domingo, 26 de setembro de 2004

Os sergipenses de Oliveira Teles

Do mesmo modo que Armindo Guaraná (1848/1924) representa o intelectual sergipano emigrado, Manoel dos Passos de Oliveira Telles (1859/193]5]) faz as vezes dos “doutores que ficaram.” Será que essas diferenças de trajetória modificariam significativamente a forma e a difusão da escrita desses dois tipos dominantes?
Da minha parte, arrisco uma hipótese um tanto excêntrica. Penso que no final do século XIX, os homens de província estavam tão ou mais próximos dos centros de discussão sobre história, filosofia e literatura que nesses tempos de internet. Mas, isso é coisa para ser demonstrada a longo prazo. Aqui, gostaria de revisitar os textos desse sergipanófilo que escrevia ou falava pelos cotovelos e brindou-nos, ainda em vida, com a reescritura dos seus trabalhos na área de história, política, costumes, poesia e crítica literária. Comentemos apenas sobre o Oliveira Telles historiador, partindo do inédito Sergipenses v. 2. (cf. IHGS, Cx. 16, doc. n. 01, 517 p.).
O livro foi reescrito nos mesmos moldes do primeiro volume (1903).  É uma coletânea de notas de memória, falas ou artigos elaborados entre 1871 e 1911, em sua maioria, publicados em jornais e folhetos e comentados pelo próprio autor.
A história, ou melhor, a intenção de registrar e/ou recuperar os fastos sergipenses está presente em vários artigos. Telles já reconhece um princípio cientificista do historiador – “a insuspeição obstinada e indiferente”. Ele também deixa passar um fim pragmático clássico – a história fornece lições sobre o passado – e considera a religião e a política como os mais poderosos motores da experiência humana. Mas, não persegue somente a ação política e, nem de longe, ação religiosa em Sergipe. Quando denuncia a desmemoria sergipana, ele o faz motivado pelo esquecimento coletivo da magnitude de Horácio Hora e do cinqüentenário da fundação de Aracaju.
Da sua terra, São Cristóvão, ele escreve pouco. Num discurso em 1900, anuncia que vai contar a história do município desde 1892. Mas, logo decepciona. A história se resume à informação sobre o fracasso do Partido Municipal. Maior espaço tiveram as efermérides locais e nacionais. (Seriam textos de antigas preleções?).
Sobre o 8 de julho de 1820 e o 24 de outubro de 1822, uma informação instigante: ambas as datas – da emancipação política e da nomeação do primeiro presidente de Sergipe –, representavam a vitória do pensamento liberal em Sergipe. Nos dois eventos, o cristovense destaca a figura do português, radicado em Maruim, José Pinto de Carvalho: o homem que “projetou melhor orientação à rotina política” local, seja forçando a ação de D. João VI – a emancipação fora um meio de barrar o constitucionalismo – seja impedindo a ação reacionária de Carlos Burlamaque – o nosso primeiro presidente teria recusado-se a jurar à Constituição do Porto. (Até hoje, só li histórias que colocavam o José Pinto de Carvalho no rol dos antisergipanos!).
Ainda sobre o 24 de outubro, há descrição antológica: “Nesse dia, as ruas da cidade [estavam] enfeitadas de ramos verdes... Batalhões patrióticos puxavam o carro triunfante onde ia um rapaz imberbe, em vestes americanas, representando o índio Segipe, que cantava sob cada arcada, as aclamações e músicas populares.” (p. 444).
A biografia, o necrológio, o elogio também têm lugar na coletânea de Oliveira Telles. Afonso Celso, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Olímpio Campos, Felisbelo Freire, homens de partido – e do partido do historiador. A escrita auto-referenciada está dispersa – sobretudo, nos textos de crítica literária, nas simpáticas resenhas das obras de Balthazar Góis e Artur Fortes, nos corretivos aplicados a Euclides da Cunha e Alberto Rangel, na resposta aos desafetos, o editorialista do Correio de Aracaju e o sr. Medeiros de Albuquerque. São fontes que, certamente, a graduanda Isabela Chizoline não deixará de consultar para a sua monografia sobre “a intimidade” de Oliveira Telles.
Das suas pistas auto-biográficas e dos comentários em pé de página, dois produtos merecem destaque por situa-lo como precursor de uma história da cultura local. O primeiro, trata da relevância e das dificuldades de se produzir uma “história da imprensa em Sergipe”. Nele, o autor discute os ciclos vitais, os programas, e as posições de alguns redatores e lista os títulos que pôde recuperar de memória ou por intermédio de amigos como Epifânio Dória.
