domingo, 27 de março de 2011

Ensino de História nos currículos de doze municípios brasileiros (2000/2010)

Detalhe da capa de Orientações curriculares: proposições e expectativas de aprendizagem
(Ensino Fundamental I). São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, 2007.


Por que estudar currículos?
Estudamos currículos porque são “documentos de identidade”, na feliz assertiva de Tomás Tadeu da Silva (1999) – instrumentos de formação individual do que a sociedade quer ver impresso nos seus futuros membros. Currículos são também a representação daquilo que as gerações passadas nos legaram em termos de finalidades educacionais, conhecimentos, estratégias de ensino, aprendizagem e avaliação a serem desenvolvidas em ambiente escolar.
Sobretudo em relação ao ensino de História, entendido aqui como mecanismo formador de identidade individual e de grupos e como orientador da vida prática (Cf. Rüsen, 2001), os currículos estão sempre “sob investigação”. Suas lentas mudanças vivem “sob a vigilância” constante dos historiadores (Cf. Bittencourt, 2000; Caime, 2001; Martins, 2002). Neste caso, entretanto, assumimos a tarefa de pensar o currículo como instrumento de emprego prospectivo. Em outras palavras, aqui incorporamos a missão dos curriculum makers, isto é, a tarefa de refletir e agir sobre a construção de identidades brasileiras, no que diz respeito à educação histórica escolar.
Instados pelas demandas da Secretaria da Educação Básica do Ministério da Educação, que, nos últimos 12 meses, tem se ocupado da revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, engajamo-nos na tarefa de produzir “propostas de expectativas de aprendizagem dos conhecimentos escolares que devem ser atingidas pelos alunos em diferentes estágios do ensino fundamental” – no contexto da expansão de 8 para 9 anos de duração (Cf. CNE, 2000, p. 2).
Detalhe da capa de Orientações curriculares: História. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Educação, 2010.


Como pensar a identidade é refletir também sobre o outro e, ainda, ao consideramos a ideia de diversidade cultural como um acervo de experiências à disposição (e para o benefício) de todos os grupos humanos, tomamos a iniciativa de traçar um perfil das expectativas de aprendizagem (aquilo que as crianças deveriam aprender), produzidas na última década no Brasil, em localidades das regiões Sul (Passo fundo-RS, Fazenda do Rio Grande-PR e Florianópolis-SC), Sudeste (São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Belo Horizonte-MG), Nordeste (Aracaju-SE, Terezina-PI e São Luís-MA), Centro-oeste (Goiás e Brasília-DF) e Norte (Boa Vista-RR).
Neste texto, são apresentados os primeiros resultados de um perfil e os desdobramentos desse exame para a elaboração da proposta de “expectativas da aprendizagem” histórica, destinadas aos anos iniciais da escolarização básica.
Aqui, desprezamos as variações das formas de enunciação[1] e de organização (eixos, ciclos e séries). Também não discutiremos as finalidades, em geral alinhadas às vulgatas do paradigma historicista e às prescrições dos documentos oficiais que orientam os desenhos das propostas destinadas ao ensino fundamental (Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Parâmetros Curriculares Nacionais, Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental). Nos interessam, diretamente, os elementos que podem responder à questão sugerida pelo título: o que as crianças brasileiras devem estudar com o nome de História? Quais os conhecimentos e as habilidades prescritas nas propostas produzidas nos últimos 10 anos?

Habilidades e conhecimentos prescritos para a alfabetização histórica[2] das crianças em 12 municípios brasileiros[3]
O que se deve ensinar às crianças ou, na composição politicamente correta da frase, o que se espera que os alunos aprendam? Aqui tratamos conteúdos como tudo aquilo que se ensina nos limites da disciplina histórica (Cf. Chervel, 1990).[4] Esse “tudo” é entendido como conhecimentos e habilidades (Cf. Anderson, 2001) e tais conhecimentos e habilidades são traduzidos em termos históricos como conteúdos substantivos – que nomeiam a realidade circundante – e conteúdos meta-históricos – que dizem respeito às operações processuais da pesquisa e da escrita históricas (Cf. Cooper, 2002; Lee, 2005; Rüsen, 2007).
Comecemos com os números totalizantes: com quantos objetivos se elabora uma proposta para a alfabetização histórica para os primeiros cinco anos do ensino fundamental? Como podemos perceber, através da tabela n. 1, A quantidade de objetivos por proposta varia bastante. Belo Horizonte (18 objetivos), São Luís (21), Passo Fundo (23) e Florianópolis (25) são as mais quatro mais sintéticas. Fazenda do Rio Grande (113), Brasília (118), Goiás (129)[5] e Boa Vista (145) estão entre as mais extensas.[6] Somadas sem diferenciação de quantidade ou distribuição nos anos/séries/ciclos, encontramos 70% de objetivos relativos aos conhecimentos e habilidades específicas, isto é, objetivos que veiculam conteúdos meta-históricos e substantivos, e 30% de objetivos relacionados, majoritariamente, às questões éticas e estéticas.

Tabela n. 1
Objetivos da alfabetização histórica nas propostas curriculares brasileiras (2000/2010)
Categorias
Incidência*
Objetivos gerais
265
30%
Objetivos específicos
628
70%
TOTAL
893
100%
(*) Nesta e em todas as tabelas, a operação foi efetuada sobre o total de 893 objetivos.

