Quando Balthazar de Araújo Góis (1853/1844) resolveu publicar suas Apostilas de Pedagogia (1905), já havia ministrado aulas de francês, aritmética, geografia, astronomia, português e de pedagogia. Acumulava também a experiência de gestor educacional com passagens pela direção do Atheneu, Grupo Modelo e Central, Liceu Laranjeirense e da Instrução Pública do Estado. O livro recolheria, assim, matéria de uma vida de “observação de casos”, às vezes, “caprichosos”. Casos que alimentavam as regras da pedagogia, a esse tempo, uma “arte” (e não ciência) de educar crianças –  uma “educação” em dimensões reduzidas.
Mas não era somente um “formulário de receitas para doentes e doenças mais ou menos conhecidas”, como bem lembrou Oliveira Teles (1905, p 14). Cobria os conceitos elementares da pedagogia e da psicologia, discorria sobre as clássicas educações física, moral e intelectual, e apresentava os modelos de diplomas e de formulários de controle utilizados pela burocracia republicana.
Nas Apostilas há síntese de um século (o século XIX) de refinamentos dos preceitos responsáveis por afastar o homem do seu “estado de natureza” (educar). Rousseau, Pestalozzi, Froebel, Spencer e Kalkins entram e saem no desfile dos princípios e dos exemplos cunhados por Balthazar. O mestre combina evolução/progresso com idéia espiritualista de alma, com o ataque aos sete pecados capitais, o cultivo do espírito cristão e uma concepção utilitarista da vida. No entanto, pondera o mesmo Oliveira Teles, “não manifesta um ecletismo dependente e servil”.  Mas, o que seria um ecletismo servil? Bem, deixemos o filósofo em paz.
Quando o Conselho Superior da Instrução Pública examinou os originais das Apostilas (1902), aprovando sua impressão e adoção pelo ensino público, nosso mestre Balthazar também já era um conhecido historiador de vidas e da política. Sua obra de maior fôlego (1891) intitulou-se A República em Sergipe: apontamentos para a história – 1870/1889. Tratava-se de um libelo contra as elites “incultas” e “pobres de espírito” que retardaram ao máximo o desenvolvimento da idéia republicana em Sergipe. Essa narrativa tinha a função de estabelecer os fatos para os historiadores do futuro. A história tinha o poder de revelar a fatalidade das novas idéias, a inexorabilidade dos costumes superiores. (Cf. A Semana em foco, 30 nov./6 dez. 2003).
Assim, fechada a equação, a pedagogia civilizaria a criança – desenvolvendo, estimulando e aperfeiçoando as faculdades da alma (sensibilidade, vontade e inteligência) – e o saber histórico demonstraria a necessidade e as vantagens do processo civilizatório. Certo? Errado! Para Balthazar Góis, no que dizia respeito ao ensino primário, a história não tinha utilidade alguma, pelo menos a história que ele e o restante dos historiadores sergipanos costumavam escrever no final do século XIX e início do XX: “tomado como resenha dos fatos, que os meninos não compreendem, é um saber inútil; em relação ao tempo e ao trabalho perdido, um grande prejuízo; e em relação ao tédio e perda de amor ao estudo que o ensino assim feito produz no espírito das crianças, é ele um grande mal.” (Góis, 1905, p. 94).
E por que tanto descrédito para com o ensino de história na escola primária sergipana? Estaria no rastro de Rousseau (história só na idade da razão) ou no de Spencer (história só para a educação dos deveres políticos e sociais)? O problema estaria na idade da criança ou na forma e conteúdo da história produzida em seu tempo (história política e factual stricto sensu)? Pode ser tudo isso junto. Mas, Balthazar não desce às justificações. Ancora-se em  Graça Afreixo e Henrique Freire e diz afastar-se de João Ribeiro (1890) – que propunha um primário dotado de história, geografia, ciências físicas e naturais, desenho, música, em concurso para a direção da Instrução Pública de Minas Gerais.
Na verdade, não há tanto descrédito em relação ao saber de Clio. O problema é que temos o costume de examinar a história da educação com o entendimento de ensino do século XX, ou seja, toda a educação é sinônimo de educação intelectual (escola, carteiras, disciplinas etc.). Ocorre que, no tempo de Balthazar, educação delineava nitidamente a dimensão do físico, moral e do intelectual, que correspondiam exatamente ao trato das faculdades da alma. E o lugar da história estava reservado para a dimensão moral, para o disciplinamento das vontades e das inclinações humanas. Era a educação moral que encaminhava os homens “para o Bem, na vida social.” (Góis, 1905, p. 35-39).
