terça-feira, 13 de setembro de 2005

Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de História de Sergipe

João Mulungu - Herói da resistência
negra em Sergipe. Foto: Memorial 
João Mulungu. Aracaju-SE. 

Inicialmente, gostaria de agradecer aos promotores do evento pelo convite, aos professores Joceneide Cunha e Antônio Bittencourt Júnior, à Coordenação de História e ao público presente.
Quero informar também a minha fala, dentro do tema sugerido pela organização do evento, tem como objeto principal as imagens de negros, brancos e índios veiculadas no livro didático em forma de ilustrações. O livro didático aqui é definido como um artefato de papel e tinta que é costumeiramente empregado em situação didática (Munakata).
A expressão poder, também inserta no título da conferência, tem o sentido de “ter a possibilidade de...”, “capacidade de agir”, “direito de fazer alguma coisa”, em síntese, “autoridade”. Assim, poder nos manuais didáticos de história está relacionado à política em sentido Weberiano: ação de fazer valer a sua vontade ou ação de influenciar na vontade do outro. Dessa forma, o poder aqui tratado é o poder do construtor de livros didáticos; é o poder do escritor de história que está em jogo. O poder de organizar a memória coletiva dos que habitam o estado de Sergipe nos últimos 100 anos.
Sobre a idéia de negros, brancos e índios, evidentemente, não poderei me alongar na discussão sobre identidade negra, por exemplo, ao longo do século XX. Tratarei de representações sobre negros, brancos e índios construídas por pessoas que, até onde conheço, não se assumiram (não se identificaram) como negros ou índios. O caráter identitário de negros, brancos e índios fica portanto, e inevitavelmente, relacionado à cor da pele e à traços fisionômicos reconhecidos pelo senso comum.
Resta por fim, apontar os três os movimentos e objetivos desta fala: 1) fazer um brevíssimo histórico do livro didático de história de Sergipe; 2) apresentar de alguns flagrantes de como a imagem de negros, brancos e índios é veiculada nos livros didáticos de história de Sergipe para Crianças – ou para o primário e, depois, para as primeiras quatro séries do ensino fundamental; 3) estimular a discussão sobre os sentidos que as imagens e números resultantes desses levantamentos pode sugerir em termos de interpretação sobre o tema da noite – “Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de história.
Brevíssimo histórico sobre o livro didático de história de Sergipe
Em Sergipe, os primeiros produtos desse gênero vieram a público logo após a proclamação da República sob a rubrica de corografias (obras descritivas que enfocam regiões, Estados sob os aspectos físicos – limites, clima, relevo, hidrografia etc.;  e políticos – história, representação política, listagem de comarcas, municípios, povoados etc.). Mas, foi ainda no século XIX que surgiu o primeiro livro didático especificamente elaborado para a matéria de Clio. Trata-se de História de Sergipe (Aracaju: Tip. do Estado de Sergipe, 1898), um resumo da obra homônima publicada em 1891 por Felisbelo Freire. O livro nasceu no momento em que alguns dos novos Estados federados buscavam legitimar sua independência política e suas posses territoriais, sendo indicado para uso em escolas primárias e como introdução ao estudo da “história pátria”.
A iniciativa de Laudelino Freire pode não ter surtido o efeito desejado. Um livro não seria didático somente por reduzir textos e concentrar conteúdo. É o que parece ter entendido a Congregação da Escola Normal do Estado de Sergipe que considerou Meu Sergipe (Aracaju: Tipografia Comercial, 1916) de Elias Montalvão como o primeiro “livro puramente didactico... em matéria de História e Corographia de Sergipe”. A aprovação oficial se dera em virtude da adequação da linguagem, segundo o autor, “bem accommodada á comprehensão da creança”. Essa linguagem, nada mais é do que a narrativa da experiência local em forma de contos. Em Meu Sergipe quem conta a história são personagens ligados à vida do estudante como a avó, a tia, os colegas de turma e o professor. A obra foi reeditada em 1919 sem grandes alterações no conteúdo original.
Somente depois de meio século, o ensino primário ganharia novo livro didático. Coube ao cearense Acrísio Torres de Araújo sintetizar a vivência sergipana a partir da trajetória política do executivo estadual. Os capítulos enfocam Colônia, Império e República e cada tópico descreve as principais realizações de cada governante. História de Sergipe (Aracaju: s.n, 1967) é um resumo de História de Sergipe produzida um ano antes para os professores dos cursos normal e colegial. Nesse livro, já existe uma tentativa de relacionar a experiência local à nacional. Para o autor, o livro deveria estimular o amor dos sergipanos  por sua terra e, ainda mais importante, preparar os futuros cidadãos para assumirem as tarefas político-administrativas do Estado. O trabalho de Acrísio Torres transformou-se em coleção que pode ter chegado a uma dezena de títulos voltados para as séries do primário e ginásio durante a década de 1970, parte deles sob a classificação de Estudos Sociais.
Na década de 1980, duas obras foram produzidas: Vamos conhecer Sergipe (Déborah Neves) e O novo Sergipe de Genialda Matos de Oliveira (Rio de Janeiro: MEC/FAE,  1988). Segundo Antônio Wanderley, o primeiro historiador a resenhar essa historiografia específica, são trabalhos pretensiosos; em alguns pontos, são oficialistas e conservadores (Gazeta de Sergipe,10-20 nov.1988). Ambos estão repletos de equívocos em termos de texto e iconografia. Sobre a segunda obra, Luiz Fernando Ribeiro Soutelo foi mais além, solicitando, através do Conselho Estadual de Cultura, o recolhimento imediato da obra diante dos “inúmeros erros geográficos, históricos, econômicos e culturais relativos a Sergipe (Of. CEC n.º 89/88).
Em 1994, mais uma iniciativa de exposição didática, voltada para as séries iniciais do 1º grau foi veiculada no Estado: Sergipe – geografia,  história (São Paulo: FTD, 1994) de Maria Gorete da Rocha Santos. Curiosamente, apresenta-se como uma espécie de síntese das obras já inventariadas. Mantém a narrativa linear de Laudelino Freire e os recortes temáticos inaugurados por Elias Montalvão (conquista, holandeses, transferência da capital, entre outros). Os espaços para as ilustrações são mais amplos que os textos. Mapas, pinturas e paisagens contemporâneas são incorporados à narrativa dentro da proposta de integrar a experiência local à nacional.
A última iniciativa em termos de livro didático, também para o primário, partiu das professores Lenalda Andrade Santos e Terezinha Oliva, ambas participantes dos Textos para a História de Sergipe. Para conhecer a história de Sergipe (Aracaju, Secretaria do Estado da Educação e do Desporto e Lazer/MEC/BIRD, 1998) mantém o objetivo centenário inaugurado por Felisbelo Freire: demonstrar que Sergipe foi o lugar de importantes momentos da história nacional. Entretanto, as estratégias diferem bastante dos trabalhos anteriores, já que incorporam teses e abordagens em vigor na pesquisa universitária. A disposição da matéria, por exemplo, é feita através de temas e não há preocupação rígida em obedecer a uma cronologia. A grande novidade do livro, também o centro da proposta, é trabalhar os conteúdos da história de Sergipe através de elementos do patrimônio cultural.
Depois desse brevíssimo histórico sobre o livro didático voltado para o ensino de história para as séries iniciais do ensino fundamental, vejamos, finalmente, como são representados os negros, índios e brancos. É preciso repetir que nessa fala, dados os limites de tempo, considero apenas as imagens produzidas a partir de ilustrações (desenhos, reprodução de pinturas, vinhetas, fotografias etc.).[1]