O segundo texto, “Publicações de sergipanos em Sergipe”, recolhe a produção ficcional e científica impressa em tipografias da terra. Para elaborar o que chamou de “estatística”, Oliveira Telles esbarrou com o problema conceitual: o que é ser sergipano? A exemplo do que fez com os termos “popularização (música sergipana) e “dictérios populares” (linguagem popular de Aracaju), o historiador enfrenta a questão e adota uma definição ainda em uso no IHGS: é sergipano o autor que nasceu na terra e também os outros que “voluntariamente sergipanizaram-se e aqui dormem o derradeiro sono.” (p. 150).
Há, nos dois textos, a intenção de firmar-se na memória intelectual como pioneiro. O trabalho sobre literatura, não deixa pistas sobre o seu concorrente – provavelmente, Prado Sampaio. No ensaio sobre a história da imprensa, certamente, o ressentimento aflora em relação ao Armindo Guaraná, que mesmo escrevendo um ano depois de Telles (1907), conseguiu divulgar o seu ensaio por meio do IHGB. Nesse caso, o status de emigrado encarnado por Guaraná fez muita diferença. Haveria mais vantagens? Outras pesquisas o dirão.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os Sergipenses de Oliveira Telles. A Semana em Foco, Aracaju, p. 10A-10A, 26 set. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 19 de setembro de 2004

Procura-se um biógrafo

Parece estranho que, depois de biografar mais de seiscentas vidas brasileiras, o intelectual Armindo Guaraná ainda não tenha encontrado um biógrafo para a sua própria vida.
Há verbetes sobre o homem no Dicionário que leva o seu nome. Prado Sampaio foi o responsável. O extenso discurso de Damião Mendonça de Santana, pronunciado no centenário de nascimento do sancristovense, também fornece dados sobre a sua experiência pública e privada (Revista do IHGS, 1948, p. 31-55). Por esses trabalhos, pode-se notar o quanto Guaraná “mercadejou” por esse Brasil a fora, estudando ou trabalhando no Piauí, Ceará, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Mas, os textos são marcados pelas circunstâncias de produção; vinculam-se ao campo da memória. São encomiásticos, como se dizia no início do século passado. Dão poucas mostras do valor da ação do personagem nos campos do magistério, magistratura, ficção, etnografia, geografia e da escrita da história.
Sobre o autor, com alguma sorte, pode-se também flagrar um comentário do seu envolvimento na política local. É o que fez Vladimir Carvalho (2000) em A República velha em Itabaiana. Guaraná foi apresentado como um tipo ideal da relação pouco racional entre as funções judiciárias e executivas nos tempos da monarquia: “como todos os magistrados da época, [Guaraná] ingressa na magistratura sem concurso público, dependendo apenas de indicação política. (...) Não estavam os magistrados imunes à política partidária, nela se imiscuindo de forma intensa. Armindo Guaraná... não fugiu à regra. Seus artigos... retratam a participação ativa do juiz de direito nos negócio políticos, a ponto de estes virem a público.”
Mais estranho ainda é o fato de ele e (ou) a esposa Maria Luiza terem organizado o material inicial para facilitar a tarefa de seu “futuro” historiador – historiadores e políticos, deliberadamente, escrevem e organizam material visando o futuro. No Instituto Histórico e Geográfico, entre outros documentos, ainda fora de catálogo, estão depositadas as sentenças proferidas pelo magistrado Guaraná, os artigos publicados em jornais, as notas sobre a repercussão da sua obra magna e o Dicionário biobibliográfico, lançado em 1925. Desse material, duas informações me prenderam a atenção. A polêmica sobre a sua colaboração no Dicionário de Sacramento Blake e a produção de uma corografia de Itabaiana.
O primeiro dado trata-se, provavelmente, de mais um capítulo na disputa identitária entre os Estados de Sergipe e Bahia. A história é a seguinte: entre 1883 e 1902, o baiano AugustoVitorino Alves Sacramento Blake publicou o Dicionário bibliográfico brasileiro, que logo se tornou referência no assunto.
Quando se divulgava o sétimo e último volume, publicou-se uma fotografia de Blake acompanhado por Guaraná, identificado este último como colaborador do primeiro. De imediato, o jornal Bahia interrogou a Blake sobre a participação do sergipano Armindo na consecução da obra monumental, ao que o autor respondeu: “igonoro”. Infelizmente, o Vitorino já havia declarado, no terceiro volume, que Guaraná, não somente participara na elaboração de verbetes, como contribuíra para que muitos erros fossem extirpados dos demais.
