sábado, 25 de dezembro de 2010

Que são conceitos históricos?

Representação do conceito em Ferdinand de Sausure, onde a parte superior do círculo representa a ideia,
a parte inferior, a imagem acústica (palavra), e as duas partes em conjunto, o conceito.
Fonte da imagem: http://www8.georgetown.edu/centers/cndls.
Este texto nasceu de uma curiosidade e da constatação de uma deficiência de formação. Em quinze anos de trabalho na área de História, já me debrucei sobre dezenas de conceitos históricos, procedentes da Filosofia, Sociologia, Política e Antropologia, cumprindo o rigor erudito que o ofício exigia na construção de relatórios, monografias dissertação e tese. No entanto, não lembro nenhuma ocasião em que tenha sido obrigado a dar respostas, por escrito, a esta questão: “o que são conceitos históricos?” Essa foi a minha deficiência.
Ferdinand de Saussure (1857/1913)
Fonte:* www.infoamerica.org.
Quanto à curiosidade, ela partiu dos primeiros estudos que fiz sobre ensino de História: que conceitos devem ser ensinados aos alunos de História nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio? Sabendo que a pedagogia da História está relacionada à ciência de referência (História), obviamente (tão óbvia quanto a resposta à questão do título deste artigo), busquei a solução no campo da teoria/epistemologia histórica. Mas, antes de responder quais eram os conceitos ensináveis de/em História outra questão (a mesma questão) se impôs de imediato: “o que seriam conceitos históricos?”
Nos parágrafos que se seguem partilho as conclusões das minhas leituras. Mas, como a bibliografia sobre teoria/epistemologia/ensino é plural em temas e dispersa no tempo, selecionei referências de historiadores alemães, franceses, ingleses e brasileiros, produzidas a partir da segunda metade do século passado, colhidas em diversos gêneros que tratam da matéria, disponíveis em língua portuguesa e de uso corrente na literatura nacional.
Algumas tríades (três obras para cada gênero) foram selecionadas com base na legitimidade dos seus autores na historiografia brasileira recente. Esses são os casos dos ensaios epistemológicos e de análise conceitual.
Outros textos – metodologias do ensino de História e manuais de introdução à História – estão presentes por serem os únicos em seus gêneros a reservarem uma unidade de leitura para o objeto em questão.
Quanto aos dicionários de conceitos históricos (apesar de comentadas apenas três obras), foram citados todos os títulos que consegui reunir, em edições atualizadas (por compra, ou nas bibliotecas públicas) entre os meses de agosto e dezembro de 2009.
É possível que o leitor se incomode com o excesso de citações diretas e o caráter de revisão da literatura assumido pelo texto [1]. Dado o objetivo do trabalho, porém, não tive como os evitar. A intenção de conservar certa precisão terminológica e conceitual exigiu o uso constante das aspas e limitou as possibilidades da paráfrase e do resumo, sem contar que as próprias traduções (examinei literatura em língua nacional) já representam um empecilho adicional à busca dos sentidos expressos pelos autores nas definições e caracterizações dos conceitos históricos nos trabalhos selecionados. 
Lucien Febvre (1878/1956)
Fonte
*:andrewokamura.blogspot.com. 
Para minorar esses inconvenientes, dispus os comentários em ordem decrescente de complexidade (ou crescente de didaticidade), iniciando a exposição pelos ensaios epistemológicos, livros de introdução à História, análises conceituais, e encerrando pelos gêneros dicionário (de conceitos históricos), estudos sobre conteúdos conceituais e ensino e aprendizagem históricas, manual de metodologia para o ensino de História e, por fim, o livro didático de História que anuncia o trabalho específico com conceitos históricos.
Ao final dos comentários, a título de considerações finais, retomei as conclusões parciais e as expus em forma de verbete – que você pode consultar agora, sem nenhum prejuízo sobre a resposta à questão-título.
Espero que a satisfação da minha curiosidade e o preenchimento de uma lacuna de formação possam contribuir para a sua reflexão sobre a escolha e uso dos conceitos históricos no cotidiano da pesquisa, no momento da escrita e nas atividades do ensino de História.

Um sentido para o conceito
Dicionários de sinônimos da língua portuguesa e tratados de Psicologia cognitiva (cf. Houaiss, 2007; Ferreira, 1986; Freire, 1940; Eysenk e Keane, 2007; Ausubel, 1980), validados por vocabulários de Filosofia (cf. Lalande, 1999, Kant, 2006), definem conceitos como representações mentais – ideias – que têm a função genérica de identificar, descrever e classificar, em síntese, de dar a conhecer os elementos – artefatos, seres e/ou fenômenos – que constituem a experiência humana.
Conceitos são atos de pensamento. Para serem concretizados/veiculados na fala e na escrita necessitam de um suporte, que é a palavra. Usualmente, a palavra – escrita e falada, suporte da ideia + ideia – recebe também o nome de conceito, segundo Ferdinand de Saussure (s.d).

A voz dos epistemólogos da História
Este sentido é consensual entre os historiadores. Sobre o qualificativo “histórico”, entretanto, há muita divergência. Alguns afirmam que o “histórico” se deve ao costumeiro emprego de uma palavra para nomear artefatos, seres ou fenômenos datados tópica e cronologicamente, por exigência metodológica – a exemplo de “Reforma” e “Renascimento” (Besselaar, 1973).
Outros remetem à função que tem uma palavra de atribuir significado – interpretar –, reunindo/relacionando “lembrança do passado” e “expectativa do futuro” – por exemplo, experiência e progresso (cf. Rüsen, 2007, Koselleck, 2006).
Marc Bloch (1886/1944)
Fonte:
*andrewokamura.blogspot.com.
A divergência se estende à proveniência dos conceitos: vêm das fontes, dos aparelhos mentais da época ou do aparato cognitivo do historiador? Reflete o real ou nunca pode ser encontrado na realidade?
Esse problema foi levantado pelos fundadores dos Annales: se os conceitos forem produzidos a priori, corre-se o risco de anacronismo, disse L. Febvre. Se forem extraídos da documentação, limitam a interpretação do historiador, afirmou M. Bloch (cf. Febvre, 1942; Bloch, 1960, apud. Dumoulin, 1993).
Hoje, encara-se tal dicotomia como um falso problema (cf. Veyne, s.d). A possibilidade de elaborar – inventar – conceitos históricos é um trunfo da historiografia do século XX (cf. Dumoulin, 1993; Burke, 2002). Os historiadores devem, sim, criar os seus instrumentos de interpretação. Eles são fundamentais para a escrita de grandes sínteses – sobre períodos e espaços – e a comparação. Os profissionais também contam com a vantagem da compreensão a posteriori e sabem que os contemporâneos – seus objetos de estudo – não compreendiam com perfeição o seu próprio presente (cf. Burke, 2002).
Mas, a polêmica não se encerra neste ponto. Historiadores também divergem quanto aos tipos de conceitos. Podem ser cinco – conceitos universais/noções universais/noções técnicas/tipo ideal/noções históricas (cf. Marrou, s.d); três – individuais/coletivos/abstratos (cf. Besselaar, 1973), nomes próprios/categorias históricas/conceitos históricos (cf. Rüsen, 2007), das ciências dedutivas/das ciências em formação/conceitos comuns, conceitos históricos/categorias/ferramentas do historiador (Cf. Silva e Silva, 2008); ou dois – empíricos/tipo ideal (cf. Prost, 2008), empíricos/puros (cf. Descimon, 1993), categorias científicas ou históricas/conceitos tradicionais ou históricos (cf. Koselleck, 2006).
A maioria, entretanto, aproxima-se do tipo ideal de Weber pelas flexibilidades e potencialidades oferecidas: o tipo ideal relaciona-se com os indícios deixados pelos acontecimentos e, ao mesmo tempo, é construído pelo historiador, possibilitando a comparação e a generalização. Mesmo sem anunciarem, historiadores empregam conceitos históricos nesse sentido, ainda que os nomeiem de sistemas, modelos (cf. Burke, 2002), categorias, conceitos tipo, conceitos coletivos ou conceitos universais.
Quanto aos usos, também há convergência. Historiadores aconselham sempre a historicização dos conceitos. Esse procedimento evita o erro de classificação, o emprego equivocado – hipo e hiperdimensionado – e o anacronismo (cf. Veyne, s.d; Besselaar, 1973; Cardoso, 2005; Foucault, 2002; Vilar, 1985).


