terça-feira, 13 de setembro de 2005

Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de História de Sergipe

João Mulungu - Herói da resistência
negra em Sergipe. Foto: Memorial 
João Mulungu. Aracaju-SE. 

Inicialmente, gostaria de agradecer aos promotores do evento pelo convite, aos professores Joceneide Cunha e Antônio Bittencourt Júnior, à Coordenação de História e ao público presente.
Quero informar também a minha fala, dentro do tema sugerido pela organização do evento, tem como objeto principal as imagens de negros, brancos e índios veiculadas no livro didático em forma de ilustrações. O livro didático aqui é definido como um artefato de papel e tinta que é costumeiramente empregado em situação didática (Munakata).
A expressão poder, também inserta no título da conferência, tem o sentido de “ter a possibilidade de...”, “capacidade de agir”, “direito de fazer alguma coisa”, em síntese, “autoridade”. Assim, poder nos manuais didáticos de história está relacionado à política em sentido Weberiano: ação de fazer valer a sua vontade ou ação de influenciar na vontade do outro. Dessa forma, o poder aqui tratado é o poder do construtor de livros didáticos; é o poder do escritor de história que está em jogo. O poder de organizar a memória coletiva dos que habitam o estado de Sergipe nos últimos 100 anos.
Sobre a idéia de negros, brancos e índios, evidentemente, não poderei me alongar na discussão sobre identidade negra, por exemplo, ao longo do século XX. Tratarei de representações sobre negros, brancos e índios construídas por pessoas que, até onde conheço, não se assumiram (não se identificaram) como negros ou índios. O caráter identitário de negros, brancos e índios fica portanto, e inevitavelmente, relacionado à cor da pele e à traços fisionômicos reconhecidos pelo senso comum.
Resta por fim, apontar os três os movimentos e objetivos desta fala: 1) fazer um brevíssimo histórico do livro didático de história de Sergipe; 2) apresentar de alguns flagrantes de como a imagem de negros, brancos e índios é veiculada nos livros didáticos de história de Sergipe para Crianças – ou para o primário e, depois, para as primeiras quatro séries do ensino fundamental; 3) estimular a discussão sobre os sentidos que as imagens e números resultantes desses levantamentos pode sugerir em termos de interpretação sobre o tema da noite – “Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de história.
Brevíssimo histórico sobre o livro didático de história de Sergipe
Em Sergipe, os primeiros produtos desse gênero vieram a público logo após a proclamação da República sob a rubrica de corografias (obras descritivas que enfocam regiões, Estados sob os aspectos físicos – limites, clima, relevo, hidrografia etc.;  e políticos – história, representação política, listagem de comarcas, municípios, povoados etc.). Mas, foi ainda no século XIX que surgiu o primeiro livro didático especificamente elaborado para a matéria de Clio. Trata-se de História de Sergipe (Aracaju: Tip. do Estado de Sergipe, 1898), um resumo da obra homônima publicada em 1891 por Felisbelo Freire. O livro nasceu no momento em que alguns dos novos Estados federados buscavam legitimar sua independência política e suas posses territoriais, sendo indicado para uso em escolas primárias e como introdução ao estudo da “história pátria”.
A iniciativa de Laudelino Freire pode não ter surtido o efeito desejado. Um livro não seria didático somente por reduzir textos e concentrar conteúdo. É o que parece ter entendido a Congregação da Escola Normal do Estado de Sergipe que considerou Meu Sergipe (Aracaju: Tipografia Comercial, 1916) de Elias Montalvão como o primeiro “livro puramente didactico... em matéria de História e Corographia de Sergipe”. A aprovação oficial se dera em virtude da adequação da linguagem, segundo o autor, “bem accommodada á comprehensão da creança”. Essa linguagem, nada mais é do que a narrativa da experiência local em forma de contos. Em Meu Sergipe quem conta a história são personagens ligados à vida do estudante como a avó, a tia, os colegas de turma e o professor. A obra foi reeditada em 1919 sem grandes alterações no conteúdo original.