Esses números, no entanto, estão distribuídos de forma desigual entre as propostas. Pelo gráfico n. 1, é possível constatar que a proposta de Passo Fundo não anuncia objetivos gerais e que estes, por sua vez, superam os objetivos específicos na proposta de Boa Vista. Nas demais propostas, os objetivos gerais ocupam de 6% a 30% dos objetivos da alfabetização histórica, mostrando, dentro dos documentos selecionados, nítida hegemonia dos objetivos específicos – relativos aos conhecimentos e habilidades processuais da pesquisa e da escrita da história – sobre os objetivos gerais.

Gráfico n. 1
Objetivos gerais e específicos da alfabetização histórica
em propostas curriculares brasileiras (2000/2010)



Objetivos gerais[7]
Nas propostas curriculares, os objetivos específicos superam em quantidade os objetivos gerais. Mas que tipo de conteúdo foi aqui considerado objeto geral? São as atitudes e os valores procedentes de princípios éticos (77%) que pregam o respeito à ordem democrática, ao bem comum, mas, sobretudo, a responsabilidade e a solidariedade. Entre os primeiros (responsabilidade – 35%) estão, por exemplo, o reconhecimento do enunciado e do significado das regras de convívio cotidiano na escola, família, bairro, leis e direitos relacionados à pessoa humana, à criança e ao adolescente, e o estímulo à participação na vida política local. Dos princípios éticos de solidariedade (41%), são citados, recorrentemente, o reconhecimento e o respeito às diferentes formas de expressão e organização, formação familiar, à diversidade étnica, de gênero, aos afro-descendentes e o uso do diálogo na resolução de conflitos.
Os princípios estéticos (11%) estão presentes, majoritariamente nos objetivos que pregam o conhecimento, reconhecimento, respeito e valorização da diversidade de formas de expressão, de patrimônios, identidades locais e regionais.
Entre os objetivos gerais, por fim, é significativa a presença de conhecimentos e habilidades relacionadas ao exercício da criticidade, tais como: o reconhecimento do valor dos movimentos sociais, das políticas públicas para o acesso à cidadania ampliada, e o conhecimento da relação capitalismo-desigualdades sociais.
Por fim, ainda na rubrica objetivos gerais, aparecem as ações residuais relativas ao desenvolvimento de habilidades de comunicação, de localização espacial, ao consumo responsável, à convivência com os outros e consigo mesmo (autoestima).

Objetivos específicos da alfabetização histórica
Os objetivos específicos, como anunciamos, dizem respeito aos conteúdos substantivos e aos conteúdos meta-históricos. Juntos, eles representam 70% do total dos objetivos (cf. Tabela n. 2). Mas, da mesma forma que o par objetivos gerais/objetivos específicos, conteúdos substantivos e conteúdos meta-históricos são distribuídos de maneira diversa entre as propostas aqui analisadas.

Tabela n. 2
Conteúdos substantivos e conteúdos meta-históricos para a alfabetização histórica em propostas curriculares brasileiras (2000/2010)
Categorias
Incidência
Conteúdos predominantemente substantivos
365
41%
Conteúdos predominantemente meta-históricos
263
29%
Objetivos gerais
265
30%
TOTAL
893
100%


Pelo gráfico n. 2 é possível constatar essa diversidade: 1. os objetivos específicos rivalizam-se nas propostas de São Paulo, São Luís, Rio de Janeiro, Passo Fundo e Aracaju; 2. os conteúdos substantivos superam em mais de 50% os meta-históricos nas propostas de Teresina, Goiás, Fazenda do Rio Grande e Boa Vista; 3. os conteúdos meta-históricos representam quase o dobro em relação aos substantivos na proposta de Brasília; e 4. praticamente não há conteúdos substantivos na proposta de Belo Horizonte.

Gráfico n. 2
Conteúdos substantivos e meta-históricos para a alfabetização histórica
nas propostas curriculares brasileiras (2000/2010)



Conteúdos substantivos
Essas relações de empate, superioridade, inferioridade e exclusão ganham sentido quando conhecemos em detalhe o que aqui nomeamos por conteúdos substantivos e conteúdos meta-históricos. Vejamos os primeiros.
Objetivos que veiculam, dominantemente, conteúdos substantivos referem-se às habilidades e aos conhecimentos que informam sobre a experiência humana no tempo configurada em acontecimentos. Trata-se da informação considerada pela literatura historiográfica, muitas vezes pejorativamente, como factual. Eles nomeiam, em baixa frequência, os artefatos (1%) – astros, utensílios domésticos, equipamentos urbanos, os próprios conceitos históricos (2%) – homem, liberdade, quilombo, grupo social, trabalho, trabalho escravo, trabalho livre, migração, imigração, os sujeitos (5%) individuais pessoais, a exemplo de aluno, colegas da escola, familiares, e sujeitos coletivos – colonos, migrantes, bandeirantes, indígenas, quilombolas, grupos étnicos, e as datações tópica e cronológica (6%).
Em frequência um pouco mais alta aparecem os acontecimentos isolados (14%) – rotinas familiares, origens do bairro, acontecimentos da vida escolar, ação dos portugueses em São Paulo – ou os sucessivos e sincrônicos (73%) – processos de formação, modos de vida, circunscritos a determinados intervalos de tempo (período), espaço (local, municipal, estadual, nacional e global), dimensões do humano (economia, política, cultura e sociedade), bem como as suas características, diferenças/semelhanças, significados (importância, contribuição, influências exercidas sobre outrem), causas e consequências.