A palavra dos pesquisadores do ensino de História
Entre aqueles que se dedicam à pesquisa sobre ensino de História, a discussão acerca das definições, proveniência e tipificações dos conceitos históricos é menos frequente. A preocupação dos pesquisadores está muito mais voltada para a necessidade de desenvolver/fazer adquirir/dominar/acelerar “noções” como tempo, espaço e causa, fundamentais para o pensar historicamente entre as crianças (Leite, 1969, Callai, 2002 e Freitas, 2010) e, no caso de adolescentes, para a função dos conceitos históricos no ensino, as estratégias do ensinar, os conhecimentos sobre o aprender e a seleção dos conteúdos conceituais considerados relevantes.
Um uso clássico para a locução conceitos históricos
"Espirais do tempo - linha do tempo/conceitos históricos"
Fonte
*: http://legaertner.blogspot.com. 
Assim mesmo, seguindo o pensamento dominante dos historiadores, os pesquisadores do ensino definem conceitos como “representações de um objeto ou de um fenômeno histórico por meio de suas características” (cf. Bezerra, 2004). Sobre a função, pesquisadores acompanham a vulgata dos epistemólogos. É comum atribuir aos conceitos históricos o papel de mediador da interpretação do real, caracterizador dos elementos de realidade ou mobilizador de capacidades informativas e combinatórias do aluno (cf. Baldissera, 1997; Mendonça, 1994; Schmidt e Cainelli, 2004).
Os conceitos, portanto, têm papel central na aprendizagem histórica, mas já se admite que não são os únicos conteúdos a serem ministrados. Apesar de serem dominantes, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, eles devem ser acompanhados dos conteúdos procedimentais, das atitudes e dos valores (cf. Bezerra, 2004).
Com maior ênfase que nos trabalhos dos espistemólogos, os estudiosos do ensino de História fundamentam suas classificações dos conceitos históricos no nível de abstração e no grau de abrangência que lhes são característicos. Os conceitos de “compreensão geral” e de “determinações específicas”, “básicos” e “específicos”, “universais e “específicos” são bastante citados, a exemplo do que fazem alguns historiadores (cf. Bezerra, 2004, Mendonça, 1994).
Há, no entanto, três singularidades nas tipificações características da área do ensino. A primeira diferencia conceitos das “noções” formuladas pelas crianças que ainda não atingiram o pensamento formal (11 ou 12 anos em média).
A segunda distingue conceitos pelas potencialidades de auto-reflexão (sobre a História) e de significação do real, ou seja, conceitos metahistóricos, que medeiam a compreensão da atividade do historiador e da natureza da ciência da História (tempo, causa, consequência, fonte e interpretação) e os conceitos substantivos, que medeiam a compreensão do mundo no tempo. Esses podem ser mais estruturais, complexos e abstratos (comunicação, poder, governo, agricultura) ou auxiliares na compreensão de períodos específicos (alforria, escambo, saveiro) (cf. Lee, 2005; Cooper, 2002; Freitas, 2010). 
A terceira tipificação distingue conceitos pelo âmbito de criação. Há conceitos oriundos do aparato cognitivo do aluno e conceitos transferidos da ciência de referência, em outras palavras, conhecimentos prévios (algumas vezes nomeados de conhecimentos do senso comum) e conceitos científicos (ou conceitos históricos propriamente ditos), veiculados pelo professor da área, inscritos nos planos de estudos e nos livros didáticos (cf. Bittencourt, 2004).

Um emprego inusitado para a locução conceitos históricos
"O que Dita von Teese faz não é um mero strip tease.
Ela tira a roupa com conceitos históricos, movimentos pensados,
ensaiados e tradicionais com origem no teatro burlesco do século XVIII.
Nessa época as atrizes já mostravam as pernocas, usavam decotes,
vestiam-se de homem, faziam insinuações bissexuais,
contavam piadas sujas, mexiam com a plateia e assim o estilo fez fãs
e se espalhou. Mas só no início do século XX é que vieram
os números de strip tease bem diferentes desses mais comuns
e mais sexuais do tipo ‘pole dance’. Burlesco é insinuação,
mis-en-scène, espartilho, renda e Dita von Teese é a melhor
representante do novo burlesco do século XXI. Já vi
um show de declamação de poesia e strip burlesco em Nova York
há uns 9 anos no Bowery, no bairro de Tribeca, quando o estil
 estava retornando à moda. Achei muito bonito plasticamente,
ultravintage e old school na veia. Um prato cheio
pra quem não gosta de obviedade".
Fonte da imagem e do texto:* http://www.mapfremulher.com.br.
Essas classificações denunciam a presença das psicologias da educação (da aprendizagem e do ensino), notadamente, das teorias genética, sócio-cognitiva e da aprendizagem significativa (Piaget, Vitotsky e Ausubel), nas iniciativas de formação, inicial e continuada, dos professores de História. Entre as principais contribuições da área são apontadas três necessidades básicas: identificar conceitos de um tema, hierarquizá-los quanto ao nível de abstração e dar a conhecer a sua rede – o que alguns historiadores chamariam de “campo semântico”; planejar, desenvolver habilidades adequadas e manter um compromisso (social) em relação às tarefas de ensino de conceitos (exigências específicas para o professor); e inventariar o conhecimento que o aluno possui e que pode ser usado como “ponte” para a obtenção dos novos conceitos apresentados pela História (cf. Pozo, 2000; Eysenck e Keane, 2007).
Essas características anunciam também uma idéia de aprendizagem que aproxima pressupostos sobre a aquisição de conceitos formulados Jean Piaget e Lev Vygotsky e os princípios da teoria da aprendizagem significativa, de David Ausubel. Assim, aprender é modificar as próprias ideias como consequência da interação destas ideias com as novas informações (cf. Pozo, 2000; Baldissera, 1997, Bittencourt, 2004; Schmidt e Cainelli, 2004; Freitas, 2010).
Por essa perspectiva, os professores dos anos iniciais são aconselhados a planejarem momentos didáticos onde os alunos possam vivenciar (perceber, mensurar) diferentes sentidos para “noções” e/ou conceitos “fundamentais” à compreensão histórica tais como: tempo, espaço (cf. Bittencourt, 2004), fonte e interpretação (cf. Freitas, 2010).
Professores também são aconselhados a planejarem atividades que desenvolvam as capacidades de leitura de textos, identificação, definição, comparação, estabelecimento de diferenças e semelhanças, relacionamento, síntese, comunicação debates sobre conceitos.
A partir dos dois últimos anos do ensino fundamental e no ensino médio, são compatíveis as atividades de definição de conceitos mais abrangentes (democracia, totalitarismo), partindo da comparação ou da constatação de ausência ou presença de características do fenômeno destacado no texto principal dos livros didáticos (cf. Schmidt e Cainelli, 2004; Dreguer e Toledo, 2006).
Profissionais do ensino de História, por fim, ainda que não cheguem a um consenso sobre a “naturalidade dos conceitos” (se da História ou das demais ciências sociais, por exemplo), apontam, segundo suas convicções epistemológicas, os conceitos estruturantes que devem ser desenvolvidos no ensino de História, alertando sempre sobre o perigo dos anacronismos e das generalizações descabidas: civilização, sociedade, poder, economia, cultura (cf. Schmidt e Cainelli, 2004), História, processo histórico, sujeito histórico, cidadania (cf. Bezerra, 2004), e os já citados, tempo, espaço, fonte e interpretação.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Que são conceitos históricos? Aracaju, 25 dez. 2010. Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/que-sao-conceitos-historicos.html>.