Essa ingratidão desmedida provocou a intervenção de Manuel Curvelo de Mendonça – outro sergipano – e a polêmica ganhou as páginas do Jornal do Brasil. Guaraná saiu em defesa do seu nome. Publicou testemunhos de José Xavier Pires, funcionário da Imprensa Nacional, e de Silvio Romero. Ameaçou invocar o depoimento de Araripe Júnior, Moreira Guimarães, Laudelino Freire, Olavo Bilac, Ramiz Galvão, Rocha Pombo e de outros tantos intelectuais do Pará, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Como trunfo do seu trabalho, [guardou as provas do livro em disputa]. Mas, a grande vingança viria duas décadas depois. Ele produziu um impresso muito bem referenciado no Brasil em termos de levantamento bibliográfico coletivo, que é o nosso Dicionário biobibliográfico Armindo Guaraná.
O outro trabalho que me chamou à curiosidade no acervo foi a sua “Descrição de Itabaiana”. Pela data de publicação (14 nov. 1886) e estrutura textual pode, certamente, tratar-se da primeira corografia publicada em Sergipe. É trabalho sucinto. Segue de perto o esquema das corografias provinciais e municipais publicadas no século XIX. Diríamos hoje, que se trata de uma descrição física – incluindo-se nesse físico, os aspectos econômicos e sociais – como elementos de história política. Depõe sobre a situação geográfica, sobre orografia, hidrografia, condições de salubridade, riquezas minerais, fauna e flora, equipamentos urbanos – edificações, abastecimento de água etc. – demografia, produção agrícola, pecuária, industrial, comercial, instrução pública, situação eclesiástica, judiciária, além de rendas, distâncias em relação as demais localidades da província e “curiosidade natural” – um lago sobre a serra de Itabaiana.
O tópico “história”, como de costume nas corografias, é bem curtinho: os primeiros ocupantes, a primeira propriedade, a ereção da paróquia, delimitação da freguesia e da comarca etc. Mas, a “Descrição” deixa vazar algo de crítico no espírito de Armindo Guaraná quando se propunha a registrar aspectos da vida coletiva. É preciso captar esse tipo de indício, lembrando sempre que os escritos anteriores a 1891 são ainda mais preciosos. É que ainda não existia a História de Sergipe de Freire.
Penso que um futuro biógrafo de Armindo Guaraná poderá dar novo significado  a esses gêneros bastante comuns no século XIX – a biografia, a corografia – e que foram soterrados, inclusive, pela magnitude da síntese de Felisbelo.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Procura-se um biógrafo. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 19 set. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 12 de setembro de 2004

Retalhos de Severiano Cardoso

Severiano Cardoso (1840/1907) é um daqueles sergipanos do século XIX com os quais se tropeça no “pó dos arquivos” com a promessa de monografia. Os elogios endereçados ao personagem por Armindo Guaraná chamam a atenção: “nenhum outro o excedeu em competência e amor à instrução, nem houve quem melhor soubesse difundir o ensino no espírito dos seus jovens discípulos.” (Guaraná, 1925, p. 259). Idênticos qualificativos lhe são atribuídos por Acrísio Torres, para quem o Severiano, além de “precursor” dos dramas infantis em Sergipe, co-responsabilizou-se pela educação das famílias Resende, Franco, Dantas e Campos. (Torres, 1999, p. 28). Também chama a atenção o juízo de Manoel dos Passos de Oliveira Teles, às vésperas da morte do intelectual estanciano: Severiano Cardoso é “o mais notável poeta” de Sergipe.” (Teles, 1907).
Apesar dos louvores, e por ser, até então, considerado um personagem “menor” – diante de um Felisbelo Freire ou dos outros Cardosos da mesma família, – a gente vai protelando a leitura, até que um dia ele se impõe como objeto de pesquisa. Para mim, Severiano ganhou importância em 2002 quando li, no Almanaque Sergipano (1899, p. 242-256) a sucinta monografia “Lagarto: história e costumes”, um texto singular para a historiografia do final do século XIX em termos de temática e de didaticidade. (Há juízo inédito de Ibarê Dantas sobre esse trabalho, produzido em 2002). 
Depois do encontro no Almanaque, ouvi o comentário de Jorge Carvalho que “flagrou” o Severiano ganhando uma “ajudinha” do irmão Brício Cardoso no aparelho do Estado. Brício determinou o emprego de hinos escolares em Aracaju. e o Severiano foi chamado para criar as peças.
Christianne Gally também encrencou uma vez com o poeta. Ao estudar o Brício Cardoso, a moça das gramáticas começou a suspeitar que as peças teatrais assinadas por Severiano poderiam ter o mano como verdadeiro autor. Não foi à frente com a suspeita, porém.