Conteúdos meta-históricos
As categorias mais referenciadas nos objetivos relativos às habilidades e conhecimentos meta-históricos são as que incluem os conceitos de tempo (37%) e de fonte histórica (17%).
Da primeira, são comuns as expectativas de conhecimento, reconhecimento, produção, diferenciação e uso de instrumentos de identificação, medição, interpretação e controle do tempo em seus diferentes ritmos e durações – linha do tempo, calendário, relógio e vocabulário (segundo, hora, dia, mês, bimestre, semestre, ano, década, século), o reconhecimento e a análise de mudanças e permanências, e o desenvolvimento da noção de tempo através das habilidades de sucessão e localização, por exemplo, de acontecimentos.
Dos objetivos relacionados à ideia de fonte histórica, são dominantes as atividades de conhecer fontes, reconhecer diferentes tipos de fontes, coletar e produzir (registrar) fontes históricas, a exemplo de fotos, depoimentos orais, brinquedos, certidões de nascimento, RG, diários, quadros, tabelas, gráficos, objetos de museu, gravações sonoras, paisagens do campo e da cidade.
As demais categorias apresentam baixa frequência em relação às duas citadas (tempo e fonte). São elas: a elaboração de hipóteses, a compreensão da escrita da História como versão/interpretação, descrever sintetizar e narrar a partir do exame de fontes diversas.

Gráfico n. 3
Objetivos que exploram conceitos e habilidades relativos às noções de fonte
e de tempo históricos nas propostas curriculares brasileiras (2000/2010)


Os dados quantitativos sobre os conteúdos meta-históricos ainda permitem inferências sobre a incidência das categorias tempo e fonte nas propostas selecionadas. O que podemos perceber, pelo gráfico n. 3, é o predomínio dos objetivos relativos à categoria tempo sobre a categoria fonte em oito das doze propostas, e, de maneira inversa, o maior espaço reservado aos objetivos relativos à categoria fonte na proposta de Belo Horizonte. A distribuição igualitária – tempo/fontes – somente ocorre em Florianópolis.

Conclusões
Construir um perfil das expectativas de aprendizagem prescritas para a alfabetização histórica em 12 propostas curriculares brasileiras foi o nosso objetivo neste artigo. Aqui, nos propusemos descrever o que se enuncia como conteúdos e as formas empregadas para dizê-lo.
As informações colhidas nos permitiram afirmar que são variadas as formas de enunciá-los, a começar da quantidade estimada em cada proposta para o conjunto dos cinco anos iniciais do ensino fundamental. As propostas prescrevem de 18 a 145 objetivos, sendo que alguns desses, como é o caso do documento de Boa Vista-RR, se repetem por todos os anos.
Ao classificar os objetivos em gerais e específicos (da ciência da História), constatamos a supremacia dos objetivos específicos (70%) sobre os objetivos gerais (30%), tanto no somatório de todas as propostas quanto na distribuição dessas duas categorias dentro de cada proposta. A exceção fica por conta da proposta de Boa Vista-RR, onde os objetivos gerais superam em quantidade aos objetivos específicos, como também da proposta de Passo Fundo-RS, da qual são praticamente excluídos os objetivos gerais.
Detalhando objetivos gerais e objetivos específicos, constatamos que entre os primeiros, predominam os princípios éticos (77%) – de responsabilidade e de solidariedade –, os princípios estéticos (11%), e o exercício da criticidade (7%). São residuais os conhecimentos/habilidades de comunicação, localização espacial, consumo responsável, convivência com os outros e consigo mesmo.
Entre os objetivos específicos, por sua vez, a distribuição é bastante variada, com relativa predominância dos conteúdos substantivos (41%) sobre os conteúdos meta-históricos (29%), tanto no somatório quanto no interior de cada proposta.
Dos substantivos, são significativas as referências aos acontecimentos, modos de vida, em detrimento das expectativas de aprendizagem de conceitos, nomes de sujeitos, artefatos e datações tópica e cronológica.
Dos meta-históricos, chama a atenção o grande destaque concedido aos conceitos/noções de tempo e fonte sobre as demais operações processuais e singularidades da pesquisa e da escrita históricas, tais como: elaboração de hipóteses, a relatividade da verdade histórica e a habilidade de articular os acontecimentos em forma de narrativa.
Esperamos, por fim, que essas conclusões possam alimentar a reflexão sobre “o que ensinar” com o nome de História e orientar a formatação de propostas coerentemente fundamentadas, que viabilizem o processo de alfabetização histórica das crianças brasileiras.


Para citar este texto
FREITAS, Itamar e OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. Ensino de História nos currículos de História de doze municípios brasileiros: um perfil das habilidades e dos conhecimentos prescritos para a alfabetização histórica das crianças (2000/2010). Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com/2011/03/curriculos-de-historia-e-expectativas.html>.