Assim, na formação do caráter, o ensino de história tinha muita utilidade. Ela acontecia em ambiente familiar: “em seus lazeres, especialmente no serão, a mãe de família, reunindo seus filhinhos, lhes contará histórias morais e maravilhosas, com que estimulará sua vontade e encantará a sua imaginação. Também as lendas e histórias dos membros da própria família, e da circunscrição a que pertence, e do país natal, podem oferecer feitos úteis, ações ilustres, cujo elogio fará, no intuito de despertar no ânimo infantil o desejo natural de imitar esses belos modelos.” (idem, p. 40).
Como se vê, para Balthazar não era tanto a forma ou o conteúdo em si que importavam na educação, mas a faculdade a ser atingida e os meios para realizá-lo. Daí, o porquê da manutenção da disciplina história nas escolas normais em situações em que a mesma não pertencia ao currículo primário. A escola formaria boas professoras, boas esposas e boas mães. E mães, obviamente, deveriam ser boas professoras, de história, inclusive, para a educação moral das suas crianças.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Mãe, a primeira professora de História. A Semana em Foco, Aracaju, 24 jul. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2004/08/mae-primeira-professora-de-historia.html>.

Referências 
FREITAS, Itamar. A República de Balthazar. A Semana em Foco, Aracaju, 30 nov. 2003.
GÓIS, Balthazar de Araújo. Apostilas de Pedagogia. Rio de Janeiro: M. Orosco, 1905. (livro do IHGS)
TELES, Manoel dos Passos de Oliveira. Apostilas de pedagogia. In: Sergipenses, [Aracaju]: [1905]. v. 2. (livro inédito).
GUARANÁ, Armindo. Dicionário biobibliográfico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925.

domingo, 11 de julho de 2004

As memórias de Antônio Travassos

Rememorar e fazer reviver o mito, historiar é constrangê-lo. Esse clichê faz parte do cotidiano dos historiadores e o livro lançado em junho último oferece boa oportunidade para refletirmos sobre o lugar comum.
A obra reúne dois trabalhos do comendador Antônio José da Silva Travassos (1804/1872): Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe e Memorial histórico da Província de Sergipe. Ambos foram produzidos no terceiro quartel do século XIX e narram a experiência sergipana desde a colônia ao tempo de Pedro II.
Muito feliz a iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura de reuni-los e divulgá-los para um conjunto de leitores mais amplo, justamente no ano em que se comemora o bicentenário do nascimento do autor. Talvez seja sintomático que, após a “Nota do organizador” – Luiz Antônio Barreto –, o texto introdutório – de Maria Izabel Ladeira da Silva – tenha recebido o título de “Elogio ao comendador”.
O “Elogio” fornece dados biográficos do autor, caracteriza-o como empreendedor e benemerente. Também comenta a importância dos textos como fonte histórica e historiográfica e alguns dos principais fatos estabelecidos. Quanto à “Nota”, lá estão os objetivos dos trabalhos de Travassos, o registro das sucessivas edições dos Apontamentos (1875, 1907, 1912, 1916) e do seu uso. O organizador também chama a atenção para a necessidade de serem localizadas as cartas topográfica e hidrográfica anexadas aos originais.
A “Nota”, o “Elogio” e, ainda, a “Fortuna critica” – produzida por Luiz Antônio Barreto, João José do Monte (neto do autor) e Maria Thétis Nunes –, são suficientes para o sucesso dessa tarefa de entronizar o Antônio Travassos na “galeria dos principais historiadores sergipanos”. Assim, uma típica operação de memória – a memória da cultura intelectual, da historiografia sergipana – foi realizada. Operação esta que possibilita, por outro lado, o exercício da crítica ao trabalho memorialístico do autor.
Óbvio que o depuramento já está presente na publicação em foco, quando o transcritor corrige sistematicamente, em notas de pé de página, as datas de nomeação e de posse dos presidentes da Província de Sergipe, presentes nos Apontamentos.
