quarta-feira, 5 de abril de 2006

Fausto Cardoso e a teoria da história

Fausto Cardoso (1864/1906)
Jurista e parlamentar sergipano.
Caríssimos alunos, colegas professores e funcionários, boa noite...
Gostaria de agradecer o convite à coordenação do evento, à museóloga Fabiana  Carnevalle – do Memorial de Sergipe – e ao professor Antònio Bittencourt – do Curso de História. Gostaria também de agradecer  à presença de todos.
O tema que trabalharemos nesta fala é o do processo de cientifização da História no Brasil, ou seja, das tentativas  de atribuir um estatuto científico à disciplina História ou à atividade historiadora no país. É na segunda metade do século XIX que percebemos esse esforço. Vários foram os intelectuais que tentaram justificar um lugar para a história no concerto  das ciências. Uns evocando Augusto Comte, outros utilizando Herbert  Spencer, Frederico Ratzel, Thomas Buckle e Ernest Haekel. Às tentativas de cientifização da História, fundadas em teorias desses homens, costuma-se dar o nome de positivismo. Eu sou mais simpático à palavra cientificismo.
O problema central dessa fala pode ser resumido nessa questão: o que os sergipanos pensaram sobre a História-ciência? Há dez anos venho buscando respostas a essa pergunta. Primeiro com João Ribeiro,  Prado Sampaio, Sílvio Romero e, agora, Fausto Cardoso. Devo dizer também que parte das certezas que  me levaram até aqui foram sustentadas pelos trabalhos monográficos que tenho orientado dentro do projeto “Historiografia do século XIX”,  dentre os  quais gostaria de citar  dois que estão em andamento: “A crítica historiográfica  em Sílvio Romero”, de Hermersom de Menezes e “Os sentidos da palavra história na atividade  parlamentar de Fausto Cardoso”,  de Humberto Santos
Mas, para que serve uma pesquisa dessa natureza? Não é um assunto saboroso, é bom avisar de início. Teoria da História não excede nos nomes, datas e fatos pitorescos. Exige um pouco mais de concentração. Mas, o resultado é gratificante. Estudar Fausto Cardoso é uma forma demonstrar a originalidade do pensamento de sergipanos.  Estudar Fausto Cardoso é também uma maneira de esclarecer sobre  os ambientes  de sociabilidade, sobre as redes de intelectuais do Rio de Janeiro, onde estavam os sergipanos mais ilustres na área de história. Enfim, estudar teoria da história em Fausto Cardoso é  também problematizar o uso do famoso rótulo cotidianamente empregado nos cursos de graduação em história: história positivista.
Para essa fala, utilizarei fragmentos da obra A ciência da história. O livro, segundo informam Terezinha Oliva e Armindo Guaraná, teria desaparecido durante um incêndio na Imprensa Nacional do Rio de Janeiro. Para a nossa sorte, Fausto Cardoso publicou quatro artigos na Revista Brasileira, no Rio de Janeiro, no ano de 1895. É sobretudo, com base nesses artigos, no fragmento do livro que tecerei os comentários a seguir.
Agora, relembremos as questões centrais: O que pensou Fausto Cardoso sobre o estatuto científico da história? A História era  ciência? A História poderia ser uma ciência? Que tipo de ciência seria a História?