Somente depois de meio século, o ensino primário ganharia novo livro didático. Coube ao cearense Acrísio Torres de Araújo sintetizar a vivência sergipana a partir da trajetória política do executivo estadual. Os capítulos enfocam Colônia, Império e República e cada tópico descreve as principais realizações de cada governante. História de Sergipe (Aracaju: s.n, 1967) é um resumo de História de Sergipe produzida um ano antes para os professores dos cursos normal e colegial. Nesse livro, já existe uma tentativa de relacionar a experiência local à nacional. Para o autor, o livro deveria estimular o amor dos sergipanos  por sua terra e, ainda mais importante, preparar os futuros cidadãos para assumirem as tarefas político-administrativas do Estado. O trabalho de Acrísio Torres transformou-se em coleção que pode ter chegado a uma dezena de títulos voltados para as séries do primário e ginásio durante a década de 1970, parte deles sob a classificação de Estudos Sociais.
Na década de 1980, duas obras foram produzidas: Vamos conhecer Sergipe (Déborah Neves) e O novo Sergipe de Genialda Matos de Oliveira (Rio de Janeiro: MEC/FAE,  1988). Segundo Antônio Wanderley, o primeiro historiador a resenhar essa historiografia específica, são trabalhos pretensiosos; em alguns pontos, são oficialistas e conservadores (Gazeta de Sergipe,10-20 nov.1988). Ambos estão repletos de equívocos em termos de texto e iconografia. Sobre a segunda obra, Luiz Fernando Ribeiro Soutelo foi mais além, solicitando, através do Conselho Estadual de Cultura, o recolhimento imediato da obra diante dos “inúmeros erros geográficos, históricos, econômicos e culturais relativos a Sergipe (Of. CEC n.º 89/88).
Em 1994, mais uma iniciativa de exposição didática, voltada para as séries iniciais do 1º grau foi veiculada no Estado: Sergipe – geografia,  história (São Paulo: FTD, 1994) de Maria Gorete da Rocha Santos. Curiosamente, apresenta-se como uma espécie de síntese das obras já inventariadas. Mantém a narrativa linear de Laudelino Freire e os recortes temáticos inaugurados por Elias Montalvão (conquista, holandeses, transferência da capital, entre outros). Os espaços para as ilustrações são mais amplos que os textos. Mapas, pinturas e paisagens contemporâneas são incorporados à narrativa dentro da proposta de integrar a experiência local à nacional.
A última iniciativa em termos de livro didático, também para o primário, partiu das professores Lenalda Andrade Santos e Terezinha Oliva, ambas participantes dos Textos para a História de Sergipe. Para conhecer a história de Sergipe (Aracaju, Secretaria do Estado da Educação e do Desporto e Lazer/MEC/BIRD, 1998) mantém o objetivo centenário inaugurado por Felisbelo Freire: demonstrar que Sergipe foi o lugar de importantes momentos da história nacional. Entretanto, as estratégias diferem bastante dos trabalhos anteriores, já que incorporam teses e abordagens em vigor na pesquisa universitária. A disposição da matéria, por exemplo, é feita através de temas e não há preocupação rígida em obedecer a uma cronologia. A grande novidade do livro, também o centro da proposta, é trabalhar os conteúdos da história de Sergipe através de elementos do patrimônio cultural.
Depois desse brevíssimo histórico sobre o livro didático voltado para o ensino de história para as séries iniciais do ensino fundamental, vejamos, finalmente, como são representados os negros, índios e brancos. É preciso repetir que nessa fala, dados os limites de tempo, considero apenas as imagens produzidas a partir de ilustrações (desenhos, reprodução de pinturas, vinhetas, fotografias etc.).[1]


