quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A experiência indígena entre os historiadores profissionais (2005/2009)


Vista parcial da Aldeia Xocó. Porto da Folha-SE, março de 2010. Foto de Itamar Freitas.
Uma das principais estratégias para o desenvolvimento da educação pela tolerância é a disseminação de informação atualizada sobre a pluralidade cultural. Este trabalho foi produzido dentro desse espírito. Com ele, queremos subsidiar a reflexão do professor sobre a sua prática, propondo e respondendo duas questões relacionadas ao uso da história dos – indivíduos, grupos, sociedades – indígenas na formação de pessoas, ou seja, na escolarização básica: (1) o que os historiadores têm afirmado, nos últimos cinco anos, sobre os indígenas que habitam o Brasil? (2) Que proposições podem ser transpostas ao cotidiano da sala de aula para viabilizar a aplicação do artigo n. 26-A da lei n. 11. 645 de fevereiro de 2008 – que trata da história e da cultura indígena em “todo o currículo escolar” dos ensinos fundamental e médio, público e privado?
Essas questões são aqui respondidas mediante o enredamento das teses mais recorrentes, veiculadas por trabalhos acadêmicos apresentados no maior fórum brasileiro de discussão historiográfica – o Simpósio Nacional de História, promovido pela Associação Nacional dos Historiadores nos anos 2005, 2007 e 2009. 
Por meio de uma centena de exemplos, aproximadamente, pudemos perceber que os acadêmicos se esforçam para apresentar os indígenas como sujeitos históricos no passado e no presente. E exemplificaram tal condição, afirmando que indígenas fizeram alianças com motivos e atores os mais diversos, empregaram os instrumentos de subordinação como ferramentas de reivindicação dos seus direitos e reagiram à dominação europeia.
Historiadores também afirmam que as culturas são marcadas por intensa atividade para a produção da existência, ou seja, indígenas trabalham e nunca foram originalmente frágeis de saúde. Indígenas também reproduzem os seus modos de vida e mantém diferentes relações com a escola disciplinarizada, ou seja, contestam sua função controladora, ao mesmo tempo em que a consideram um instrumento de emancipação.
A respeito dos critérios de identificação, historiadores defendem a ideia de que são indígenas os que se afirmam e são reconhecidos como tal. Suas identidades tem caráter dinâmico e mutável – como as identidades dos não indígenas.
Não obstante o reconhecimento de que os indígenas são protagonistas, trabalhadores e produtores de suas identidades, os historiadores reconhecem o grande poder que os acadêmicos e o Estado exercem sobre esses processos de legitimação. Da mesma forma, continuam denunciando o etnocídio e o genocídio e a manutenção de conceitos evolucionistas que cercearam e ainda impedem o reconhecimento do direito ao passado e ao futuro dos indígenas.
A respeito das possibilidades de transposição didática dessas teses, é necessário refletirmos sobre algumas questões. A primeira delas: é necessário preencher todo o currículo com a experiência indígena, em termos espaciais e temporais? Penso que não. A experiência indígena deve ser chamada à cena didática quando os objetivos do projeto pedagógico, as demandas do alunado e a produção historiográfica local assim o exigirem.
Outra dúvida é quando à presença dos indígenas na escola. Será mesmo necessário por os alunos em contato com sujeitos que se assumem como tal? Correndo o risco da condenação acadêmica, eu ouso afirmar que não. A aprendizagem de conteúdos conceituais e atitudinais, como também a apreensão de valores – solidariedade, alteridade, tolerância, entre outros –, independem do contato físico com os objetos de conhecimento. Se assim o fosse, não compreenderíamos as ideias iluministas que forjaram os sentidos de igualdade de oportunidades e de direitos sob os quais se eleva o nosso sistema educacional. A presença física de indígenas na escola, em muitos casos, pode reforçar em vez de combater preconceitos.
Outra questão frequente nos cursos de formação continuada e que desafia a reflexão dos pesquisadores, sobretudo do ensino de história, refere-se aos limites da atualização historiográfica. Devemos incorporar ao ensino escolar todos os problemas, objetos e abordagens, ou seja, todas as teses produzidas no mundo acadêmico? É evidente que não. O mundo acadêmico tem suas próprias regras e uma delas é a liberdade para avançar – diria um leigo – a esmo, experimentar sem a necessidade de cumprir uma função social de caráter imediato. Esse traço distintivo da ciência nos obriga a reconhecer que nem todo o material produzido pela academia deverá e, mais importante, poderá figurar nos currículos, nos livros didáticos e nos planos de aula. Aqui, novamente, as demandas do alunato e as orientações do projeto pedagógico da escola estabelecem os limites da transposição.
Relacionada a essa limitação está a dúvida sobre as formas de explorar a diversidade dos indígenas que habitam o território nacional. Como abordar os direitos indígenas e ao mesmo tempo tratá-los em sua diversidade? As duas situações exigem, paradoxalmente, um tratamento homogeneizante e diferenciador. Coloquem-se na posição do elaborador de currículos ou do autor de livro didático: como distribuir a experiência de 240 grupos sem hierarquizá-los? Qual espaço atribuir a cada um, sabendo-se que as informações são dispersas e desiguais? Como evitar o emprego das palavras índio e indígena? Uma boa estratégia para a resolução desse problema é por os olhos no local. Homogeneizar e diferenciar são mais factíveis quando nos detemos à experiência do entorno do aluno.
Agora uma última questão para pensar: se não somos obrigados a incorporar, apresentar, consumir, preencher todo espaço e todo o tempo do currículo etc. – como defendo aqui – por que exigir do livro didático uma atualização olímpica em relação à produção acadêmica? Devemos excluir da sala de aula um livro que omite, por exemplo, a experiência indígena local? Para esse problema, proponho o que a vivência de muitos professores do ensino básico indica: um livro ruim será um excelente instrumento de aprendizagem se o professor estiver bem informado e engajado na tarefa de desenvolver as capacidades de conhecer, compreender e criticar do seu aluno. Assim, ao flagrar um erro de datação tópica ou cronológica, ao detectar uma interpretação incompatível com o nosso sistema de pensamento – uma identidade indígena a partir de critérios evolucionistas, por exemplo – o professor pode estimular os alunos a questionar e a apontar as contradições do discurso veiculado pelo material. Erros factuais podem ser corrigidos com mais e mais pesquisa.
A experiência dos mestres também indica que se a organização dos temas é pobre estética e cognitivamente, o professor pode explorar as mesmas questões mediante o uso de outras linguagens – sonora, visual – ou gêneros – artigos de jornal, depoimentos escritos. Se, por fim, os conceitos e teses disseminados pela pesquisa de ponta são requeridos pelo projeto pedagógico e pelas demandas do alunado, mas não estão contemplados no material didático, o professor pode elaborar atividades para desenvolvê-los junto aos alunos.
Em suma, o saber dos mais experientes professores indica que o compromisso com a aprendizagem do aluno e a informação atualizada são a chave para transpor as teses da pesquisa de ponta e contornar as deficiências de todos materiais didáticos que nos são apresentados ou impostos.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A experiência indígena entre os historiadores profissionais (2005/2009): possibilidades de transposição didática. Palestra proferida na Universidade Regional do Cariri – URCA. Crato, 30 ago. 2012. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/08/a-experiencia-indigena-entre.html>.