Nota
[1] Evidentemente, estou tratando aqui do artigo completo, que não segue nesta postagem e nunca foi publicado em lugar algum. Apenas as conclusões são apresentadas, e em forma de verbete. Caso tenha interesse em conhecer todo o trabalho (são 35 páginas em espaço 1,5), solicite gratuitamente, escrevendo para o seguinte endereço: itamarfo@gmail.com.

(*) Todas as imagens foram capturadas em 25 de dezembro de 2010.

Referências
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BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Aprendizagens em História [A formação de conceitos: confrontos entre Piaget e Vygotsky; Conhecimento histórico: conceitos fundamentais; Tempo/espaço e mudança social: conceitos históricos fundamentais]. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 183-221.
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CALLAI, Helena Copetti (org.). O ensino em Estudos Sociais. 2 ed. Ijuí: Editora da Unijuí, 2002. [Primeira edição – 1991].
CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade e cultura: conceitos complementares ou rivais? In: Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: Edusc, 2005. pp. 255-282.
COOPER, Hilary. Didáctica de la historia em la educación infantil y primaria. 2 ed. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte; Morata, 2002. [Primeira edição inglesa – 1995].
DREGUER, Ricardo. TOLEDO, Eliete. História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2006.
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KANT, Immanuel. Crítica a razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
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domingo, 19 de dezembro de 2010

Ensino de História em Manoel Bomfim: um instrumento de educação moral e mental a serviço da revolução (1915/1926)

Detalhe da capa  Manoel Bomfim e a América Latinaa dialética entre o passado e o presente. 
Cruz, Bittencourt Júnior, 2010. Produção de Marcos Fraga.
Na semana passada, refletindo sobre as assertivas de Martinho Lutero, escrevi que os cruzamentos históricos e as dívidas centenárias da República com a maior parte da população não nos autorizam pensar a educação escolar como o remédio eficaz para todos os males brasileiros (saúde, segurança etc.). Mas, não era esse o pensamento do intelectual sergipano Manoel Bomfim [1], no início do século XX.
Entre 1905 e 1931, a educação escolar (popular e primária) e a revolução (tomada do Estado pelos trabalhadores) seriam os remédios para a verdadeira autonomia da nação – para o feliz encontro da sociedade (brasileira) com o Estado (brasileiro) que a governa (Cf. Reis, 2006, p. 218-222) – e a remissão dos vários pecados permitidos pela República. O mesmo valia para o restante do continente: “Manoel Bomfim defendeu a educação básica, pública e massiva como saída e solução para os ‘males’ que afligiam o Brasil e a América Latina” (Aguiar, 2010, p. 224).
Esses “remédios” podem ter sido pensados a partir de 1903, quando Manoel Bomfim passou a estudar Psicologia experimental com Alfred Binet e George Dumas. Sua estada de 8 meses, em Paris, foi motivo para a construção de uma grande obra que denunciava à espoliação a que os povos do Novo Mundo estavam submetidos. Os livros mais conhecidos entre nós são: América Latina: males de origem (1905), O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil nação (1931). Eles narram a história brasileira e latino-americana para o público erudito.
Dessa viagem que deflagra a sua interpretação positiva da nação brasileira, onde “defende os interesses populares contra o parasitismo das elites” e “propõe uma radicalização democrática contra a tradição secular de espoliação e exclusão da população brasileira no seu próprio país” (Reis, 2006, 222), nasce também a sua obra de pedagogo e psicólogo e, consequentemente, as suas formulações sobre a escola primária e o ensino de História para o público infantil. Como a educação primária poderia contribuir com a sonhada revolução? Que papel teria o ensino de História na formação dos brasileiros? Que pensava Manoel Bomfim sobre os conteúdos e metodologias do ensino de História compatíveis com a formação desse novo homem?
Neste texto, tento responder a essas e outras questões, partindo da leitura de dois documentos: Lições de Pedagogia: teoria e prática da educação (1915) e A pessoa moral da criança (o direito da criança ser educada)(1925). Eles demarcam as posições de Bomfim acerca da vida, educação, Estado, família e, o que nos interessa de perto, o ensino de História para as crianças brasileiras.

Manoel Bomfim (1868/1932)
Fonte: www.onordeste.com.
Vida, adaptação e educação
Comecemos com um conceito e uma questão fundamental: que é a vida nas Lições de Pedagogia (1926) de Manoel Bomfim? A vida é um processo dinâmico, regido pelas leis da hereditariedade e da adaptação. Nos animais “inferiores”, a adaptação se faz instintivamente, por meio de caracteres biológicos herdados da geração anterior.  No homem, é um trabalho consciente (pensado, refletido). Trata-se de um processo que mobiliza experiência social acumulada (“sistematizações, processos e recursos”), que se adquire na infância e na adolescência, e é transmitida de geração a geração.
A diferença principal entre os homens e os animais inferiores está, justamente, nessa forma de transmissão dos “processos” e das “capacidades” que permitem aos primeiros adaptar-se ao meio, ou seja, que lhes possibilitam viver. Essa “forma psíquica” de transmissão entre os homens é chamada de educação. (Cf. Bomfim, 1926, p. 9-14).
O que educar no homem é outra questão importante. Nas Lições de Pedagogia, a orientação é tripartite: deve-se educar o homem física, intelectual e moralmente, isto é: a educação deve preparar “homens robustos, inteligentes e honestos” (1927, p. 230).  Da educação física, Bomfim destaca a necessidade de imposição (nos primeiros anos da infância) e aquisição de bons hábitos de higiene, mantenedores da saúde, e os exercícios ginásticos que “coordenam os estímulos neuro-motores” e equilibram “as diferentes partes do sistema muscular” (1927, p. 71).
A educação “do organismo” (cultura física, hábitos higiênicos e cultura ginástica) é exercida na família e também na escola. A iluminação e o asseio das salas de aula, o formato e dimensões das carteiras, os horários das aulas e dos recreios também são prescritos por Bomfim:

Quadro n. 1
Organização dos horários da educação escolar
nas Lições de Pedagogia (1926) de Manoel Bomfim

Classes
Máximo de trabalho mental
Duração das lições teóricas
Tempo que a criança passa na escola
Abaixo de 7 anos
2 ½ horas por dia
15 a 18 minutos
6 horas
De 7 anos a 8 anos
3 horas por dia
18 a 23 minutos
6 horas
De 9 anos a 11 anos
3 ½ horas por dia
23 a 28 minutos
7 horas
De 11 anos a 14 anos
4 horas por dia
28 a 35 minutos
7 horas


A educação moral, por sua vez, fica a cargo da família, “que tem o dever” de situar as crianças “convenientemente na vida” (2006, p. 250, 253). No entanto, se a “moralidade é a consciência que o indivíduo tem das relações que o prendem à existência da espécie” e se os atos morais são os “atos conscientes que se ligam às relações do indivíduo com o resto da sociedade e sobre ela podem influir” (Bomfim, 1927, p. 330, 341), a escola também tem o dever de intervir, no sentido de “definir deveres” e “descrever costumes” (idem, p. 332). Em outras palavras, cabe à escola corrigir os defeitos que a criança herda ou imita dos seus familiares, já que o ambiente escolar supera o grupo familiar como representação mais fiel da sociedade. A escola deve, portanto: a) escolher “as tendências a estimular ou atenuar e reprimir” e “os sentimentos a cultivar”; b) cultivar “estados afetivos sob a forma de sentimentos” (idem, p. 342, grifos meus).

Quadro n. 2
Tendências e sentimentos característicos da moralidade
nas Lições de Pedagogia (1926) de Manoel Bomfim

Tendências que correspondem aos interesses da própria pessoa
Tendências que correspondem ao interesse pela sorte de outras pessoas (generalizações de “estados pessoais”)
Tendências impessoais, que têm como objeto as concepções absolutas ou abstrações puras

Sentimentos egoístas
Instinto de conservação – sentimentos defensivos (medo
Covardia, zelo exagerado pela saúde, timidez, desconfiança)
Instinto de conservação – sentimentos ofensivos (virtude produtiva, dignidade pessoal, ambição de estima pública)


Sentimentos simpáticos
Patriotismo
Bondade
Solidariedade
Amizade


Sentimentos estéticos e desinteressados
Justiça (dever, direito)
Atração pela verdade (curiosidade)
Sentimento estético (beleza)
Religiosidade (temeroso respeito, amor submisso, grata obediência, devoção e adoração à divindade)

A educação moral na escola respeita o movimento cíclico das “reações psíquicas”: sentir, perceber, conhecer, reagir. Vejamos nessas longas e ricas citações que se seguem o método de ensino e o valor da educação moral no processo de socialização da criança. Observem que o ensino de História é empregado como exemplo de procedimento e de conteúdo.
Já o dissemos: o sentimento é um hábito, por isso mesmo, consiste a educação moral em associar com os sentimentos todas as formas de ação consciente, e de tornar objeto de sentimentos todos os conceitos que devem servir de guia e de critério nos julgamentos. Uma lição de moral em que a criança não sente e não vibra, é um absurdo; é lição perdida, quando não redunda em tédio e desconfiança. As lições eficazes são lições vividas, em que se criam e se forma os hábitos de sentir, pela renovação das manifestações afetivas, bem concretizadas em atos, bem definidas na consciência, com a compreensão nítida das causas e dos motivos. Não se trata de dissertar, mas de sugerir a ação, e de evocar na imaginação os transes que fazem vibrar, e movem o coração. As misérias e as dores estão por toda a parte. Se não se traz para aí a simpatia da criança, o espetáculo se torna habitual antes de ser comovente, porque a percepção e o conhecimento antecedem a compaixão. Chegada a idade de sentir e de apiedar-se, é mister ferir a sensibilidade do infante, fazendo-o simpatizar, não só com os que riem, mas com os que sofrem; mostrar-lhe as causas de miséria, ensinar a minorá-las, e combatê-las ou afastá-las. A prática imediata – a prática repetida e sistemática, eis o grande recurso de educação moral; não a prática simplesmente imposta, mas a prática sugerida, e, por conseguinte, plenamente aceita pela consciência. Neste sentido, tem toda propriedade o conceito aristotélico: “O homem se forma de fora para dentro”... A prática determina concretamente o proceder, e impõe-se explicitamente ao caráter, porque pressupõe, desde logo, a eliminação do que é o segredo dos sucessos educativos. Quem tiver conseguido ocupar inteiramente e interessantemente um aluno, um dia inteiro, fazendo-o correr a História da sua pátria, ou do mundo, ensinando-lhe a gozar uma paisagem, a resolver um problema material, ou buscar os próprios pensamentos para achar os móveis dos seus afetos e expansões... quem tiver conseguido essa continuidade de ação metódica, moral e inteligente, tem-lhe feito tanto bem como se lhe tivesse cortado outras tantas peias do espírito. (Bomfim, 1927, p. 369-369, grifos meus).
Ao tratar do patriotismo – sentimento simpático (interessado pelo destino das outras pessoas) a História é novamente evocada como conteúdo exemplar. Ela cultiva esse tipo de sentimento “necessário” à existência humana e social, mas que também se apresenta como uma espécie de progressão (evolução) do amor filial/familiar.
O amor da Pátria, essencial também para a completa formação moral e social, resulta de uma extensão direta dos sentimentos de família; mas, no fundo, o patriotismo corresponde a essa necessidade que tem o indivíduo de expandir-se dentro da sua tradição. A Pátria não é, nem o solo natal unicamente, nem a língua, nem a religião, nem a raça...(sic) É um pouco de tudo isto, porque é a história comum, é a tradição moral, a comunidade de educação, a comunhão de lembranças, a visão dessa tradição levada por um ideal para as aspirações comuns. O domínio estrangeiro é mais que um jugo, é a morte, porque é a substituição da tradição pátria; é a própria destruição daquilo que nas consciências definia a vida nacional. O homem caracteriza-se psicologicamente como um “ser de tradição”, e o patriotismo é a concretização dos sentimentos que consagram essa tradição, necessária em toda consciência. Estes sentimentos podem degenerar – as formas defensivas, em ódio ao estrangeiro, desconfianças, ciúmes nacionais... as formas ofensivas, em sede de conquistas, ardores imperialistas... Cumpre purificá-los, mandendo-os no seu verdadeiro caráter – cultura da tradição, mas tornando-os tão intensos como os próprios sentimentos de apuro pessoal, porque, em suma, é na forma concreta – de nações, que os grupos sociais vivem e progridem. A evolução política e social, qualquer que seja, jamais eliminará da natureza humana essa necessidade de organizar-se e expandir-se dentro de uma tradição concreta. O ensino da História pátria vem concorrer muito eficazmente nesta parte da educação moral. (idem, p. 353).
Em resumo, a educação moral cultiva tendências e sentimentos em função da “organização da forma de querer” do indivíduo, ou seja, ela intervém “ na “formação da vontade” e do “caráter” (idem, p. 371, 377). Como podemos perceber, pelas citações acima, cada sentimento pode degenerar em algo nocivo à convivência social. Por isso, o método da educação moral autoriza o professor a “opor tendências, ou instintos, uns aos outros, desenvolver e reforçar os bons pelo exercício racional; deixar atrofiar aos maus, evitando as tentações; organizar os hábitos, de sorte que sobre todos eles tenha sempre a vontade um poder eficaz” (idem, p. 387). O professor, finalmente, deve agir, ora como repressor, ora como estimulador, manipulando a “dor” e o “prazer”, a “pena” e o “gozo” na vida escolar da criança.
Vejamos agora o terceiro tipo de educação e, adiante, o lugar do ensino da história no currículo proposto pelo pensador militante.