Negros, brancos e índios nas ilustrações do livro didáticos de história de Sergipe

Observemos, em primeiro lugar as estatísticas extraídas do exame preliminar que fiz este fim de semana:

Tabela n. 1
Negros, brancos e índios nas ilustrações do livro didático de história de Sergipe para as crianças – 1898/1998


Ano
Autor
Título
N
B
I
Tp
Ti
1898
FREIRE
História de Sergipe (Primário)
0
0
0
0
0
1916
MONTALVÃO
Meu Sergipe (Primário)
0
22
2
24
29
1967
ARAÚJO
História de Sergipe (3ª e 4ª séries)
0
24
1
25
26
1967
ARAÚJO
História de Sergipe, (3ª série, 2 ed.)
0
25
1
26
28
1973
ARAÚJO
História de Sergipe, (3ª série, 3 ed.)
0
21
0
21
26
1973
ARAÚJO
Sergipe e o Brasil (4ª série)
1
18
2
20
27
197[4]
ARAÚJO
História de Sergipe, [3ª série, 4 ed.]
0
22
0
22
29
198_
NEVES
Vamos conhecer Sergipe
0
15
8
22
27
1986
OLIVEIRA
O Novo Sergipe
0
0
0*
0
0
1994
SANTOS
Sergipe: história e geografia
10
23
10
37
62
1998
SANTOS e OLIVA
Para conhecer a história de Sergipe
9
10**
9
40
104
TOTAIS
20
180
33
237
358
(*) Os índios aparecem no módulo “Cultura” – “História de Serigy”.
(**) O restante das ilustrações que retratam pessoas não permite a identificação de brancos, negros e índios.
Obs. Alguns números da coluna “total pessoal” são menores que a soma das colunas “Negros”, “Brancos” 
e “Índios”. Isso ocorre porque a contagem é feita sobre a presença de negros, brancos e índios. 
Há ilustrações que contemplam índios e brancos, outras, negros e brancos, daí a duplicidade da contagem.

