sábado, 8 de agosto de 2009

As histórias de Santiago e do seu Anuário

Detalhe da procissão do Senhor dos Passos em São Cristóvão-SE. Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 1.
Um personagem
Serafim Santiago[1] é o nome de um historiador desconhecido entre nós. O graduando de História da UFS, Maurício dos Santos Reis, bem que tentou biografar a personagem no ano de 2006, depois de conhecer o Anuário Cristovense. Fez buscas no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE e no Arquivo Público do Estado de Sergipe - APES, inquiriu funcionários da Prefeitura de São Cristóvão, visitou o Cemitério de Santo Antônio em São Cristóvão, consultou a documentação do Cartório do 3º ofício, sem conseguir vestígios significativos. Melhor sorte teve com os depoimentos de alguns intelectuais sergipanos que consultaram a sua obra: Jackson da Silva Lima, Luiz Antônio Barreto e Beatriz Góis Dantas.
De Jackson da Silva Lima, historiador que comentou e transcreveu trechos do Anuário no antológico livro Os estudos antropológicos, etnográficos e folclóricos em Sergipe (1984), Maurício certificou-se da origem dos manuscritos. Há dois originais: o primeiro, em poder do professor José Cruz, pertence hoje ao acervo do Instituto Cultural Tobias Barreto - ICTB, sob direção de Luiz Antônio Barreto. O segundo está no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe - IHGSE. Tratar-se-ia de uma versão ampliada e revisada do Anuário.
Serafim Santiago (1859/1932)
Foto: ICTB. 
Fonte: Santiago, 2009, p. 11.
Com Luiz Antônio Barreto, Maurício informou-se sobre a trajetória da primeira versão. Chegou ao ICTB como parte do acervo da Biblioteca do Professor José Cruz, adquirida por compra aos familiares desse professor sergipano. No mesmo Instituto, Maurício ainda conseguiu o atestado de óbito de Serafim e uma reprodução ampliada de uma fotografia 3x4 em preto e branco. Soube também da existência de um formulário nos arquivos da Loja Maçônica Cotingüiba que informa a data do nascimento de Santiago: 4 de janeiro de 1859.
Por fim, com Beatriz Góis Dantas, Maurício soube um pouco mais da trajetória do primeiro manuscrito, em poder do professor José Cruz. Talvez tenha conseguido a peça devido às ligações havidas entre a sua esposa e a família de Serafim Santiago. A pesquisadora sergipana também teve acesso ao manuscrito de José Cruz e transcreveu alguns trechos em seu primeiro livro de repercussão nacional – A Taieira em Sergipe (1972).
No segundo semestre de 2006, Maurício Reis concluiu a licenciatura, transformou-se em professor de História para crianças e abandonou o projeto biográfico. Ao final das suas pesquisas, portanto, juntando as informações colhidas junto aos manuscritos custodiados pelo IHGSE, o máximo que nos legou sobre o autor do Anuário foi uma legenda e uma imagem reproduzidas a seguir. Muito pouco para os ávidos perscrutadores da História e da memória sergipanas, porém, um grande esforço desse que foi um dedicado estagiário da “Casa de Sergipe”. Temos certeza de que o trabalho de Maurício será ampliado pelos desdobramentos que esta edição do Anuário deverá provocar.