A educação da inteligência
Se a educação moral fica, em grande parte da vida da criança, sob a direção da família, o mesmo não ocorre com a educação intelectual. Para Bomfim, é função de todo Estado “garantir o direito dos fracos” e, consequentemente, garantir à criança o direito “à instrução elementar e ao preparo técnico”. Em outras palavras, “não só o ensino primário, como o preparo profissional devem ser obrigatórios” (Bomfim, 2010, p. 253).
A educação intelectual [2] diz respeito à educação da inteligência, isto é, da “atividade” (“elaboração intelectual” ou “trabalho mental”) responsável por captar e sentir, apreciar e conhecer o mundo exterior. A inteligência constitui e é constituída por atos “relacionados e inteiramente dependentes” chamados de “conhecimentos” ou “representações”.[3] É um “aparelho que funciona empregando material de sua própria fabricação” (Bomfim, 1926,  p. 104, 80).
O conhecimento, por sua vez, se resume em representações de “relações gerais” ou de “fatos ou situações particulares” originados da observação direta, da imitação ou da transmissão intencional (educação familiar e instrução escolar). Pensando a inteligência como atividade mental e os conhecimentos como generalizações ou particularizações, Manoel Bomfim define o pensar como a ação de “aproximar” (relacionar) generalidades a particularidades ou particularidades a generalidades.
Mas, o que faz a inteligência com esse conhecimento? De que forma a inteligência auxilia o homem a viver? Para Bomfim, são duas as suas atividades: “adquirir” e “aplicar” (conhecimentos). A aquisição compreende os processos de “percepção” e “assimilação”. A aplicação é viabilizada pelos processos de “compreensão” e “imaginação”. À inteligência cumpre a função de “esclarecer a vontade e indicar o caminho da ação”. E, mais: “a inteligência só é realmente útil porque pode acumular conhecimentos; os conhecimentos só têm uma utilidade – habilitar o indivíduo a resolver o problema da vida.” (idem, 1926, p. 82).
Quanto ao valor da instrução, por seu caráter metódico e sistemático, ela multiplica o poder da inteligência. Condensa o conhecimento socialmente produzido em algumas proposições compreensíveis e aplicáveis, que capacitam o homem a viver autonomamente, além de fornecer estratégias para o auto-aprendizado. Na criança, por fim, a instrução (como anunciado para a educação moral) corrige e completa o conhecimento adquirido pela experiência pessoal, imitação e sugestão familiar.

Currículo na educação primária
O significado da inteligência e do conhecimento – integral e interdependente – orienta a formatação do currículo da escola primária (fins, métodos de ensino, estratégias de aprendizagem, formas de avaliação). Este grau de ensino tem nítida função de preparar a criança para a vida, ou, nas próprias palavras de Bomfim, “ensinar a todos, tudo aquilo que todo indivíduo precisa saber para viver como ser humano social” (idem, p. 99).
Tal caráter diferencia a educação primária (generalista) da secundária (generalista e especializadora) e da superior (especializadora, profissionalizante e erudita – fornecedora de “cultura científica e filosófica”).
Se os fenômenos são interrelacionados e dependentes e se essa característica é considerada nos processos de captação, sentimento, apreciação e conhecimento, o currículo da escola primária deverá contemplar todos os conhecimentos relativos às disciplinas úteis à vida em sociedade.
Há outro traço importante. O currículo deve ser estruturado de forma considerar os diferentes desenvolvimentos das matérias, respeitando “o que há de mais característico e acessível à compreensão da criança” (idem, p. 105). Em palavras do século XXI, diríamos: o currículo da escola primária deve considerar a interdisciplinaridade e a progressão.
Mas, quais seriam esses saberes úteis à vida do indivíduo? Para Bomfim, é “indispensável...conhecer a si próprio e ao meio onde vive; conhecer-se a si, como organismo biológico e como pessoa moral; conhecer o meio físico e o meio social, no conjunto das relações gerais de que vai participar. Além disso, precisa o indivíduo saber que representa um passado, e que está preparando um futuro” (idem, p. 106).
Essa compreensão da utilidade o faz distinguir e relacionar disciplinas “essenciais” e disciplinas “subsidiárias”. Ambas são responsáveis pelo fornecimento dos “temas sucessivos da educação mental”. Os dois tipos cultivam e fazem desenvolver as “funções e capacidades” humanas da memória, observação, discriminação, abstração, dedução e imaginação (idem, p. 107).

Quadro n. 3
Classificação das disciplinas do ensino primário nas Lições de Pedagogia (1926) de
Manoel Bomfim

Essenciais
Subsidiárias
Língua vernácula
História
Aritmética
Geografia
Sistema métrico
Ciências físicas e naturais
Preceitos higiênicos
Ginástica
Instrução moral e cívica

Trabalhos manuais

Desenho


Com essas informações, podemos constatar, então, que aprender e ensinar são equivalentes na medida em que ambos se concretizam no “exercício mental”, melhor dizendo, na apresentação progressiva de conhecimentos e de atividades que cultivem e desenvolvam progressivamente as principais funções e capacidades humanas: “percepção”, “abstração/generalização”, “juízo”, e “imaginação”.
Assim, para desenvolver e cultivar a percepção, deve o professor educar os sentidos auditivo, visual, tátil e muscular. Como perceber? As atividades seguem uma progressão – do simples para o complexo, do genérico para o específico. O ensino consiste na apresentação de objetos aos alunos para que eles olhem, escutem, apalpem, enfim, sintam. Mas, perceber o quê? Perceber cor, forma, direção, posição, distância, volume e movimento.
Para desenvolver e cultivar a abstração e a generalização o professor prepara exercícios que permitam ao aluno abstrair (isolar e diferenciar) – também, progressivamente – qualidade-quantidade, semelhança-diferença, relações de causa-efeito, meios-fins, propriedades-manifestações, gênero-espécie, forma-substância.
Quanto ao conhecer e ajuizar, o melhor exercício é a lição socrática, o questionamento sistemático, metódico, cartesiano que apura a “consciência da verdade”, fortalecida pelas qualidades de “exatidão, segurança, retidão, clareza, sensatez, penetração, finura e prontidão” (idem, p. 130).
Esta capacidade está sequencialmente ligada ao poder de raciocinar indutivamente. Trata-se de um processo estruturado nas atividades de percepção de relações, interpretação de relações, elaboração de hipóteses que expliquem essas relações e a conclusão-generalização das relações. A indução, por outro lado, complementa-se com o raciocínio dedutivo, fundamental para explicar, demonstrar, prever fenômenos e preparar soluções futuras.
A última das funções, considerada a mais diversamente distribuída entre os humanos, é a imaginação. Ela é fundamental para a construção do conhecimento científico e também para a aquisição deste conhecimento. A existência dos passos do raciocínio indutivo-dedutivo, descritos acima, por exemplo, atesta a sua relevância. Todos são eventos imaginativos. Por isso, a imaginação deve ser “sugerida” e “encorajada” (para os desprovidos dessa propriedade), “nutrida” e “disciplinada” (entre aqueles que possuem uma “imaginação transbordante”).
A exemplo dos demais exercícios, a educação da imaginação se faz de forma progressiva. Bomfim sugere três “graus”:
a) o professor se limita a fazer descrições ou narrações, ou recomenda leituras que falem à imaginação do aluno, e tenham um certo poder evocativo; a criança é, aí, quase passiva; b) o professor sugere a imagem, ou a concepção, e leva o aluno a recompô-la e exprimi-la; há, então, uma verdadeira colaboração; c) fornecidos os dados essenciais, o professor deixa à criança a inteira autoria no arranjo da composição (idem, p. 142).
Vimos, assim, que as idéias de progresso, vida e utilidade orientam a compreensão de Manoel Bomfim acerca do funcionamento do cérebro humano, produzindo orientações para a escolha dos conhecimentos e das atividades a apresentar ao aluno na escolarização primária.
Ensinar é apresentar conhecimentos ao aluno, cultivando e desenvolvendo (exercitando) determinadas funções e capacidades, tais como a percepção, abstração, juízo e imaginação. Aprender é adquirir de forma segura (apropriar-se de fatos e formas...) por meio do uso adequado dessas mesmas funções.
É também por esse tipo de orientação, como descrito acima, que entendemos a variabilidade dos métodos de ensino – descritivo, intuitivo, socrático e expositivo – e os caminhos de mão dupla entre a necessidade de apresentar conhecimentos úteis e a propriedade de determinados conhecimentos no cultivo e desenvolvimento das funções e capacidades humanas. E quanto à História? O que pensa Manoel Bomfim sobre a sua cientificidade, utilidade na educação escolar e estratégias de ensino e de aprendizagem?