O que se pode concluir, preliminarmente, é o seguinte:
1. há um distanciamento progressivo entre o número total de imagens que retratam pessoas e  número total de ilustrações. Isso é o resultado de mudanças em três esferas: a) uma melhoria das técnicas de impressão (mais cores, colocação de mapas, história em quadrinhos etc.); b) há também uma tomada de consciência dos pedagogos sobre o poder da iconografia na relação ensino aprendizagem. O texto escrito, enfim, começa a perder a hegemonia na elaboração do livro didático; c) em termos de historiografia também se pode notar a mudança. A história para crianças começa a distanciar-se do desfile secular dos grandes homens, sejam eles políticos ou intelectuais stricto sensu.
2. Sobre a relação negros, brancos e índios, quantitativamente, se pode perceber a situação majoritária da representação de brancos (180 ocorrências), seguida das representações de índios (33) e, por último, a de negros (20).
3. Distribuindo-se tais números pelos cem anos em foco, veremos a entrada simultânea de índios e brancos em 1916 e a ocorrência da primeira representação de negros em 1973.
4. Distribuindo-se também os números contabilizados em termos absolutos, veremos que, apesar de majoritário, o espaço para a representação branca vai reduzindo-se até chegar a um certo equilíbrio entre negros, brancos e índios. Essa última proporção, que pode ser observada também no gráfico em termos percentuais, novamente, tem relação com a mudança de postura política dos escritores de livros didáticos. A última obra, por exemplo, elaborada por professores universitários, sobre fontes de pesquisa de outros historiadores acadêmicos, pensa a história como saber constituído, não somente sobre a experiência do individual e do político. Os professores também estavam, em 1998, comprometidos com a inclusão da experiência histórica de maiorias postas à margem nos processos decisórios do poder no Brasil.
O exame estatístico é bom indicador dos espaços reservados para negros, brancos e índios. É sugestivo para quem estuda os projetos de identidade sergipana forjados pelas sucessivas gerações de intelectuais da terra. A estatística também demarca o tempo da entronização de negros e índios como agentes da história de Sergipe. Entretanto, paras uma noção mais realista, para um exame mais controlado de tais representações seria necessário efetuar a leitura de cada uma dessas imagens, examinando-as em seus próprios componentes, examinando a sua relação com o texto escrito, e situando-a no desenho da página do livro. Isso não seria possível nesse momento. Em relação à representações sobre o negro, estou analisando no mini curso à tarde.
Mas, para não desperdiçar a curiosidade da platéia, apresentarei agora alguns exemplares dessas representações. Elas podem imprimir nas mentes de vocês algumas imagens de como o espaço da ilustração foi utilizado para construir a identidade do jovem sergipano, estudante das quatro primeiras séries (do primário ou do ensino fundamental).
Considerações finais
O que ser pode concluir a partir da exposição desses flagrantes e do exame estatístico das imagens de negros, brancos e índios? Nada muito diferente dos demais estudos sobre o caso em outros cantos do Brasil.
1. Os negros entram no livro didático no período da monarquia por conta da lei da libertação dos escravos. Assim permanecem até o tempo em que a história sobe ao “terceiro nível”, o plano da cultura. Aí o negro está presente como portador de cultura popular.
3. Os brancos estão presentes na maioria das imagens que retratam pessoas, mantendo a idéia de finalista de progresso instaurado pelos portugueses.
2. Os índios estão no passado colonial. Eles entram no livro didático como feras. A imagem de selvagem se sustenta até os anos 1970, quando são retratados como submissos à religião católica. Nos anos 1990, a imagem do índio dá conta do seu presente. Ele tem vontade própria e demonstra lutar por seus interesses (a terra).
Os maiores condicionantes dessas representações são as mudanças nas tecnologias de impressão, e em termos de pedagogia, historiografia e a política de inclusão suscitada pela constituição de 1988.
Esse rápido estudo não serve de denúncia sobre a exclusão de povos que atuaram na construção do Sergipe que vivenciamos hoje. A exclusão é bastante óbvia. Ele serve como base referencial para aqueles futuros professores das crianças de amanhã. Essa fala quer estimular o aprofundamento do debate sobre o significado das expressões diversidade cultural, inclusão social, identidade sergipana. A palestra, enfim, teve mais o objetivo de fazer com que o graduando em história reflita sobre as possibilidades e limites do historiador na construção do livro didático de história para as crianças. O próximo livro didático produzido em Sergipe deverá, certamente, levar em conta a trajetória dessas representações, respeitando singularidades dos grupos, mas sem recair em novas formas de racismo.


Muito obrigado.

[1] Ilustração é “qualquer gráfico, imagem ou quadro que orna, esclarece ou complementa o texto de uma publicação”.  FARIA, Guilherme. Pequeno dicionário de editoração. Fortaleza: UFC, 1996. p. 63.


Fonte da imagem (João Mulungu): http://mororialjmulungu.blogspot.com/


Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Negros, brancos e índios”: ideologia e poder nos manuais didáticos de História. Palestra proferida na Universidade Tiradentes, dentro do Seminário de História e Cultura Africana. Aracaju, 13 set. 2005.

