quinta-feira, 24 de junho de 2010

Questões de gênero em sociedades indígenas

Etnias e gênero
Como o homem se faz homem? Como a mulher se faz mulher? Existe “homosexualismo” entre povos indígenas? Estas questões desconcertam qualquer professor e são recorrentes já entre os alunos dos cursos de graduação. Que tal prestarmos atenção ao que dizem os antropólogos que tratam do assunto?
Para a compreensão das teses dos antropólogos é importante entender a palavra gênero de forma instrumental, ou seja: como “a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos seres humanos” (Soihet e Pedro, 2007, p. 288).
É também necessário conceber o gênero como construtor do sexo e o sexo como construtor do gênero. Em outras palavras, não é apenas a existência da genitália sexual masculina que constitui um homem. São necessárias várias práticas e representações sociais para que um ser passe a comportar-se e afirmar-se como homem. O mesmo ocorre com os caracteres biológicos. Os sistemas reprodutivos são empregados como traços diferenciadores dos seres, ganhando o papel de construtores da identidade de homem e de mulher.
Mas como esse tipo de raciocínio é empregado para o exame da experiência indígena?
Os antropólogos referidos neste texto ocupam-se da construção social da diferença, das hierarquias e das mudanças nas hierarquias entre homens e mulheres. Entre os Mbyá-Guarani (RS), por exemplo, o gênero mulher é construído a partir da nomeação das crianças (mediada pelo Xamã), onde intervém entidades que habitam moradas divinas. Há divindade para nomear meninos e divindade para nomear meninas.
Os ritos de iniciação pubertária (reclusão para as meninas) são outro instrumento de produção das diferenças. Na experiência Rikbaktsa (AM), da mesma forma, o status de mulher não é construído apenas tomando-se como base a sua função reprodutiva. A construção do gênero mulher, a construção do corpo (geração do feto), envolve interações (sexuais) não apenas com homens, mas também com mulheres e coisas.
Evidentemente, as diferenças e hierarquias existem entre os gêneros mulher e homem. Práticas rituais, espaços na aldeia, tarefas cotidianas situam a mulheres em lugares específicos. Mas, não há como pensar a construção do gênero mulher apenas com as dicotomias submissão/dominação. Entre os Terena (MS), é sabido que as mulheres na participam do Conselho Tribal. Mas, são responsáveis pelo choro nas visitas, festas, funerais e casamentos. Choro ou canto ritualizado, por sua vez, tem importância similar à oratória praticada pelos homens. Quando migram para a cidade e casam com não indígenas, as mulheres transformam-se em chefes de famílias, responsabilizando-se pelo sustento (econômico) dos seus lares. Esse fato modifica, inclusive, determinados modos de estabelecer o parentesco. Enfraquece-se a patrilineridade da comunidade étnica.
O mesmo processo ocorre com as mulheres da etnia Tukano Oriental (AM) que se casam com não índios. Tornando-se responsáveis pelo apoio econômico à família extensa, elas assumem novos papéis perante a comunidade. Esse novo lugar lhe oferece a prerrogativa de transmitir aos filhos os nomes dos seus antepassados, modificando a tradição patrilinear do grupo.
Outro exemplo de variação de papéis e de relativização das hierarquias pode ser observado entre as mulheres Apinajé (TO). O envolvimento de algumas delas em mobilizações reivindicatórias por saúde, educação e geração de renda modificou sua imagem no grupo. O determinante, neste caso, foi o prestígio social auferido individualmente, independentemente do gênero. É importante registrar que em 2008 duas mulheres haviam se transformado em cacique.
A construção do gênero e o estabelecimento das hierarquias mobilizam os esforços dos antropólogos. Mas, eles também abordam determinadas práticas afetivas e sexuais, imediatamente classificadas pelos não indígenas como lesbianismo e homoerotismo. Vejamos alguns exemplos.
Entre os Timbira (TO), mitos que explicam a formação da vida ajudam no entendimento sobre suas práticas sexuais. São necessárias várias relações sexuais e com vários parceiros (além do marido) para que uma mulher seja considerada grávida. Entre esses povos, acredita-se que o feto é formado por uma “quantidade grande e contínua de sêmen disponibilizada dia após dia”. Acredita-se também que a relação extra-conjugal é determinada pela busca (nos parceiros) das qualidades que mulher deseja ver reproduzidas no seu filho.
Para os Ramkokamekra (MA) a mulher pode relacionar-se com os maridos de suas irmãs e com os irmãos do seu marido. A regra vale também para os homens. Prática proibida é a disputa da mãe e da filha pelo mesmo homem e do pai e filho pela mesma mulher.
Entre os Guarani e os Terena (MS), há relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo, consideradas pelos não indígenas como homoafetivas. No entanto, apesar da tolerância e o respeito pela opção do outro serem características de modos de vida Guarani, não há consenso sobre esse tipo de prática. As aprovações ou condenações são fundadas nas posições individuais, independentemente da influência de geração ou religião.
E agora, você já consegue responder às perguntas do início deste texto? Se ainda não se aventura a dar respostas sobre a vida dos povos indígenas, tente refletir sobre os sentidos, por exemplo, de homem, mulher, homosexual e lésbica, partilhados por seu grupo. Quais as fronteiras que definem os gêneros no seu cotidiano? Quem define o quê? Você nasceu gostando de homem? Você nasceu gostando de mulher?


Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A experiência indígena entre os antropólogos: questões de gênero nna 26ª edição da Reunião Anual da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (Porto Seguro, 2009). Texto base da terceira aula do curso "A experiência indígena em sala de aula", ministrado aos alunos de licenciatura em História da Universidade Regional do Cariri-URCA. Crato, 24 jun. 2010. <http://itamarfo.blogspot.com/2010/06/questoes-de-genero.html>
Fontes das imagens:
Etnias e gênero (sem identificação do autor e dada). <http://contramachismo.files.wordpress.com/2010/03/racas.jpg> Acesso em: 15 nov. 2010.


Referências
ATHILA, Adriana Romano. A “Caixa de Pandora”: disputando pessoas e produzindo diferenças em uma sociedade indígena amazônica. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
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