A ciência da História como instrumento de educação mental e moral
Para o pensador sergipano, a História é ciência de observação indireta, descritiva e narrativa, mas também de caráter positivo:
A História é crônica, é descrição narrativa, porque compreende todas as crônicas, e porque somente sob essa forma se podem observar e caracterizar os fatos históricos; mas vai muito além, porque, como todas as disciplinas que concorrem para a formação do espírito, ela tem os seus princípios gerais, – apreciações e fórmulas de compreender e de julgar, que equivalem às leis e aos axiomas das ciências positivas e exatas. (idem, p. 252).   
A História é a reconstituição da vida consciente das sociedades humanas, representada na evolução de cada uma das suas instituições características (Bomfim, 1926, p. 251).
Essa dupla natureza (fatos e regularidades) não é detalhada por Manoel Bomfim. Num primeiro momento, os princípios são concebidos como aparato de erudição – procedimentos de “apreciação”, “comparação”, e de “julgamento”. Um pouco adiante, quando defende a abordagem sociológica como fornecedora da racionalidade ao ensino da História, as regularidades ganham o sentido de leis que sintetizam a experiência humana.
Independentemente, dessa dubiedade, Bomfim é claro quanto às finalidades da ciência na escolarização primária. Em termos gerais, ela faz “conhecer o mundo moral e político a que o indivíduo pertence” (p. 253). O homem vive, mas não sabe como chegou a sê-lo (homem social). É um alienado em seu próprio meio. Não se reconhece. O ensino da História, diríamos hoje, proporciona ao aluno a aquisição das noções de historicidade e identidade. Neste sentido, a disciplina contribuiria com o processo de “adaptação consciente” (refletida, pensada), tarefa magna da educação.
Os efeitos dessa contribuição podem ser observados na educação mental e na educação moral. Da primeira, por exemplo, Bomfim alerta: não basta conhecer o direito do voto (instrução cívica). É necessário informar-se sobre “esforços necessários para conquistá-lo”. Não basta conhecer instituições e seguir tradições (exemplos de adaptação social). É importante compreender as suas trajetórias e o seu valor.
Sob o ponto de vista moral, da mesma forma, a história condiciona as ações humanas. “Na História, cada tipo, que se caracteriza e fala ao sentimento, inspira estima, admiração, entusiasmo...ou compaixão, repulsa, reprovação. Bem aproveitados, os fatos históricos são incomparáveis lições de civismo e de moral” (idem, p. 255).

Manoel Bomfim (1868/1932)
Fonte: www.cliopsiche.uerj.br.
Para compreender e sentir a experiência humana: lições de método
Dada a riqueza pedagógica (moral e mental) da ciência da História, como realizá-la em ambiente escolar? De início, Bomfim anuncia um princípio: “Assim se faz a História; assim deve ser ensinada”. Em outras palavras, o ensino de História deve desenvolver no aluno algumas habilidades características do ofício do historiador da sua época: escolher, criticar e coordenar (os fatos históricos). Deve disseminar a idéia de que a história é uma “construção” mediada por “relações de sucessão”, de “causa e efeito”, e de generalizações (interpretações/sínteses) originadas da “ciência” e da “filosofia” [da História]. (Cf. idem, p. 256).
Dizendo de outra forma, ensinar História listando nomes de pessoas, acontecimentos e datas é o mesmo que sonegar ao aluno o conhecimento da lógica da experiência humana – as potencialidades dos indivíduos, os determinantes que agem sobre ele, a força do progresso e a “evolução” das instituições.
Como fazê-lo, então? Em primeiro lugar, substituindo os livros didáticos (plenos de efemérides isoladas) pela palavra do mestre. Boa obra didática – inexistente no primário do seu tempo – é aquela que faz o aluno “compreender as condições do viver passado e sentir com a evocação dos tipos que se agitaram na História” (idem, p. 258, grifos meus). As lições (aulas) de História devem seguir idênticos procedimentos: demonstrar a lógica da História (sequências, causas e conseqüências dos acontecimentos), possibilitar a compreensão “do estado de espírito” dos sujeitos históricos, e fazer com que os alunos, não apenas ouçam, mas também, sintam (repetindo – estima, admiração, compaixão, repulsa etc.) – ou seja, interajam com elementos do passado, percebendo sentido nas tradições do presente. E por esse caminho que os professores conseguirão incutir “na consciência do aluno”, por exemplo, a “sua alma de brasileiro” (idem, p. 259).
Em síntese, o bom método, no ensino da História, consiste em: racionalizar a enunciação dos fatos, mediante a boa escolha deles e a apreciação sensata de suas dependências; acentuar as épocas; caracterizar os personagens, definir o seu papel e assinalar o desenvolvimento social, através da sucessão dos fatos (Bomfim, 1927, p. 258).