sábado, 23 de abril de 2005

A penúltima corografia de Aracaju

O que é uma corografia? Já escrevi noutra oportunidade que a palavra é abonada nos dicionários do século XIX como descrição de uma localidade, reino, região, uma terra ou um país. Mas, foi Domingos Vieira (1873) quem registrou o sentido mais preciso: “descrição de um país, assim como a geografia é a descrição da terra, e a topografia a de um lugar particular”. (A Semana em foco, 05/09/2004).
Esse tipo de questionário já  existia no século XVIII. Aracaju, contudo, só ganhou corografia  quando o governo republicano resolveu massificar a educação primária  e inculcar a idéia de limites e potencialidades da cidade-capital. Elas estão inseridas nos livros didáticos destinados à disciplina.
O baiano Luiz Carlos da Silva Lisboa (1897) foi o primeiro a produzir algo do gênero. Depois vieram Laudelino Freire (1898), Severiano Cardoso (189?), Oliveira Telles (1917) e Clodomir Silva (1920). Em 1931, algum intelectual que não se quis identificar – talvez Ávila Lima ou mesmo um tipógrafo sensível e conhecedor das fontes estatísticas – compôs uma “Resenha chorographica e historica” como introdução ao Álbum fotográfico de Aracaju.
O impresso é, dominantemente, iconográfico. É uma  obra rara. Examinei-o na Biblioteca Nacional em 1998. O professor Cleber Santana, que trabalhou sistematicamente com fotografias aracajuanas, recuperou-o para mim, recentemente. As fotografias são belíssimas. Devem ser expostas em alguns desses eventos do sesquicentenário da cidade.
O escrito é, porém, o objeto da minha atenção. Incluso na cadeia de testemunhos do gênero, ele ajuda a formar a série de dados estatísticos sobre a cidade e o município de Aracaju entre as décadas de 1890 e de 1950. Isso se se puder relacionar a Enciclopédia dos Municípios (IBGE, 1959) como “a encarnação mais evoluída” do gênero corográfico. Por isso, a explicação para o título  “penúltima (e não última) corografia de Aracaju”.
A corografia dos anos 1930 mantém alguns traços dominantes do gênero. O personagem é a cidade em pedra e cal. E ela vale aquilo que potencialmente pode produzir e fazer circular; daí, a ênfase no estágio das indústrias, nas vias de comunicação e na quantidade e qualidade dos equipamentos urbanos – portos, praças, edifícios públicos, etc. Vale também pelo bem estar que proporciona aos habitantes do centro – três praias, ruas largas e alinhadas, praças retas e regulares. Os moradores comuns são númerosq estatística (40 mil habitantes), e os ilustres são memória – três estátuas, três bustos e um obelisco a Tobias Barreto, Pinheiro Machado, Fausto Cardoso, Olímpio Campos, Oliveira Valadão, Teófilo Dantas e Inácio Barbosa, respectivamente.
A narrativa histórica stricto sensu configura-se na resolução legislativa de fundação, nome do idealizador, origem da planta – o modelo é Fortaleza (?) –, e nos eventos que a modificaram – as idéias do presidente Salvador Correia de Sá, a extinção da praça 13 de Maio e a implantação do abastecimento d’água e é só.
Com isso, não quero dizer que a “Resenha corográfica e histórica” pouco signifique. Sua relevância deve ser avaliada dentro da série de textos aqui citados. Mas, para que não se perca mais tempo com divagações acadêmicas, segue um aperitivo da corografia. Com o trecho abaixo, penso que o leitor ganhará uma base referencial para refletir o porquê de a cidade completar cento e cinqüenta anos e continuar a ser representada, agora na mídia televisiva, como uma mocinha inocente, vestida de branco e disfarçada de tabarôa. Essa representação ainda lhe cabe? Só o mito de origem explica essa eterna juventude.
“Aracaju: resenha corográfica e histórica
A cidade de Aracaju está situada no município do mesmo nome, à margem direita do rio Sergipe, em forma de anfiteatro, dispondo de uma área litoral de terra de uma légua ocupada quase na mesma extensão até além das dunas de areia, situadas ao poente. (...) Tem a forma de uma península, de istmo largo, o qual se extrema entre o rio do Sal, que é um braço do rio Sergipe, e o Poxim.
Cortam a cidade os remanescentes dos antigos riachos: o Aracaju, entre a cidade e o bairro Industrial, que permite o acesso àquele bairro por uma elegante ponte; o Tramandaí, ao sul, que às marés cheias espraia-se ao sul e a oeste. (...).
Divide-se a cidade nos seguintes bairros: Santa Isabel, Industrial, Presidente Barbosa, Santo Antônio, Tebaidinha e Siqueira Campos. Todos eles servidos por linhas de bondes e de acesso fácil por automóvel.
Suas ruas são em número superior a duzentas.
A capital é servida pelas excelentes praias balneárias de Atalaia e Atalaia Nova, ambas situadas à margem do Atlântico. O rio Sergipe, que banha a cidade, presta-se também aos banhos de mar. (...).
Aracaju conta duas fábricas de tecidos, três de sabão, três de gelo, uma de cigarros, uma de águas gasosas, três de chapéus de sol, uma de meias, três de bombons, quatro de móveis, duas de óleo de coco, uma de óleo de algodão e quéque, duas de pulverizar açúcar, uma de corda de fibra de coco e tabacarias, grande número de fábricas de malas, tamancarias, sapatarias, charutarias. As serrarias são quatro, sendo que a de Macedo & Cia. corta madeira colhida no Estado.
É a cidade mais futurosa dentre suas contemporâneas.”