Negros, brancos e índios nas ilustrações do livro didáticos de história de Sergipe

Observemos, em primeiro lugar as estatísticas extraídas do exame preliminar que fiz este fim de semana:

Tabela n. 1
Negros, brancos e índios nas ilustrações do livro didático de história de Sergipe para as crianças – 1898/1998


Ano
Autor
Título
N
B
I
Tp
Ti
1898
FREIRE
História de Sergipe (Primário)
0
0
0
0
0
1916
MONTALVÃO
Meu Sergipe (Primário)
0
22
2
24
29
1967
ARAÚJO
História de Sergipe (3ª e 4ª séries)
0
24
1
25
26
1967
ARAÚJO
História de Sergipe, (3ª série, 2 ed.)
0
25
1
26
28
1973
ARAÚJO
História de Sergipe, (3ª série, 3 ed.)
0
21
0
21
26
1973
ARAÚJO
Sergipe e o Brasil (4ª série)
1
18
2
20
27
197[4]
ARAÚJO
História de Sergipe, [3ª série, 4 ed.]
0
22
0
22
29
198_
NEVES
Vamos conhecer Sergipe
0
15
8
22
27
1986
OLIVEIRA
O Novo Sergipe
0
0
0*
0
0
1994
SANTOS
Sergipe: história e geografia
10
23
10
37
62
1998
SANTOS e OLIVA
Para conhecer a história de Sergipe
9
10**
9
40
104
TOTAIS
20
180
33
237
358
(*) Os índios aparecem no módulo “Cultura” – “História de Serigy”.
(**) O restante das ilustrações que retratam pessoas não permite a identificação de brancos, negros e índios.
Obs. Alguns números da coluna “total pessoal” são menores que a soma das colunas “Negros”, “Brancos” 
e “Índios”. Isso ocorre porque a contagem é feita sobre a presença de negros, brancos e índios. 
Há ilustrações que contemplam índios e brancos, outras, negros e brancos, daí a duplicidade da contagem.