Conhecimentos, habilidades e valores
O que significa “racionalizar a enunciação dos fatos”? Bomfim dá exemplos, e por eles podemos identificar um programa de estudos históricos destinados à educação primária.
Em primeiro lugar, a finalidade da disciplina escolar História: “todo o problema [...] está em mostrar como se formou a organização política e social que abrange e sistematiza a nossa tradição [...] O Brasil histórico é um mundo que se cria, é uma nação que se forma; e até podemos marcar o momento em que começou a nova ordem de coisas que produziram o povo brasileiro” (idem, p. 259). “O que importa ao indivíduo conhecer, para conhecer a si mesmo” – conclui Bomfim –, é que no Brasil “formou-se uma população, constituiu-se uma nacionalidade, definiu-se o seu caráter; existe a nação com um sistema civil e político, hábitos e costumes, território delimitado, correntes gerais de sentimentos, movimentos de idéias [e] aspirações novas [...] (idem, p. 264).
O Brasil, como podemos observar, é um organismo – nasce, nutre-se, cresce etc. A disciplina escolar deve dar a conhecer a origem e o desenvolvimento desse organismo ou, nas palavras de Bomfim, o “nascer”, a “consagração”, “afirmação”, “autonomia” de uma entidade nomeada, às vezes, como “povo” e, ainda, “sociedade”, “nação”, “pátria” e “população”.
Essa finalidade teleológica também foi defendida por Sílvio Romero e João Ribeiro no momento em que escreveram suas histórias para crianças. Eles inventaram uma identidade e projetaram um futuro para o Brasil. Mas a integração local-universal verificada em termos de conteúdos substantivos e a idéia de progressão na aquisição de habilidades são uma novidade em relação às propostas dos dois conterrâneos.
O que se deve ensinar às crianças? O que o aluno deve conhecer sobre “a situação histórica da humanidade e da sua pátria”? Bomfim trata dos conteúdos substantivos, de habilidades e valores.
Dos primeiros, ele elenca os episódios, personagens, cenários e cronologia, que são idênticos aos da obra didática de Romero e Ribeiro. A lógica que explica o encadeamento dos fatos e épocas é o elemento que faz a diferença, segundo Bomfim. Uma coisa é narrar os fatos isoladamente. Situação bem diversa, e cientificamente correta, é narrar os acontecimentos interpretando-lhes o sentido sob a pele de um personagem que tem vontade (o Brasil) e que está destinado à autonomia. A vulgata histórica tem que ser contextualizada (situada sincronicamente), observada em suas conexões (causa/conseqüência) e sentido (filosofia da história). Observem os conceitos e épocas fundamentais ao conhecimento da vida do grande personagem Brasil. Bomfim adverte que esses conteúdos conceituais têm que ser estudados de maneira panorâmica, sintética, generalizante.

Figura 1
A árvore dos conteúdos históricos substantivos, segundo Manoel Bomfim (1926)

Luta contra o reinol
Reivindicação da autonomia
Conquista das minas
Afirmação da existência da população
Reação contra o invasor holandês
Consagração da nacionalidade nascente
Cobiças de outras nações [...]

Exploração sistemática sob a forma de capitanias [...]
Nascimento da nova sociedade
Incursões e explorações esporádicas

Estabelecimentos e povoações

Os primeiros encontros dos portugueses com o Novo Mundo

Evolução da nação

Diferença entre a vida dos aborígenes e dos adventícios

Estado de espírito dos colonizadores

Descoberta da América e suas   conseqüências

Aspirações políticas e sociais consecutivas à Renascença... (sic)

Movimento científico e filosófico

Expansão dos povos europeus

Renascença

Formação das nacionalidades modernas

Inrupção do islamismo

Feudalismo

Intromissão dos bárbaros do Norte

Cristianismo

Roma

Grécia

Evolução histórica do Ocidente
Sentido dos acontecimentos


(*)“[A nossa história] principia como episódio da História de Portugal, e assim deve ser ensinada. Fazer a História do Brasil – exclusivamente, é mais absurdo do que pretender ensinar a formação do fruto, sem tomar em consideração a vida da planta” (Bomfim, 1927, p. 258).

Habilidades e valores também são explicitados nas Lições de Pedagogia. Elas são anunciadas no momento em que ele aconselha a introdução (aqui, acolá) de análises nos quadros históricos gerais. O professor deve fazer com que o aluno estude
[...] pormenorizadamente, uma fase, uma quadra, ou um acontecimento em particular. Tem isso a vantagem de apurar o espírito na crítica histórica, e de habituá-lo a prosseguir por si mesmo nesses estudos, se o gosto o leva para aí.
[...] O estudo da História [...] deve ser feito de molde a suscitar e cultivar os sentimentos de admiração e veneração pelos grandes tipos; deve despertar o entusiasmo e devoção pela comunidade nacional (idem, p. 269-270).
Essas orientações, no entanto, são inadequadas ao ensino de crianças menores de 9 ou 10 anos de idade (Bomfim, não explica as razões). Na primeira fase da escola primária, a História ensinada deve ser “educativa”, “preparatória” e “intuitiva”. Assim, os conteúdos substantivos devem ser constituídos por informações captadas (pelos alunos) na experiência contemporânea (os interesses em comum e as relações de interdependência entre as pessoas do seu mundo) e nas “biografias dramáticas”. A função do ensino, poderíamos afirmar, é fazer com que a criança adquira noção de historicidade/identidade: “ela se reconhece uma criatura social, isto é, reconhece a forma positiva das suas relações no grupo humano, e tem a intuição da absoluta importância destas relações” (idem, p. 266). É também prepará-la para, futuramente, compreender o sofisticado discurso dos historiadores.
Coerente com estas finalidades, o professor tem que desenvolver no aluno as habilidades de observar, compreender (significado das regras morais, leis, costumes) comparar (situações), relacionar (causa/efeito), julgar (os personagens), argumentar (tomar posição) e diferenciar real de ficção (exigir verossimilhança).
É nesse sentido, por fim, que se deve entender o caráter subsidiário da História. Ela confunde-se com a Geografia (descrição de cenários, exercícios intuitivos), auxilia e é auxiliada pela Instrução Moral e Cívica (admiração e veneração aos “grandes tipos” e à “comunidade nacional”, conhecimento das máximas morais e sociais) e contribui com aos estudos da linguagem (oferecendo material para a composição literária) (Cf. idem, p. 270).