Referências
ANDERSON, Lorin W.; KRATHWOL, David R. et. al. A taxonomy for learning, teaching, and assessing: a revision of Bloom’s taxonomy of educational objectives. New York: Longman, 2001.
ARACAJU, Secretaria Municipal da Educação. Programa de Conteúdos e Ementário, para o primeiro segmento do Ensino Fundamental. Aracaju: SMED, 2008.
BELO HORIZONTE, Secretaria Municipal de Educação. Desafios da formação: proposições curriculares para o ensino fundamental – 1º ciclo. Belo Horizonte: SMEBH, 2009.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Propostas curriculares de História: continuidades e transformações. In: BARRETO, Elba Siqueira de Sá (org.). Os currículos do ensino fundamental para as escolas brasileiras. 2. ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campinas: Editora Associados, 2000. pp. 127-161.
BOA VISTA, Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Proposta Curricular Municipal do Ensino Fundamental dos Anos Iniciais 2008. Boa Vista: SMECBV, 2008.
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CAIMI, Flávia Eloisa. Políticas educacionais oficiais e currículos de História. In: Conversas e controvérsias: o ensino de História no Brasil (1980/1998). Passo Fundo: Editora da Universidade da UPF, 2001. pp. 81-83.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-254, 1990.
COOPER, Hilary. Didáctica de la historia en la edcación infantil y primaria. 2. ed. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte; Morata, 2002. [A primeira edição inglesa é de 1995].
DISTRITO FEDERAL, Secretaria de Estado da Educação. Orientações curriculares: ensino fundamental – séries e anos iniciais. Brasília: SEEDF, s.d.
FLORIANÓPOLIS, Secretaria Municipal de Educação. Reorganização Curricular Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Florianópolis: SME, s.d.
GOIÁS, Secretaria de Estado da Educação de. Reorientação curricular, 1º ao 9º ano. Currículo em debate – expectativas da aprendizagem: convite à reflexão e à ação. Goiânia: SEEG, 2007.
LEE, Peter. Caminhar para trás em direção ao amanhã: a consciência histórica e o entender a história. Disponível em: <www.cshc.ubs.ca/viewabstract.php>. Acesso em 21 nov. 2005.
MARTINS, Maria do Carmo. Disciplina e Matéria: a versão oficial. In: A História prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes? Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002. pp. 108-116.
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TERESINA, Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Diretrizes curriculares do município de Teresina. Teresina: SMEC, 2008.

Notas

[1] As propostas anunciam-se como conteúdos e ementário, expectativas de aprendizagem, proposta, referencial, orientações e diretrizes curriculares.
[2] Consideramos a locução alfabetização histórica como um processo (e o que dele resulta) de aquisição e desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que possibilitem o pensar historicamente, ou seja, que possibilitem a articulação do presente, passado e do futuro com vistas à construção da identidade e da orientação na vida cotidiana, dentro das orientações elaboradas por Jörn Rüsen (2001) para a Teoria da História.
[3] Para a classificação dos conteúdos entendemos as formas de enunciação como objetivos. Estes objetivos, por sua vez, foram classificados como gerais (quando guardam conhecimentos e habilidades não especificamente características do ofício do historiador) e específicos (substantivos e meta-históricos). Na tipificação meta-histórico/substantivo, entretanto, enfrentamos alguns problemas, entre os quais, destacamos: identidade é substantivo, meta-histórico ou valor? Espaço é substantivo, meta-histórico ou valor? Memória é substantivo, meta-histórico ou valor?
Não é o verbo ou o substantivo que indicam a classe (substantivo ou meta-histórico). São o substantivo e o verbo em relação. A ênfase da proposição (substantivo, meta-histórico, expressão, valores) e a ordem das ações (quando o objetivo é formado por dois ou mais verbos) são os elementos a serem considerados. Nosso procedimento considerou as etapas de tipificação e refino (fazendo as descrições e interpretação) antes de fechar as consultas e elaborar as tabelas. Ao final, a estatística é fiel à descrição.
[4] A maior parte das propostas configura os conteúdos em pares, dos quais faz parte, ao menos, uma dessas três palavras: habilidades, competências e conteúdos. Mas o rol de alternativas é extenso e de sentido variado para os mesmos termos: atitudes, campos de estudo (conceitos), capacidades, habilidades (atos, operações mentais, atitudes e valores), competências, competências atitudinais e operativas, competências cognitivas, conceitos, conteúdos, conteúdos (conceitos), conteúdos (conceitos substantivos), expectativas, expectativas de aprendizagem, fatos, habilidades, objetivos e procedimentos.
[5] Embora seja uma proposta estadual, o documento Reorientação curricular oferece diretrizes também para os anos iniciais do ensino fundamental. Por essa razão, foi incluída neste trabalho.
[6] A totalização é feita a partir da soma dos objetivos destinados a todos os cinco anos iniciais da escolarização básica. Quando um mesmo objetivo é prescrito para vários anos, multiplicamos o número de objetivos replicados pelo número de anos em que os mesmos são utilizados.
[7] Para a categorização dos objetivos gerais, adaptamos e empregamos as rubricas expressas pela Constituição de 1988 e reproduzidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996): princípios éticos – responsabilidade, solidariedade [cooperação], respeito ao bem comum, exercício da criticidade, respeito à ordem democrática; princípios estéticos – sensibilidade, criatividade, diversidade de manifestações artísticas e culturais.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Perspectivas desenvolvimentais, aprendizagem e possibilidades de progressão a partir da obra de Jerome Bruner

Detalhe da capa das Diretrizes Curriculares da Educação Básica (História). 2008.
Nas postagens anteriores, apresentei sugestões de como selecionar e seqüenciar conteúdos históricos a partir de algumas possibilidades oferecidas pelas teorias desenvolvimentais, da educação e da aprendizagem produzidas por J. Piaget e L. Vigotsky. Hoje procedo da mesma forma, abordando as idéias de currículo, ensino, aprendizagem veiculadas pelo psicólogo norte-americano Jerome Bruner no livro O processo na educação, publicado em 1960.
Aqui, também apresentarei o significado dos conceitos de “estrutura” e “currículo em espiral” e darei exemplos de como tais idéias podem orientar a progressão dos conteúdos históricos em cursos superiores e de educação básica.