Um gênero
Quando encontramos os escritos de Serafim Santiago duvidamos que dali pudesse produzir-se alguma peça de relevo, uma resenha talvez. O título da obra – “Anuário Cristovense” – e as nossas pré-noções, evidentemente, foram os grandes responsáveis pela relativa discriminação do trabalho como obra de historiador. Mas, o esforço daquele homem que aos cinqüenta e quatro anos começou a tecer um presente especial para os seus filhos e netos – a própria memória (de si, de sua família e do seu município), obrigou-nos à leitura atenta dos volumosos cadernos manuscritos, recheados de fatos da história política e cultural de São Cristóvão. Presumimos que não tinha orientação acadêmica, além das preleções de retórica e poética do Colégio Atheneu, quem sabe; além dos escritos históricos nativos à disposição no final do século XIX.
Por que deu o título de “Anuário” a sua obra? Quais seriam seus modelos? Quais foram suas escolhas? Enfim, como escrevera a história dos seus e que função creditava aos próprios registros sobre os costumes da cidade mais antiga de Sergipe? Ampliando ainda mais o estoque de questões sugeridas pela leitura dos manuscritos continuamos a nos interrogar: que História se escrevia no final do século XIX? Que escrita se efetivava num tempo em que o saber histórico não se havia metodizado? Que temáticas interessavam ao memorialista como dignas de lembrança aos pósteros?
No século XXI, já é difícil circunscrever o gênero ou o tipo textual preconizado pela Universidade. Há pouco tempo, por exemplo, o historiador Fernando Novais (1990) apontou, pelo menos, quatro motivos e lugares de produção dos quais se originavam diversos gêneros admitidos como História: artigos de vulgarização publicados em jornais e magazines (escrita ligada às demandas do mercado); memórias, autobiografias, biografias (trabalhos produzidos individualmente, sem vinculações institucionais); ensaio, (os escritos institucionais não universitários); e dissertação, tese, e o artigo de periódico especializado (a historiografia universitária propriamente dita). Se assim nos parece – bastante plural –, em pleno século da especialização, que gênero textual poderia ser considerado como História nos tempos de Serafim Santiago? Seria o Anuário uma legítima forma de recortar o tempo, de dar ritmo a vida pretérita, enfim, de organizar a secular e fragmentária experiência cristovense? Seria o Serafim um historiador?
Procissão do Senhor dos Passos. São Cristóvão-SE
Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 17.
Essa série de questões já oferece motivações para meia dezena de monografias. Entretanto, colocadas nesses termos, o que se tem acima é um falso problema. Não devemos procurar o gênero ideal ou o mais significativo que mereça o rótulo de História. Se quisermos descrever as práticas historiadoras anteriores à Universidade é necessário que sejamos bastante flexíveis nos critérios, ou melhor, que inventariemos todas as modalidades que pululam dos jornais, arquivos e bibliotecas e interroguemos os próprios autores sobre a definição, função e os valores atribuídos aos seus próprios escritos.
Foi agindo dessa forma que, recentemente, pudemos estender o limite inicial da produção historiográfica local para além dos anos 1870, como encarava a maioria dos historiadores (cf. Freitas, Bibliografia..., 2006). Ao examinar a literatura sobre Sergipe no século XIX, verificamos que naquele tempo cultivava-se a memória, descrição abreviada, informação, notícia, apontamento, memorial, narração, biografia, autobiografia, corografia, ensaio, uma infinidade de registros, mas nenhuma das obras fora intitulada como “História”. Coragem para encarar o gênero e nomeálo como História – História de síntese, com explicitação da teoria e método – somente observamos em Felisbelo Freire. Publicada a História de Sergipe em 1891, os demais modos de escrita parecem ter sido lançados à penumbra. Os próprios autores passaram, cada vez mais, a classificaremse como cronistas – crônicas é o que escreviam.
Nós mesmos, no final do século XX e início do século XXI, costumamos estabelecer a síntese de Felisbelo Freire como paradigma e parâmetro para a qualificação da historiografia produzida até a fundação da Universidade Federal de Sergipe. Todos conservamos a noção de que os textos dignos de classificação como de “História” são tão raros a partir de Felisbelo Freire que não há grande dificuldade para listar as iniciativas dignas do nome, como foram a defesa do espaço territorial sergipano produzida por Ivo do Prado (1919) e a tese de José Calazans sobre a fundação de Aracaju (1944).
Ocorre que a produção historiográfica sergipana, até a inauguração do curso universitário de História, (obviamente) não se iniciou com Felisbelo Freire e nem se encerrou com Calazans. A pluralidade de gêneros se manteve. Alguns desapareceram, como as descrições e os apontamentos; outros permanecem – a biografia cultivada por muitos e também a rara autobiografia. Houve gêneros recuperados do século XVIII – a prática epistolar de Oliveira Telles (1906). Outros foram inaugurados a partir da segunda década do século XX, como o didático de Elias Montalvão (1914), o Álbum de Clodomir Silva (1920), o Dicionário de Armindo Guaraná (1924), as Efemérides de Epifânio Dória (19...) e o Anuário de Serafim Santiago.
Museu do Ex-Voto. São Cristóvão-SE. 
Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 275.
Anuário, carta, efeméride, álbum etc., tudo isso são gêneros textuais, ou seja, são exemplos de “formas verbais de ação social relativamente estáveis” (Marcuschi, 2005, p. 25) que ordenam a comunicação entre as pessoas durante o século XIX e também na primeira metade do século XX. É certo que o gênero textual se materializa em textos que possuem determinadas características linguísticas (narrativos, descritivos, com discurso direto, predominantemente argumentativo – grande marca da tese de Calazans sobre Aracaju, por exemplo). Mas, não é esse o seu principal traço definidor: o gênero é um fenômeno construído socialmente. Ele sobrevive enquanto sua função social se mantém – quando prediz e interpreta a ação humana, quando facilita a comunicação entre as pessoas.
Se hoje estranhamos o Anuário de Serafim Santiago como gênero de escrita da História é porque a sua função comunicativa já se extinguiu. O seu conteúdo substantivo – as coisas que conta, a informação, os acontecimentos –, entretanto, vem ganhando mais valor à medida que o tempo avança, consumindo as fachadas, os ritos, a memória, os homens, enfim, soterrando os indícios sobre o passado cristovense e sergipano. É principalmente por esse motivo que o IHGS tomou a decisão de publicar o manuscrito.
Mas, de que trata em fim esse exemplar do gênero anuário? Trata, sobretudo, de “Calendários e festas na antiga São Cristóvão” e de um “Depoimento sobre o catolicismo popular”, é o que veremos, respectivamente com a antropóloga Beatriz Góis Dantas e o sociólogo Péricles Morais de Andrade nos dois textos que se seguem.