Muitas dúvidas e poucas conclusões
Bomfim é desafiador. Leu muito, misturou tudo e escreveu “pelos cotovelos”. Lições de Pedagogia (a terceira edição) possui 440 páginas cheias, sem ilustração alguma. Além disso, raros são comentadores à altura da sua erudição. Por isso, o título acima: mais dúvidas que conclusões, nessa minha primeira leitura dos seus preceitos pedagógicos para o primário.
***
Bomfim defende uma História de caráter positivo, mas (nos dois documentos analisados) não deixa claros os atributos cientificistas desejados: seriam os procedimentos de apreciação, comparação e julgamento? Seriam as leis que sintetizam a experiência humana? Seriam as relações de causa/efeito, indução/dedução? Ele toma partido pela História, diríamos, autônoma, mas aproxima-se da Sociologia comteana quando deixa entrever que as regularidades pretensamente extraídas da ciência da História têm fundo metafísico.
Como matéria de ensino, a atitude também é dúbia. A História é educativa, seja no aspecto moral, seja no aspecto mental. Ela cultiva um sentimento fundamental à existência da sociedade e do indivíduo: o patriotismo (etapa evolutiva do amor familiar). Sem ensino de História, pode-se concluir, não há indivíduos, sociedade e nem humanidade, já que “é na forma concreta de nações, que os grupos sociais vivem e progridem” (Bomfim, 1927, p. 353). Por outro lado, a História é matéria “subsidiária” à “instrução moral e cívica” – o que revela a finalidade última da educação escolar: é uma educação moral.
Sobre o “como ensinar”, Bomfim segue um princípio ainda em voga: “a História, ensina-se como ciência”, ou seja, os passos do ensino correspondem aos passos, diríamos hoje, da pesquisa. Mas, se não resolvemos a questão epistemológica (acima), podemos anunciar quais seriam esses passos? Caberia ao professor fazer com que os alunos reconhecessem o “estado de espírito” e épocas e homens de outrora ou apontar-lhes o a priori do progresso, agindo em benefício da autonomia brasileira?
Aqui também não resolveremos a questão. Mas, Bomfim indica os passos do método de ensino ao recuperar algumas características da produção do conhecimento histórico: História é “construção” e “interpretação” viabilizada pela análise das relações de causa/efeito, particularização/generalização. O ensino, portanto, deve dar ênfase às relações e generalizações e não a fatos isolados (o mau método do ensino de seu tempo – e do nosso tempo). O professor deve fornecer “quadros gerais”, “sínteses” da trajetória do povo brasileiro, detendo-se, ali e acolá, na análise de um determinado fato, para que o aluno possa exercitar o julgamento (a crítica histórica), tomar posição, argumentar, e desenvolver sentimentos moralmente saudáveis.
Esse conjunto de procedimentos, entretanto, só deve ser posto em prática após os 9 anos de idade (quando os alunos já poderiam estudar a História de forma integrada, mas não subserviente à experiência ocidental). É um dos primeiros brasileiros, senão o primeiro, a explicitar um critério (como ele repetia sempre) “racional” para a progressão dos conteúdos no ensino de História: partir do meio social mais próximo (família) e usar o conhecimento desse ambiente como elemento de comparação ou, como disseram Langlois e Seignobos (1898), como ferramenta (imaginação) para a conhecimento do seu passado.
Aqui, novamente, a dúvida (minha): é o presente que viabiliza o passado mediante comparação (no presente os homens agem assim – no passado o mesmo ocorreria) ou o passado que viabiliza o presente mediante a construção (sucessão de acontecimentos até o nascimento do aluno) da identidade individual/nacional? Os dois movimentos podem ser simultâneos?
Finalmente, como a educação histórica primária poderia contribuir para a sonhada revolução – e revolução no sentido de “reencontro feliz do Brasil consigo mesmo” (Reis, 2006, p. 222)? Aqui, arrisco a minha primeira responsta: o ensino de História daria a conhecer e a sentir o Brasil em sua evolução orgânica: “nascimento da nova sociedade” (século XVI), “consagração da nacionalidade” (século XVII), “afirmação da existência” do povo brasileiro (século XVIII); e “reivindicação da autonomia” brasileira (séculos XIX e XX). Tal é o programa esboçado nas suas Lições de pedagogia para as crianças brasileiras, que ele vai desenvolver, sobretudo, nos clássicos – O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil nação (1931) – que fariam dele “um rebelde esquecido” (Aguiar, 2000) e/ou um “otimista revolucionário ingênuo” (Reis, 2006).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Ensino de História em Manoel Bomfim: um instrumento de educação moral e mental a serviço da revolução (1915/1925). Nossa Senhora do Socorro, 19 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/ensino-de-historia-em-manoel-bomfim-um.html>.

Referências
AGUIAR, Ronaldo Conde. Manoel Bomfim: um intérprete dissonante dos males da América Latina. In: CRUZ, José Vieira da, BITTENCOURT JÚNIOR, Antônio (Org.). Manoel Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e o presente. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2010. pp. 207-236.
______. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. [Obra não consultada].
ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. Manoel Bomfim. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas Campos (Org.). Dicionário biográfico da psicologia no Brasil: Pioneiros. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001. Disponível em: < http://www.cliopsyche.uerj.br/arquivo/manoel.html>. Acesso em: 20 dez. 2010.
BOMFIM, Manoel. A pessoa moral da criança (Direito da criança ser educada). Boletim do 1º Congresso Brasileiro de Proteção à infância. Rio de Janeiro, 1925.
______. Lições de Pedagogia: teoria e prática da educação. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926.
______. Método de testes. Rio de Janeiro: s.n, 1928.
REIS, José Carlos. O historicismo – a redescoberta da história. Lucus: revista de história. Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 9-27, 2002.
______. Civilização brasileira e otimismo revolucionário (ingênuo): Manoel Bomfim e o sonho da República soberana e democrática. In: As identidades do Brasil (v. 2): de Calmon a Bomfim – A favor do Brasil: direita ou esquerda? Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. pp. 183-231.

Notas
[1] Manoel José do Bomfim (1868/1932). Nasceu em Sergipe. Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1890. Em 1898, ingressou no magistério, lecionando Educação Moral e Cívica na Escola Normal do Rio de Janeiro, na qual assumiu logo depois a cátedra de Pedagogia e Psicologia.Em 1902 foi a Paris com a finalidade de desenvolver seus estudos em Psicologia, tendo freqüentado o Laboratório de Psicologia anexo à Clínica Jouffroy, em Saint’Anne, e estudado com Georges Dumas e Alfred Binet, com quem planejou a instalação do primeiro Laboratório de Psicologia brasileiro, instalado em 1906 no Pedagogium,do qual foi diretor por quinze anos; poucas informações há sobre a produção desse laboratório, embora suas atividades sejam citadas nas obras publicadas pelo autor.De volta ao Brasil, foi nomeado diretor da Instrução Pública.
Autor de vasta obra, escreveu sobre História do Brasil e da América Latina, Sociologia, Medicina, Zoologia e Botânica, além de vários livros didáticos, dos quais alguns de Língua Portuguesa, em co-autoria com Olavo Bilac; em Psicologia e Educação escreveu Lições de pedagogia (1915) e Noções de psychologia (1916), obras utilizadas como suporte para suas aulas na Escola Normal; Pensar e dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem (1923), obra em que demonstra vasta cultura geral e domínio das mais importantes correntes de Psicologia na época; O methodo dos testes (1926) e Cultura do povo brasileiro (1932), além de outras publicações como: Critica à Escola Activa, O fato psychico, As alucinações auditivas do perseguido e O respeito à criança. [...] (Antunes, 2001).
[2] A boa elaboração intelectual consistirá sempre em acumular a experiência – pessoal, ou alheia, e organizá-la conveniente, para poder tirar dela o melhor partido. A aquisição de faz pela percepção e pela assimilação; a organização depende da capacidade de discernimento e de concepção: compreender as realidades, e imaginar as possibilidades. Donde resulta que uma boa Inteligência revela-se no conjunto dessas quatro qualidades, que a educação precisa obter: bem perceber, bem assimilar,bem compreender e bem imaginar (Bomfim, 1926, p. 82).
[3] De onde vem o conhecimento? “os conhecimentos que nos enriquecem e fortalecem a inteligência têm necessariamente uma destas origens: a observação e impressão direta das coisas – experiência pessoal; sugestão espontânea do meio social, ou imitação; e a transmissão intencional por parte dos pais e dos educadores. As duas primeiras categorias fazem parte da educação natural, ao passo que a última se inclui na educação sistemática. Os conhecimentos resultantes da transmissão intencional se distribuem, por sua vez, em duas ordens: conhecimentos, indicações e conselhos ministrados correntemente pela família, para suprir a inexperiência da criança; e conhecimentos ministrados didaticamente, sob a forma de ensino escolar, subordinado a um programa. Essa transmissão sistemática de conhecimentos constitui a instrução propriamente dita. (Bomfim, 1926, p. 83).