Uma síntese sob a guarda do cognitivismo
Jerome S. Bruner entrou para a bibliografia educacional de vários países, incluso o Brasil, no início da década de 1960, por meio do livro O processo da educação (The processo of education, Cambridge, 1963). Nele, o psicólogo responde a questões clássicas: o que ensinar, quando e como ensinar; como elaborar currículos e qual o papel da estrutura no processo de ensino aprendizagem.[1]
O processo da educação
Assinado por Bruner, no entanto, O processo na educação é fruto das reflexões de dezenas de pesquisadores das ciências naturais, humanas e das matemáticas, que se reuniram em 1959(Conferência de Woods Hole – Cabo Cod) para discutir melhorias no ensino das escolas primárias e secundárias dos EUA.
Bruner atuou como presidente desse evento. Produziu relatório, selecionando aquilo que, “do seu ponto de vista, foram os temas principais, as conjecturas mais importantes, e as conclusões mais notáveis a que se chegou” (Bruner, 1968, p. xviii).
Ele mesmo alerta: a conferência reuniu diferentes tendências teóricas, mas “usei livremente os documentos preparados pelos grupos de trabalho e as anotações feitas durante as sessões plenárias” (idem, p. xviii). Isso implica afirmar que O processo da educação foi escrito a partir de relatos fundados no behaviorismo, Gestalt, psicometria e da Escola de Genebra, porém traz a marca do pensamento cognitivista de Bruner – ancorado em postulados piageteanos com traços esparsos de proposições vigotskianas.
Mais importante, ainda, o livro veicula um conceito que permaneceria orientando os currículos norte-americanos, notadamente os de História e de Estudos Sociais (OEA, 1968), pelos próximos trinta anos: a “estrutura” da matéria.

Aprender e ensinar História: o papel da “estrutura”
Para Bruner, “O currículo de uma dada matéria deve ser determinado pela compreensão mais fundamental que se possa atingir a respeito dos princípios básicos que dão estrutura a essa matéria” (1968, p. 28). Esta é a tese fundamental do principal capítulo de O processo da educação. O ensino fundado em princípios básicos possibilita ao aluno a compreensão da matéria, facilita a recuperação (rememoração) e a transferência da aprendizagem (o uso em situação futura – qualquer fenômeno particular passa a ser compreendido como exemplo específico de um caso geral), e mantém a matéria escolar atualizada (minimiza a distância entre os conteúdos escolares e os resultados da pesquisa de ponta). (Cf. Bruner, 19689, p. 21-23).
Quais os desdobramentos dessa proposição para os trabalhos de progressão histórica? Para compreendê-los, é necessário conhecer as suas idéias sobre finalidades da educação escolar, aprendizagem e conteúdos.
Jerome Bruner por David Levine (1997).
Jerome Bruner
Bruner entende aprendizagem como “transferência” de “habilidades” e de “idéias gerais”. Também pela via dicotômica, anuncia critérios de escolha dos objetos do aprendizagem escolar: 1. o prazer que possa proporcionar ao aluno;  e 2. a utilidade que tais objetos de aprendizagem devam oferecer ao presente e ao futuro do aluno e da sociedade.
Explicitada a pluralidade em vigor nos EUA, ele toma posição: a aprendizagem deve considerar, prioritariamente, a utilidade para o aluno. E os conteúdos que melhor contribuem para o presente e o futuro são as “ideias gerais” que estruturam a disciplina ser ensinada.
Por esse raciocínio, aprender História seria compreender as ideias fundamentais produzidas no âmbito dos produtos da ciência da História (a escrita da história) e “reconhecer a aplicabilidade ou não de uma ideia a uma situação nova e, com isso, ampliar [o] conhecimento” do aluno (Bruner, 1968, p. 16).
Aprender História, como qualquer outro componente curricular, significaria: adquirir nova informação (comprendendo-a); manipular (analisar, ordenar, extrapolar, interpolar, converter) essa nova informação no emprego de uma nova tarefa; avaliar se “o modo pelo qual manipulamos a informação é adequado à [atual] tarefa” (Bruner, 1968, p. 45).
No livro, Bruner também tece considerações sobre um conteúdo específico requisitado como importante para alguns estudiosos presentes em Woods Hole: “o estilo de pensamento de uma disciplina”, as “atitudes” ou os “expedientes heurísticos”. Para o ensino de História, tais palavras podem ser traduzidas com as modernas expressões “conteúdos metahistóricos” (Cf. Lee, 2005) ou habilidades fundamentais ao domínio das “operações processuais da História (Cf. Rüsen, 2007).
Bruner até concorda que o “fazer” – por em uso determinadas habilidades específicas do ofício do historiador, por exemplo – está relacionada ao “compreender”: “como pode alguém saber o que um aluno compreendeu, senão vendo o que ele faz?” (Bruner, 1969, p. 26). Mas, não toma posição sobre a necessidade de incluir os procedimentos, dizemos hoje, metahistóricos, como conteúdos fundamentais. Conteúdos são, efetivamente, as idéias gerais da matéria ou, nas palavras contemporâneas dos historiadores já citados, conteúdos seriam conhecimentos conceituais substantivos.
Essas definições de conteúdo e de aprendizagem, forçosamente, geram novas idéias de currículo, ensino e, ainda, um novo papel para o professor. Ensinar História pode ser definido como um processo que exige o planejamento e a execução de sequências didáticas nas quais os alunos sejam estimulados a intuir (formular hipóteses) e descobrir (inferir) “idéias”, “idéias gerais”, “idéias fundamentais”, “conceitos” e/ou “princípios” produzidos pela ciência histórica. É necessário, portanto, que o professor de História não apenas alimente o interesse (motivação) do aluno em descobrir as razões dos fenômenos (os princípios que os regem), mas também domine a “estrutura” da História a ser ensinada.
Dominar a estrutura da História significa dizer, ainda, que os responsáveis pela elaboração dos currículos de História passam a ser os mais proeminentes historiadores.[2] Para Bruner, a participação dos eruditos garante a correção dos conteúdos, posto que somente eles, conhecedores profundos da matéria, têm competência para indicar os princípios basilares e as relações estabelecidas por/entre esses princípios.
A seguir, farei uma demonstração do que poderia ser a “estrutura” de uma dada matéria e as formas hierarquizadas nas quais ela se configuraria no curso de uma disciplina do ensino superior de História. Aqui, exploro a História da historiografia brasileira.