A idéia de ciência em Fausto Cardoso
Augusto Comte (1798/1857).
Filósofo francês.
Se estamos tratando da cientificidade da História em Fausto Cardoso, a primeira obrigação  que se nos impõe e informar qual a sua idéia de ciência. E ele é claro sobre esse ponto: ciência é “o corpo de doutrina, o conjunto de princípios, a teoria que, em relação ao um grupo determinado de fenômenos, é  capaz de verificações e previsões certas e indubitáveis”. (Cardoso, 1895, p. 238).
Da própria definição já podemos extrair as principais características desse conjunto de princípios que é a ciência. A ciência  busca verificar, ou seja, saber se é verdadeiro ou falso, saber se a hipótese pode ser comprovada.  Mas, onde buscar o certo? O que possibilita a detecção da verdade? Fausto responde: o cientista dever buscar “o que a natureza oferece  de  fixo no meio da mobilidade e da mudança universal” (idem, p. 242). É através da observação do que a natureza oferece de fixo, daquilo que não muda, das regularidades, das similitudes (diríamos com Augusto Comte) que o  cientista vai extrair as leis. Agora podemos chegar a seguinte síntese: a ciência é um conjunto de princípios, produzidos por indução, extraídos a partir das relações fixas entre os fenômenos.
Mas, qual a utilidade desse esforço sistemático de busca pela verdade? Para que serve a ciência? Fausto Cardoso não desce ao detalhe. Os exemplos que apresenta, porém, dão a entender que a ciência possui também uma função utilitária: ela serve para detectar futuros desvios de trajetória e de conduta,  seja em termos individuais ou coletivos, de partido político, por exemplo, seja em termos de projetos políticos de uma nação. Um modelo ajuda a compreender o sentido: se os políticos com mentalidade esclarecida conhecem previamente a escala evolutiva das formas de organização política – famílias, hordas, tribos, clãs, Estados –, eles podem evitar e até corrigir a trajetória de determinado povo ou país. Foi isso que vimos um pouco ontem à noite na palestra da professora Terezinha Oliva. Fausto considerava a República como a forma de organização política mais evoluída. Mas, entendia que o Brasil ainda não estava preparado para exercê-la. Parece que haviam-na proclamado antes da hora. Fausto até propôs a volta à ditadura para corrigir os males da República e depois voltar ao regime mais evoluído.
Observem que esse exemplo foi extraído dos fenômenos humanos, sociais. Ciência em Fausto não divide métodos e critérios para o estudo das coisas humanas e métodos e critérios para as coisas naturais. Lei, verificabilidade e previsibilidade são características de toda a atividade produtora de conhecimento. Ciência é uma só. Os procedimentos devem ser os mesmos para os fenômenos naturais e os fenômenos sociais/humanos. 
Esse entendimento de ciência, essa unicidade do método e das finalidades da ciência, nos obriga a examinar a questão principal dessa fala:  era a História uma ciência?  E agora não há mais suspense, pois Fausto Cardoso é categórico: “a História não tem princípios em regras, não forma corpo de doutrina, corpos de verificações e previsões:  não é ciência”. (Cardoso, 1894, p. 74).
Mas, eu pergunto: Fausto Cardoso não tinha conhecimento da literatura européia sobre o tema?  Não era  justamente na segunda metade  do século XIX que historiadores de diferentes escolas  bradavam em alto e bom som que a História era uma ciência constituída? Não leu Bernheim, Langlois  e Seignobos,  Romero?  A resposta  de Fausto Cardoso está em longos comentários sobre as teses dos historiadores do seu  tempo. Para ele três tipos se destacavam: 1. “os empiristas – aqueles que se limitam a crônicas, biografias narrativas de acontecimentos e descrição de civilizações: 2. os idealistas – aqueles que procuram interpretar a História como...uma cadeia de  fatos que se  sucedem, presididos por uma vontade providencial  [ou] por uma razão  inteligente e livre; 3. os naturalistas – aqueles que compreendem a humanidade como um elemento da natureza e procuram  as leis que regem o desenvolvimento”. (idem, p. 74).  
Para Fausto Cardoso, os três tipos estavam equivocados quando diziam que a História era uma ciência. Os empiristas (principalmente historiadores aferrados na crítica documental, ou mesmo os autodidatas, literatos) erravam por se limitarem ao plano descritivo  e a ligação entre os fatos. Ciência não só descreve: ela descreve, mas também explica. Os idealistas – providencialistas e/ou  racionalistas (aí valem os exemplos de Bossuet e de Hegel) racionalistas – praticavam a indução sem a devida observação do real.  Os  naturalistas, enfim, os que adotavam a comparação,  estatística  e tentavam extrair leis dos fenômenos sociais (T. Buckle), desprezavam, justamente, o que há de mais fixo entre os fenômenos que é a hereditariedade.
Depois de criticar os historiadores pseudo-científicos,  Fausto Cardoso  conclui:  “a história não está madura para dar corpo lógico a uma ciência” (idem, p. 88).

Sobre a possibilidade de a  História vir a ser ciência
Como transformar a História em uma disciplina científica? Para Fausto, três condições seriam necessárias: 1. reduzir toda a matéria da História a uma lei única, a uma unidade; 2. buscar  esta unidade naquilo que é fixo e imutável, que caracteriza  as coletividades humanas (a lei da hereditariedade é um exemplo de traço fixo que atinge a todos os viventes); 3. adotar a filosofia monística, ou seja, conceber o mundo natural (físico) e o mundo histórico (humano) como passíveis de explicações por relações necessárias.
Ernst Haeckel (1834/1919).