O constrangimento das memórias de Travassos – e memória em triplo sentido: gênero literário, método de acessar o passado e a própria lembrança – já se havia efetuado por José Calazans, na sua “Introdução à historiografia sergipana” (1973). O mestre apontou alguns equívocos do santamarense como, por exemplo, “a afirmação de que os holandeses edificaram, em São Cristóvão, a igreja matriz, os conventos do Carmo e São Francisco, bem como a igreja e a casa da Misericórdia, acrescentando que no frontispício da matriz achavam-se as armas dos holandeses, raspadas por ocasião da independência do Brasil”. (Calazans, 1992, p. 13).
Não sei por que José Calazans encerrou por aí os seus comentários. Ele poderia dizer que os holandeses nunca transferiram a capital São Cristóvão, que havia erros de datação sobre a origem de vilas e freguesias, que a narrativa da rendição dos índios era digna do anedotário dos cursinhos de pré-vestibular. Quem seria o grande protetor da memória de Travassos nos anos 1970? Talvez as “regras do bem viver em Sergipe” tenham pesado sobre Calazans no ato de ajuizar a obra do comendador.
Outra deficiência verificada pelos historiadores que tem consultado os Apontamentos – referida também no “Elogio” de Isabel Ladeira – é o descompromisso de Travassos com a indicação das fontes. De onde o autor colhera as informações sobre os nomes, os domínios e destinos dos grupos e dos chefes indígenas do século XVI? Seria a versão corrente entre os populares? Beatriz Góis Dantas (1991), fiel aos princípios da Escola Metódica francesa – “pas de document, pas d’histoire” –, não utilizou no livro didático a divisão geopolítica das tribos indígenas prescrita por Travassos.
Felisbelo Freire, que produziu há cento e dez anos antes de Beatriz Góis, não arriscou afirmar em sua História de Sergipe (1891) que o território sergipano estava exatamente dividido entre “seis departamentos, sendo comandantes ou caciques dessas divisões” as figuras de Muribeca (entre o rio Itapicuru e Vasa-barris), Sergipe (Vasa-barris/Sergipe), Siriri (Sergipe/Siriri), Japaratuba (Siriri/Poxim do Norte), Pacatuba (Poxim do Norte/serra da Tabanga)  e Pindaíba (serra da Tabanga/riacho Tamanduá).
Hoje, qualquer cidadão de letramento mediano não aceitará como verossímil a conquista de Sergipe narrada por Travassos: Cristóvão de Barros excursionava com “duas embarcações de pequena lotação... algumas praças, armamentos e munições.” Após uma tempestade, saltou em terra e tentou comunicar-se com os índios. De nada adiantaram “os meios brandos e suasórios” do português. Os caciques Sergipe e Siriri resistiram e “romperam as hostilidades. Nos ataques havidos, morreram não só Siriri, como muitos dos seus companheiros, e sendo prisioneiros outros” (p. 27-29).
Essas notas não devem desbotar a iniciativa da publicação porque mais importante que a história em si (irrecuperável) é a forma como ela foi narrada; é saber como Travassos corrigiu os trabalhos anteriores; é ter notícias sobre a consciência de historicidade que possuíam os homens do século XIX e sobre o quantum de conhecimento que os “fazendeiros rústicos” acumulavam do seu passado tricentenário; é também compreender (se), como e por que os Apontamentos foram depurados nos sucessivos originais localizados até o momento. Com o livro em foco tais questões já podem ser investigadas.
Na edição da semana passada, comentei sobre as possibilidades de pesquisa que foram abertas com a publicação dos Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe de José Antônio Travassos. O livro foi organizado e anotado por Luiz Antônio Barreto e comentado por Maria Izabel Ladeira Silva, numa meritória iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura (Aracaju, 2004). Hoje, teço considerações sobre segundo e último texto dessa obra intitulado Memorial histórico da política da Província de Sergipe.
Já tive oportunidade de escrever em outro periódico – e aqui apenas resumo os tópicos principais – que os Apontamentos fazem a síntese da experiência sergipana, e o Memorial retrata somente uma faceta, a vivência política. Enquanto nos Apontamentos, o autor procura “seduzir o Imperador para o seu projeto, do qual se beneficiará como fazendeiro e potencial contratante” (Dantas, 1995, p. 6), no Memorialestá implícita a idéia de “guiar” o novo presidente de Sergipe para o projeto político pessoal do santamarense Travassos (cf. Freitas, 2002, p. 61). Isso faz desse segundo texto, além de fonte sobre a escrita da história, um representativo testemunho das formas de se pensar e praticar a política numa Província de “quarta classe”, como era o nosso caso na década de 1850. (cf. Almeida, 1984, p. 251).