A estrutura da matéria História da historiografia brasileira
A situação hipotética é a disciplina de História da historiografia brasileira, ministrada aos alunos intelectualmente maduros no período de uma unidade semestral, bimestral ou mensal. Importa, com esse exemplo, demonstrar o uso dos conceitos de Bruner no que diz respeito à seleção das idéias-chave, das conexões estabelecidas entre essas idéias-chave, da disposição dessas idéias-chave em dimensões sincrônica e diacrônica.[3]
Francisco Iglésias (1924/1999)
Suponhamos que dois professores tenham concepções diferentes em termos desenvolvimentais, ideológicos e epistemológicos. O primeiro adota o livro Historiadores do Brasil, de Francisco Iglésias (2000) e o segundo o livro de José Carlos Reis (1999) intitulado As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Qual seria a estrutura da matéria a ser ministrada aos alunos do curso de Historiografia?[4]
O professor que escolhe o livro de Iglésias e que se propõe a extrair e dar a conhecer a estrutura da matéria História da Historiografia Brasileira, evidentemente, não exporá em sala os 500 sujeitos citados no livro, os 50 autores, as 150 obras, as centenas de cenários destacados pelas obras ou que retratam o seu ambiente de produção. O mestre, da mesma forma, não se demorará em reproduzir na lousa ou por meio da voz as centenas de acontecimentos narrados no livro. E o que fará então?
Ele dirá aos seus alunos que a história da historiografia brasileira pode ser conhecida por meio de quatro conceitos estruturantes: tempo,historiografia, ideologia, sujeito. É provável que algum desses conceitos seja do conhecimento dos alunos. Isso ajudará ainda mais no cumprimento dos objetivos da disciplina. Mesmo assim ele explicará: o tempo é uma sensação de sucessão e simultaneidade controlado pelo homem mediante os instrumentos inventados pelo homem – a exemplo do calendário. Com o tempo, vocês saberão que a matéria história da historiografia brasileira é recortada em três momentos: 1500/1838; 1838/1931; e 1931/1985.
História da historiografia, o segundo conceito é entendido como conhecimento sobre os resultados do trabalho do historiador, resultado configurado em obras, escritos. A matéria em pauta, neste caso, tem como objeto os impressos produzidos pelos historiadores e o nosso objetivo no curso é conhecer tais impressos a partir daquilo que elas informam sobre o uso das operações processuais do historiador (método), das qualidades literárias (estilos de escrita).
O terceiro conceito é o de ideologia, entendida como o conjunto de idéias partilhadas por determinado grupo social, que o cimenta e que justifica a sua existência. Na matéria, verificaremos que todas as obras são ideológicas posto que todos os seus autores se inscreveram em determinado lugar social.
O último é o conceito de sujeito. Se não há história sem reflexão sobre o tempo, o mesmo pode-se dizer da idéia de um ser que pensa, pratica ou sofre determinada ação.
De posse desses quatro conceitos (tempo, história da historiografia, ideologia e sujeito) – numa palavra, da estrutura da matéria história da historiografia brasileira –, o aluno conseguirá apreender aquela massa de 500 sujeitos, 50 autores, 150 obras, e as centenas de cenários destacados no livro de Iglésias de maneira inteligível.
Dizendo de outra forma, conhecer essa enorme massa de sujeitos, acontecimentos e qualidades após o domínio dos conceitos-chave da disciplina possibilitará ao aluno: 1) discriminar o estrutural do acessório, já que domina as principais categorias responsáveis pela produção de sentido acerca da experiência dos historiadores brasileiros na interpretação da experiência brasileira; 2) estabelecer relações entre autores (sujeitos) e obras (historiografias e ideologias) produzidas em diferentes “momentos da historiografia brasileira” (tempo), relações de comparação, causa e efeito, formas de apropriação; 3) produzir um juízo sobre as obras, que lhe permitirá fundamentar melhor a sua escrita e a sua ação como futuro professor de História; 4) conhecer o modo de operação de Francisco Iglésias, ampliando as suas capacidades metacognitivas.
Conhecida a estrutura da matéria, professor e alunos já podem abordar a história da historiografia brasileira em diferentes escalas e durações. Pode, num determinado momento, estudar a história da historiografia brasileira produzida entre 1500 e 1985 ou, noutro, analisar a historiografia brasileira expressa em apenas uma obra de determinado autor, escrita em 1854.
José Carlos Reis
Quanto ao segundo professor, o que adota o livro As identidades do Brasil, de José Carlos Reis, o procedimento e os desdobramentos são os mesmos. Os conceitos – a estrutura da matéria –, entretanto, se distanciarão bastante da grade proposta por Iglésias, já que os dois partilham diferentes quadros teóricos e interesses.
A estrutura da matéria história da historiografia brasileira, neste caso, se configuraria por meio dos conceitos de tempo, espaço de experiência, horizonte de espera, historiografia e dialética. E a distribuição dos conteúdos no curso de 60 horas prescreveria, em primeiro lugar, a explicitação dos conceitos-chave, seguida pelo estudo sintético da matéria e finalizada pela abordagem micro-escalar da(s) obra(s) de determinado(s) autor(es). Mas, aqui, como vocês percebem, já estamos falando de progressão, objeto do tópico seguinte.