Filósofo alemão.
Não me deterei nas explicações sobre cada uma dessas determinações. Direi apenas qual a contribuição de Fausto para a transformação da história em ciência. Fiel a essas tarefas, ele  cunhou a lei fundamental da História (e por essa  lei fundamental da História vocês entenderão as três condicionalidades). A grande descoberta de Fausto Cardoso foi  que “a História de cada  forma é uma recapitulação sumária da história da categoria a que pertence”. (Cardoso, 1895, p. 250).  Em outras palavras: a história do indivíduo (de qualquer indivíduo) é uma recapitulação abreviada da história da sua espécie; a história do homem  é a recapitulação abreviada  da história da espécie humana. Ampliando os exemplos: a história do Brasil, por ser  a história abreviada da história universal, teria que cumprir as mesmas etapas da história universal.  O saltar de etapas significa crise ou degeneração do corpo social.
Claro que essa formulação – essa lei fundamental, essa descoberta de uma relação fixa entre os fenômenos da história – não foi pura obra de Fausto Cardoso.  Ela tem origem no pensamento do alemão Ernest Haekel (1834/1919). Haekel criou uma filosofia e uma teoria do conhecimento chamada de monismo: sistema filosófico que entende  que todos os  fenômenos físicos ou morais  são regidos por leis fixas e imutáveis, extraídos a posteriori. Mas, se Haekel  pensou o monismo – combatendo as  explicações baseadas  na  fé, sentimento e revelação, combatendo o conhecimento a priori – ele não o  levou até a História. E foi isso que Fausto Cardoso tentou fazer.
A compreensão do  alcance dessa tentativa, entretanto, ficou prejudicada  pelo caráter fragmentar da sua obra  A ciência da História. Temos apenas  alguns artigos com o nome “ciência da História” e fragmentos dispersos nos discursos parlamentares e nos textos sobre direito. Isso não nos impede, todavia de apontar algumas limitações  da  sua lei fundamental da história – que o faremos no debate a seguir.

Conclusão
Tentei  responder o  que é  ciência e se  a História já seria ciência  em  1895  para Fausto Cardoso.  Tentei também descrever a  grande descoberta de Fausto Cardoso e posso concluir  dizendo que não se tratava, especificamente, de uma teoria da História  tal como a entendemos hoje, isto é, uma teoria do conhecimento histórico que procura responder: como conhecemos em História? Qual o objeto da ciência da História? Quais os métodos? Quais a natureza dos fatos históricos? Quais as finalidades da ciência  da História. Essas são respostas fornecidas por teorias historicistas, por alguns membros da escola dos Annales, por exemplo.  Trata-se, portanto de uma filosofia da história, bem  ao modo criticado pelo próprio Fausto. Um certo idealismo, baseado num apriori, como criticava o seu pai intelectual Ernesto Haekel.
Gostaria de  dizer  também que Fausto não quis apenas difundir o haekcelianismo/monismo entre os brasileiros. A teorização sobre a história faz parte, provavelmente, de um debate  mais amplo, travado por intelectuais do final do século XIX e início do século XX, principalmente no Rio de Janeiro.  Um debate que incluía muitos sergipanos e aqui citarei os nomes mais conhecidos: Sílvio Romero, João Ribeiro, Felisbelo Freire  e Fausto Cardoso.  Era um debate  historiográfico. Todos escreveram sobre o caráter científico da história entre  1880 e 1900. Cada  um à sua maneira, professando um credo, advogando por um teórico – Buckle, Spencer, Ratzel e Haekel. Era um debate historiográfico,  mas as motivações historiográficas não tinham razão em si mesmas. O debate historiográfico estava ligado à construção de projetos de nação brasileira, ligado aos destinos de Sergipe e do Brasil.
Voltando à questão historiográfica – já que as questões política e social em Fausto serão debatidas  amanhã e sexta-feira –, gostaria de lançar uma provocação aos estudiosos:  se os leitores  de História acreditam que realmente houve uma historiografia positivista no Brasil, ou se advogam, no mínimo, que foi pensada possibilidade de uma historiografia cientificista no século XIX,  a pesquisa sobre essa modalidade de conhecimento tem que privilegiar, necessariamente, o exame do pensamento de vários  autores  sergipanos,  entre  os quais situa-se  o nosso "herói" Fausto Cardoso.
Muito obrigado.


Fontes das imagens
Fausto Cardoso (1864/1906). <www.enciclopedianordeste.com>. Acesso em: 01 dez. 2010.
Ernst Haeckel (1834 1919). <http://upload.wikimedia.org.jpg>. Acesso em: 01 dez. 2010.
Augusto Comte (1798 1857). <http://atheisme.free.fr>. Acesso em: 01 dez. 2010.

Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Palestra proferida na Universidade Tiradentes. Aracaju, 05 abr. 2006.


Referências
CARDOSO, Fausto. Concepção monística do universo. Rio de Janeiro: [s.n.], 1894.
______. A ciência da História. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, 1895.