O que se pode concluir, preliminarmente, é o seguinte:
1. há um distanciamento progressivo entre o número total de imagens que retratam pessoas e  número total de ilustrações. Isso é o resultado de mudanças em três esferas: a) uma melhoria das técnicas de impressão (mais cores, colocação de mapas, história em quadrinhos etc.); b) há também uma tomada de consciência dos pedagogos sobre o poder da iconografia na relação ensino aprendizagem. O texto escrito, enfim, começa a perder a hegemonia na elaboração do livro didático; c) em termos de historiografia também se pode notar a mudança. A história para crianças começa a distanciar-se do desfile secular dos grandes homens, sejam eles políticos ou intelectuais stricto sensu.
2. Sobre a relação negros, brancos e índios, quantitativamente, se pode perceber a situação majoritária da representação de brancos (180 ocorrências), seguida das representações de índios (33) e, por último, a de negros (20).
3. Distribuindo-se tais números pelos cem anos em foco, veremos a entrada simultânea de índios e brancos em 1916 e a ocorrência da primeira representação de negros em 1973.
4. Distribuindo-se também os números contabilizados em termos absolutos, veremos que, apesar de majoritário, o espaço para a representação branca vai reduzindo-se até chegar a um certo equilíbrio entre negros, brancos e índios. Essa última proporção, que pode ser observada também no gráfico em termos percentuais, novamente, tem relação com a mudança de postura política dos escritores de livros didáticos. A última obra, por exemplo, elaborada por professores universitários, sobre fontes de pesquisa de outros historiadores acadêmicos, pensa a história como saber constituído, não somente sobre a experiência do individual e do político. Os professores também estavam, em 1998, comprometidos com a inclusão da experiência histórica de maiorias postas à margem nos processos decisórios do poder no Brasil.
O exame estatístico é bom indicador dos espaços reservados para negros, brancos e índios. É sugestivo para quem estuda os projetos de identidade sergipana forjados pelas sucessivas gerações de intelectuais da terra. A estatística também demarca o tempo da entronização de negros e índios como agentes da história de Sergipe. Entretanto, paras uma noção mais realista, para um exame mais controlado de tais representações seria necessário efetuar a leitura de cada uma dessas imagens, examinando-as em seus próprios componentes, examinando a sua relação com o texto escrito, e situando-a no desenho da página do livro. Isso não seria possível nesse momento. Em relação à representações sobre o negro, estou analisando no mini curso à tarde.
Mas, para não desperdiçar a curiosidade da platéia, apresentarei agora alguns exemplares dessas representações. Elas podem imprimir nas mentes de vocês algumas imagens de como o espaço da ilustração foi utilizado para construir a identidade do jovem sergipano, estudante das quatro primeiras séries (do primário ou do ensino fundamental).
Considerações finais
O que ser pode concluir a partir da exposição desses flagrantes e do exame estatístico das imagens de negros, brancos e índios? Nada muito diferente dos demais estudos sobre o caso em outros cantos do Brasil.
1. Os negros entram no livro didático no período da monarquia por conta da lei da libertação dos escravos. Assim permanecem até o tempo em que a história sobe ao “terceiro nível”, o plano da cultura. Aí o negro está presente como portador de cultura popular.
3. Os brancos estão presentes na maioria das imagens que retratam pessoas, mantendo a idéia de finalista de progresso instaurado pelos portugueses.
2. Os índios estão no passado colonial. Eles entram no livro didático como feras. A imagem de selvagem se sustenta até os anos 1970, quando são retratados como submissos à religião católica. Nos anos 1990, a imagem do índio dá conta do seu presente. Ele tem vontade própria e demonstra lutar por seus interesses (a terra).
Os maiores condicionantes dessas representações são as mudanças nas tecnologias de impressão, e em termos de pedagogia, historiografia e a política de inclusão suscitada pela constituição de 1988.
Esse rápido estudo não serve de denúncia sobre a exclusão de povos que atuaram na construção do Sergipe que vivenciamos hoje. A exclusão é bastante óbvia. Ele serve como base referencial para aqueles futuros professores das crianças de amanhã. Essa fala quer estimular o aprofundamento do debate sobre o significado das expressões diversidade cultural, inclusão social, identidade sergipana. A palestra, enfim, teve mais o objetivo de fazer com que o graduando em história reflita sobre as possibilidades e limites do historiador na construção do livro didático de história para as crianças. O próximo livro didático produzido em Sergipe deverá, certamente, levar em conta a trajetória dessas representações, respeitando singularidades dos grupos, mas sem recair em novas formas de racismo.


Muito obrigado.

[1] Ilustração é “qualquer gráfico, imagem ou quadro que orna, esclarece ou complementa o texto de uma publicação”.  FARIA, Guilherme. Pequeno dicionário de editoração. Fortaleza: UFC, 1996. p. 63.


Fonte da imagem (João Mulungu): http://mororialjmulungu.blogspot.com/


Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de História. Palestra proferida na Universidade Tiradentes, dentro do Seminário de História e Cultura Africana. Aracaju, 13 set. 2005.