Ensinar e aprender: o papel da progressão
Vimos, pelo exemplo com a História da Historiografia Brasileira, a relevância da estrutura na ideia de ensino/aprendizagem de Bruner. Mas a seleção da matéria não encerra o objetivo deste texto. É necessário, também, demonstrar como Bruner sugere a distribuição dos conteúdos, ou seja, qual a sua ideia de progressão. Para tanto, são fundamentais as ações de traduzir a matéria, respeitar os estágios de desenvolvimento mental (pré-operatório, operações concretas e operações formais) e elaborar o currículo em formato espiral.
A figura da espiral, produzida pela Universidade do Wyoming, representa
a distribuição de conteúdos conceituais e de habilidades ao longo de
um curso de literatura no ensino superior. Os mesmos conteúdos
(literatura 1, 2 e 3) são avaliados repetidamente. 
Trata-se de uma adaptação contemporânea da ideia de currículo
em espiral anunciada por Bruner 
Em primeiro lugar, o professor deve traduzir a estrutura da matéria para a linguagem do aluno. Deve apresentar as proposições fundamentais da disciplina de uma forma que esta seja compreendida pelo aluno em seus diferentes estágios de desenvolvimento. Assim, deve modificar os a estrutura das frases, substituir palavras, empregar analogias, fazer perguntas, ampliando cada vez mais o nível de dificuldade – desafiando o aluno a avançar.
O professor deve, ainda, criar situações onde o aluno possa elaborar hipóteses (pensamento intuitivo) e descobrir a partir da sua própria experimentação. Dessa forma ele ganha autoconfiança e amplia o seu interesse pelo estudo da matéria.
Traduzir a estrutura, isto é, adequar as proposições da matéria ao nível de compreensão dos alunos significa também organizar os conteúdos em forma de espiral – apresentar várias vezes as mesmas idéias até que “o aluno tenha captado inteiramente a sua completa formulação sistemática” (Bruner, 1969, p. 12). A citação de Bruner é bastante clara quanto a esta forma de organizar os currículos. Vejamos:
Um currículo deverá, consequentemente, ser construído em torno dos grandes temas, princípios e valores que uma sociedade considera merecedores da preocupação contínua de seus membros [...] Se se concorda, por exemplo, em que é desejável dar às crianças uma consciência do sentido da tragédia humana e um senso de compaixão por ela, não será possível, numa idade precoce adequada, ensinar a literatura de tragédia de maneira a iluminar, sem contudo atemorizar? Há muitos modos possíveis de começar: pelo relato dos grandes mitos, pelo uso de clássicos infantis, pela apresentação e comentário de filmes previamente selecionados [...] E não precisamos esperar que se obtenham todos os resultados das investigações para começarmos a agir, pois um professor hábil pode também experimentar, tentando ensinar o que, intuitivamente, lhe parece correto para crianças de diferentes idades, corrigindo-se no correr do tempo. Com o tempo, alguns irão longe no sentido de versões mais complexas da mesma espécie de literatura, ou simplesmente voltarão a empregar alguns dos mesmos livros anteriormente usados. O que importa é que o ensino posterior se construa sobre prévias reações à literatura, que procure criar uma compreensão cada vez mais explícita e matura da literatura de tragédia (Bruner, 1968, p. 48-49).
Um exemplo ajuda a compreender a progressão em Bruner, orientada, obviamente, pela teoria do desenvolvimento de Jean Piaget.
Suponhamos que o mesmo professor de História da Historiografia Brasileira (do tópico anterior) tenha sido convidado para elaborar o ementário da disciplina História para a rede pública de ensino que abrange os níveis fundamental e médio.
Suponhamos também que ele julgue o axioma “História se faz com fontes” como fundamental ao ofício do Historiador e à identidade epistemológica da História. Seguindo as orientações de Bruner, a proposição “Pas du document, pas d’histoire” (extraída dos metódicos e conservada por todo o século XX) pode ser classificada como um princípio, uma ideia geral, em suma, um elemento estruturante da ciência histórica e, consequentemente, uma das estruturas da disciplina escolar História.
Como Bruner prescreve que o currículo deve ser constituído pelas estruturas e, ainda, que a estrutura pode e deve ser ensinada a qualquer aluno, de qualquer idade, caberá ao elaborador do currículo: 1. encontrar os meio para fazê-la presente em todas as etapas do ensino fundamental e médio; e 2. Traduzi-la para a linguagem interiorizada da criança, ou seja, respeitar o seu estágio de desenvolvimento.
O currículo do ensino fundamental e do ensino médio, portanto, entre tantas idéias principais extraídas da ciência da História e legitimadas pela comunidade como fundamentais para o presente e o futuro do aluno, ganhará a seguinte disposição:

Quadro n. 1
Exemplo de progressão de conteúdo conceitual histórico
segundo orientações de Jerome Bruner (1968)
Níveis de ensino
Atividades que “traduzem” o Axioma “História se faz com fontes”
Ensino Fundamental
Anos iniciais
(6 anos)