Referências
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; e BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais & ensino. 4 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 19-36.
SANTOS, Maria Francisca Oliveira; QUEIROZ, Marinaide Lima de; MOURA, Tânia Maria M.; e MIGUEL, Geilda de Souza. Os gêneros textuais. In: Gêneros textuais na educação de jovens e adultos. 2 ed. Maceió: FAPEAL, 2004. p.33-40.
NOVAIS, Fernando. A. A universidade e a pesquisa histórica apontamentos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 108-115, jan./abr. 1990.
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. Historiografia sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. p. 23-34.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As histórias de Santiago e do seu Anuário. In: SANTIAGO, Serafim. Anuário Cristovense ou Cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 9-16.

Nota
[1] Serafim Santiago. Memorialista e funcionário público. Filho de José Florêncio e Umbelina Santiago, nasceu em São Cristóvão a 4 de Janeiro de 1859 e faleceu no mesmo município a 01 de janeiro de 1932. Casou-se com Sara em 25 de junho de 1887. Foi pai de 9 filhos, dos quais sete são referenciados no Anuário: João B. de Santiago, Benjamin, Serafim de Santiago Júnior, Francisca Xavier de Santiago, Umbelina Santiago Prudente, Anita, e Pedro. Mudou-se para Aracaju em 29 de junho de 1887, onde exercera o funcionalismo público. Aos 60 anos, começou a escrever memórias sobre sua vivência em São Cristóvão que resultariam no mais rico e inédito depoimento sobre a cultura sergipana do final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, o Anuário Cristovense.