Este ano, Vera dos Santos trouxe a mais grata surpresa sobre Severiano. Ao estudar A geografia e os seus livros didáticos sobre Sergipe (NPGED/UFS, 2004), anunciou a intenção de Severiano Cardoso de produzir um livro didático sobre a matéria.
Neste mês de agosto, por fim, Severiano Cardoso foi notícia, novamente, quando Aglaé Alencar colocou os estagiários do IHGS em guarda para localizar a literatura teatral desse escritor. Não foi por acaso. Severiano é o patrono da cadeira n. 12, da Academia Sergipana de Letras, ocupada agora pela referida professora, também musicista e dramaturga.
Como afirmei, já conhecia a verve de historiador, pelas páginas do Almanaque Sergipano. Mas, não sabia que o “Lagarto: história e costumes” tratava-se apenas de um fragmento. O texto é parte constituinte de um trabalho didático que teve a escritura, provavelmente, abandonada na última década do século XIX. Um livro de corografia.
Mas, o que vem a ser uma corografia? Os dicionários da língua portuguesa, publicados no século XIX, conservaram o significado de descrição de uma localidade em particular. Morais Silva (1813) referia-se a “reino” ou “região”, Silva Pinto (1832) “de uma terra”, Eduardo de Faria (1850), “de um país”. Foi Domingos Vieira (1873) quem registrou sentido mais preciso, repetido no século XX por Laudelino Freire (1940), Caldas Aulete (1958) e Aurélio Buarque de Holanda (1975): “descrição de um país, assim como a geografia é a descrição da terra, e a topografia a de um lugar particular.” (p. 216, v. 2).
A precisão de Domingos Vieira informa sobre o estatuto da ciência da geografia e também sobre a presença da corografia na educação intelectual da segunda metade do século XIX. A Corografia brasílica (1817, 1933) de Manuel Aires de Casal (1754/1834) é a primeira obra que vem à memória. Ela serviu de modelo às diversas iniciativas regionais, provinciais, municipais etc. de descrever os aspectos físicos e políticos desses recortes espaciais por todo o período monárquico.
Ocorre que num tempo onde os saberes não estavam bem delimitados não era tão clara a definição de uma corografia como obra específica de geografia. O próprio “pai da geografia” brasileira, Aires de Casal, expressou a dubiedade no título do seu trabalho: Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do reino do Brasil. Como isso, quero dizer que, independentemente das conclusões a que cheguemos sobre o emprego da expressão “corografia”, a narrativa histórica estava lá em Casal, Silva Lisboa, e em Laudelino Freire. Também fez parte da suposta corografia de Severiano, que (pelo menos, para mim) continuaria hibernando no arquivo do IHGS, provavelmente, não fosse o toque oportuno de Vera dos Santos.
Os originais constam de cinqüenta e seis folhas escritas à mão. Parece tratar-se de um rascunho de obra inacabada. Não traz assinatura, nem título e se inicia com uma “notícia histórica” sobre o Estado de Sergipe. Seguem-se-lhes a situação, limites, aspectos físicos, clima, salubridade, orografia, hidrografia e os textos sobre cidades vilas e povoados.
O autor não se estendeu muito sobre o “Estado” de Sergipe. Quarenta e sete páginas foram dedicadas às cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão. Há fragmentos sobre o rio Poxim também. Mas, o maior espaço entre as localidades foi destinado às cidades de Lagarto e Aracaju. Como o escrito sobre a terra “papa-jaca” já foi divulgado no Almanaque, reservarei maior atenção sobre o que Severiano disse da cidade de Aracaju há pouco mais de um século.
* * *
Na semana passada (A Semana, 29 ago./04 set.), fiz alguns registros sobre a figura do educador, poeta e escritor  Severiano Maurício Cardoso (1840/1907) e do interesse que a sua obra tem despertado nos últimos meses. Também dei notícia sobre uma suposta obra de corografia, escrita, provavelmente, na última década de 1890. Por que Severiano não foi à frente com o livro didático? Existe outro original dessa obra? Silva Lisboa e Laudelino Freire teriam-no cortado o caminho, publicando as suas corografias em tempo recorde? Não arriscamos opiniões. É mais urgente proceder uma crítica de autoria para confirmá-lo como o autor do manuscrito que se encontra no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Os verbetes que tratam das cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão seguem de perto uma grade diplomática que se espelha em parte na descrição efetuada sobre o Estado de Sergipe. Eles informam sobre o número de habitantes, a situação geográfica, dão notícia histórica sobre a fundação, o estado geral de ruas praças e edifícios, a atividade produtiva – comércio indústria e serviços, aspectos sobre a salubridade, os equipamentos escolares e relação sucinta de povoados.