Para avaliar a exposição desses projetos, basta observar as intrusões do narrador – bem comportado e organizado. Um nome, uma data, uma contribuição ao progresso de Sergipe, o clima de disputa entre facções dominantes e está pronta a “história” de determinado período de governo. Mas, a situação altera-se quando entra em cena um personagem chamado Comendador Travassos. Nesses momentos, como a visita do Imperador Pedro II a Sergipe, o narrador permite-se uma longa digressão, um tanto “excêntrica da história”.
É um narrador “isento” quando se refere ao personagem Comendador Travassos, citado uma dezena de vezes. Mas, é, abertamente, um liberal – mesmo partido do Comendador Travassos – quando relaciona a ação dos conservadores – partido das famílias Dias Coelho, e Boto – à rapinagem, prisões ilegais, fraudes eleitorais e assassinatos.
Outra forma de acompanhar o movimento político e a intenção monumentalista de Travassos é examinar a questão dos tempos. No Memorial, o tempo histórico acompanha, não raro, com bastante proporcionalidade, o tempo da narrativa que só é quebrada, quando entram na trama os fatos que conformaram a Revolução de Santo Amaro, a Guerra do Relógio, o momento da “conciliação”, além da citada visita do Imperador. Nesses instantes, o cronômetro pára, e o narrador tem espaço livre para descrever os acontecimentos.
Não se diga, porém, que tal coincidência está relacionada à proximidade de Travassos com os referidos episódios. O Comendador também foi partícipe da transferência da Capital, fato dos mais rumorosos entre os grupos políticos do período. Entretanto, nem por isso é explorada a questão. A mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju é assunto que ocupa duas linhas do Memorial. Para os novos historiadores, essa hipotética omissão do narrador poderá render páginas e páginas sobre a relação entre escrita da história e atividade política do período em foco.
Entre as intrusões e afrouxamento do tempo narrativo, o leitor poderá questionar se os “conselhos ao príncipe” foram seguidos ao pé da letra, se o conhecimento do passado foi determinante na ação política de Silva Moraes, Presidente de Sergipe. Certamente, ficará impressionado com as sugestões do Comendador para o progresso da Província no que diz respeito à produção açucareira: a modernização da atividade – separando as esferas do cultivo e da indústria – e a extinção do sistema escravocrata. Ocorre que a modernização da atividade açucareira e a reorganização do trabalho já encontraram seus explicadores no século XX (cf. Almeida, 1993; Passos Sobrinho, 2000) e mais surpreso ficará o leitor de Travassos quando conhecer o número de variáveis incorporadas ao processo histórico local que acabaram por condenar Sergipe à submissão político-econômica da Bahia, apesar de sua clarividência.
Fará melhor proveito, portanto, o leitor que, não priorizando o exame das capacidades preditivas do Travassos, puder centrar seus estudos na apreciação das várias “intrusões” do narrador relativas, por exemplo, não só à mentalidade das elites políticas do período, mas também ao grau de civilidade da população sergipana, ao poder de coerção exercido pela Bahia, ao nível de organização dos proprietários rurais, ao caráter antidespótico do Partido Liberal, entre outras.
Com esses esparsos comentários gostaria apenas de reiterar a importância da iniciativa da publicação das memórias do Comendador. Conservar peças e facilitar o acesso aos textos representa um substancioso estímulo aos pesquisadores do século XXI a preencherem com alguma interpretação essa verdadeira “tábua de pirulitos” que é a historiografia sobre o século XIX sergipano. É a partir da divulgação e da crítica sistemática à memorialística produzida no século XIX que se poderá pensar nas possibilidades de uma síntese sobre a experiência local desse período. É também do exame de obras com tais características que se poderá compreender a suposta transição da narrativa histórica local do seu status de crônica para o caráter de ciência.
Em tal sentido, faço minhas as palavras de Izabel Ladeira: “Nós que lidamos com o ensino e a pesquisa histórica em nosso dia a dia nos sentimos premiados com esta nova edição” dos Apontamentos e do Memorial.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Memórias de  Antônio Travassos (Final). A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 jul. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.