·  Nomear e definir objetos de diferentes suportes em uso no cotidiano a partir das suas formas e funções
·  Selecionar e colecionar (comparar/classificar) objetos de uso cotidiano a partir das suas formas, funções e importância
·  Desenhar objetos e elaborar perguntas sobre os seus usos, função e proprietário
·  Descrever (oralmente) informações que os objetos podem fornecer sobre a vida do seu usuário e sobre a maneira como foram produzidos
Ensino Fundamental
Anos finais
(11 anos)
·  Selecionar e colecionar (comparar/classificar) fontes oral, escrita e iconográfica sobre a história do Estado a partir da época de produção e da proximidade do autor da fonte com o acontecimento noticiado
·  Fazer perguntas e extrair informações sobre a autoria, local e data de produção das fontes sobre a história da cidade
·  Empregar vocabulário relativo à idéia de probabilidade: tenho certeza, acredito, é possível, imagino que, é provável, pode ser, e é impossível
·  Inferir sobre os desdobramentos de alguns acontecimentos destacados da história local
Ensino Médio
(17 anos)
·  Selecionar e colecionar (comparar/classificar/hierarquizar) fontes orais, escritas, iconográficas sobre a história do Brasil a partir da época de produção e da proximidade do autor da fonte com o acontecimento noticiado
·  Fazer perguntas sobre plausibilidade, verossimilhança
·  Empregar vocabulário relativo à idéia de probabilidade: há indícios, há testemunhos, pode ser demonstrado, é provável, é improvável
·  Elaborar hipóteses
·  Inferir sobre os desdobramentos de alguns acontecimentos destacados da história Global a partir das fontes submetidas à apreciação crítica

Na próxima postagem, apresentarei algumas possibilidades de progressão colhidas junto a historiadores como Fernand Braudel e Jörn Rüsen e encerrarei esta série com alternativas recentes, cunhadas em trabalhos de Antonio Brusa (Suíssa), Ivo Matozzi (Itália), Pierre-Philippe Bougnard (França) e Simon-Bowman (Inglaterra).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Perspectivas desenvolvimentais, aprendizagem e possibilidades de progressão a partir da obra de Jerome Bruner. <http://itamarfo.blogspot.com/2011/03/perspectivas-desenvolvimentais.html>.

Fontes das imagens
Detalhe da capa das Diretrizes Curriculares da Educação Básica (História). Curitiba: Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 2008.
Jerome Bruner. Disponível em: <www.todayinsci.com>. Capturado em: 4 mar. 2011.
Jerome Bruner. Ilustração de David Levine 1997. Disponível em: <www.nybooks.com>. Capturado em: 4 mar. 2011.
Francisco Iglésias (1924/1999). Disponível em: <http://veja.abril.com.br>. Capturado em: 4 mar. 2011.
José Carlos Reis. Disponível em: <http://www.comciencia.br>. Capturado em: 4 mar. 2011.
Currículo em espiral. Disponível em: <http://uwacadweb.uwyo.edu/CLAAS/Literacies.asp>. Capturado em: 4 mar. 2011.
Capa de O processo na educação (Edição revisada). Disponível em: <httpt://empodeteia.blogspot.com>. Capturado em 4 mar. 2011.

Referências
BRUNER, Jerome. O processo da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora da UNB, 2007.
LEE, Peter. Caminhar para trás em direção ao amanhã: a consciência histórica e o entender a história. Disponível em <www.cshc.ubs.ca/viewabstract.php> Acesso em 21 nov. 2005.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil (1): de Varnhagen a FHC. 9 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007. [Primeira edição em 1999].
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: Editora da UFMG, IPEA, 2000.
ORGANIZAÇÃO DE LOS ESTADOS AMERICANOS. La renovacion de la enseñanza de las ciências sociales em las escuelas secundarias de los Estados Unidos. Washington: Departamento de Assuntos Educativos, Union Panamericana, Organización de los Estados Americanos, 1968.
PIAGET, Jean. Os estádios de desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente. In: LEITE, Dante Moreira. O desenvolvimento da criança: leituras básicas. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da USP, 1972. pp. 199-208.

Notas
[1] Grosso modo, pela natureza dos temas, o impresso pode ser classificado como livro de Teoria do Currículo, nos Estados Unidos, e de Didática, no Brasil.
[2] Os professores da escolarização básica são colaboradores nesse processo. O seu papel é experimentar e inventariar os métodos mais adequados à tradução da estrutura da matéria à linguagem infantil.
[3] Com esse exemplo, desejo explicitar que o ensino superior de História também configura-se “ensino” e envolve processos de “aprendizagem”, seleção e progressão de “conteúdos”. Como tal, está sujeito à orientações pedagógicas, da mesma forma que ocorre em todo tipo de transmissão/aquisição de cultura.
[4] É possível que ao final desses exemplos você conclua: nada há de novo nessa forma de planejar as ações didáticas. E eu concordarei. Só não entendo como professores continuam a selecionar e a distribuir conteúdos de história da historiografia de uma forma que os alunos só comecem a perceber a lógica da matéria – seus conceitos e proposições principais e a interrelação entre esses conceitos e proposições – no final do curso (como num jogo de esconde-esconde) e outros até saiam da universidade concebendo a matéria como um aglomerado de sujeitos, datas tópicas e cronológicas e acontecimentos sem chances de domínio no tempo de uma vida. Mas, vamos aos exemplos.