A Aracaju de Severiano Cardoso é cidade “ainda nova”. Era nova também para Silva Lisboa (Corografia...) que a ela se referia como “a nova capital” nos idos de 1897. Talvez por isso, trate pouco do seu passado, muito menos que sobre o de Estância e de Lagarto. Pode ser sensato pensar também que a ausência da diacronia seja um traço dominante do gênero – corografia. Trata-se mais de um flagrante sobre a economia e os equipamentos que denotam a urbanidade da jovem Capital.
Tinha então quinze mil habitantes, quatro praças, vinte e duas ruas que não ultrapassavam a extensão de aproximadamente quatro quilômetros... Segue Severiano a listar edificações, a contabilizar estabelecimentos públicos e residenciais, e a comentar sobre o movimento comercial da cidade. Tudo muito ligeiro e resumido. Mas, para bom entendedor, suas quase-listas oferecem, pelo menos, quatro informações importantes sobre a história social de Aracaju.
A primeira está ligada ao mundo do trabalho. A sua tipologia das empresas até então existentes sugere uma hierarquia que contempla a malha da atividade produtiva. Começa com a grande companhia de rebocagem de navios, os serviços tipográficos, bancários, de hotelaria; passa pelas fábricas, pelo comércio de fazendas, ferragens e de bebidas e prossegue com uma gama de pequenos negócios: botequins, bodegas, farmácias, padarias, relojoaria, açougue, confeitaria, ferreiro, marceneiro, sapateiro, tamanqueiro, funileiro, cocheiro, encanador, ourives, fogueteiro, carvoeiro e latoeiro.
O segundo dado importante é o comentário sobre a morada dos pobres no final no século XIX. Uma informação carregada de ironia e de forte dose de sergipanismo é o que se pode ver na sua frase: “Existe... um número assaz considerável de casas inferiores, cobertas de telhas ou de palmas de coqueiro, e edificadas sem a mínima regularidade, constituindo os subúrbios (...) que habitam [as] classes mais necessitadas. São moradias pobres, singelas, modestas; mas relativamente limpas, arejadas e claras, alegres, como o povo se exprime, muito distanciadas, no tocante à comodidade e asseio, da cortiçada abjecta imunda que faz a vergonha e a desonra das grandes cidades, sem excluir a opulenta [e] luxuosa capital da nossa esperançosa República.” (Cardoso, 189-, f. 11 v., f. 12, grifos do autor).
As duas últimas notas importantes para a história de Aracaju, longe do verbete sobre a cidade, estão dispersas nos fragmentos sobre a hidrografia de Sergipe e no texto correspondente ao município de São Cristóvão. No início da República, a velha capital estava “em decadência progressiva, após a retirada da sede governamental...quase [arruinada]”, lamentou Severiano. Do alto da colina que abrigava “a melhor edificação da ex-capital” ainda se viam as grandes fendas provocadas pelas chuvas, “enormes [brocas] a que o vulgo chama[va] de barrocões.”
É possível que se trate do famoso barrocão José Aleixo, citado com estardalhaço pelo historiador Sebrão Sobrinho. O mesmo barrocão que o conhecido Armindo Guaraná avaliava como o “maior mal” da sua adorada São Cristóvão. (cf. Guaraná, 1873). O mais interessante da nota de Severiano, todavia, está na importância conferida ao referido fenômeno – o barrocão – provocado pela erosão: “foi essa uma das causas concorrentes para a mudança da capital.” (Cardoso, f. 21).
 Por fim, um dado sobre o rio Aracaju. Conta Severiano que um dos problemas da capital ainda era a carência de “boa água potável”. Já se havia tentado a canalização da água dos rios Pitanga e Poxim para abastecer à população de Aracaju. Até aí, tudo conhecido na historiografia local. A novidade, para mim, foi a notícia do plano de desviar o leito do rio Poxim através de um canal que cortaria a cidade, “engrossando o ribeiro Aracaju, que se lança na Cotinguiba ao pé da fábrica de Tecidos”.
Se realizada fosse a obra, teria sido a sorte grande do ribeiro Aracaju. Além de dar de beber aos moradores da capital, seria, muito provavelmente, reconhecido como o rio que dá nome à cidade e ganharia muitas homenagens no ano do sesquicentenário. Mas, isso é uma outra história que o Severiano vai ajudar a contar quando o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe começar a expor o seu acervo relativo aos primeiros tempos da ilustre aniversariante do 17 de março de 2005.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Retalhos de Severiano Cardoso (Final). A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 12 set. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.