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. A penúltima corografia de Aracaju. A Semana em Foco, Aracaju, 23 abr. 2005.


sábado, 9 de abril de 2005

As Laudas da história do Aracaju

Essa é a quarta vez que trato de Sebrão Sobrinho nos últimos dois anos. Neste artigo, entretanto, não comentarei sobre a teoria da história, identidade sergipana, nem do valor historiográfico das suas Laudas da história de Aracaju, obra relançada na última terça-feira (15/03/2004). Quero, apenas, transmitir uma ou outra orientação de como ler os textos do historiador itabaianense “para que as gerações de hoje e de amanhã”, como diz Vladimir Carvalho, “possam se debruçar sobre esse livro, de leitura difícil, mas agradável.”
Do agradável não se pode falar. É uma experiência particular. Eu já tive a minha; o Vladimir Carvalho, a dele e espero que todos os que comprarem a obra apreciem, pelo menos, um capítulo. Aqui, é sobre o difícil que se deve comentar.
E de onde vem a complexidade da leitura? Ela está, principalmente, nas formas de enunciação, no vocabulário empregado e na construção da sua frase, enfim, no particularíssimo estilo de Sebrão.
Para ler e compreender as Laudas, é preciso aceitá-la como desvio, como o diferente em matéria de ponto de vista do narrador. A história de Aracaju é contada, predominantemente, em primeira pessoa. E a estratégia de convencimento surte efeito. Quase se pode ver e escutar o Sebrão batendo no peito e dizendo: “eu não condeno isso...”, “eu creio naquilo...” ou ainda “melhor que eu, somente o notável Felisbelo Freire”.
A intrusão do narrador também é coisa corriqueira. Um exemplo: quando comenta sobre as “fontes processuais da história de Sergipe” (é o primeiro capítulo), ele interrompe a narrativa para rememorar a terra natal: “que saudade de minha infância, das noites plenilúnias de Itabaiana, de meus brincos infantis”... e depois lembrar a brincadeira de manja (hoje, chamada de pega-pega): Manja!/Manjaré!/Farinha de Coco?/Camané!/Valeu, valeu?/Pegue eu, que sou seu!”. (p. 54).
O leitor não estranhe aquele emprego simultâneo de palavras em inglês, francês, latim, tupi, grego, entre outros idiomas: isso é um traço de formação. Não reprovem a quebra de fronteiras entre a linguagem escrita e a oralidade, entre as fórmulas do vulto e as do português arcaico.
Também, não se espante o leitor com as dimensões da obra: mais de quinhentas páginas. O plano não representa a “história em migalhas”, tampouco um “aglomerado indigesto de fragmentos”. Há coerência na disposição das cinco partes que acomodam os trinta e nove capítulos: anúncio, antíteses, teses, provas das suas afirmações, sugestões e autocrítica.
Descontadas as licenças à língua culta, citadas anteriormente, o que vai facilitar a leitura da obra de Sebrão é a compreensão da sua frase típica. A digressão é freqüente, tornando o texto, de certa forma,  pesado e moroso. O itabaianense mistura informações elementares e secundárias, e o leitor impaciente pode abandonar o livro sem saber, por exemplo, o final da história do Santo Antônio do Aracaju. Um procedimento, entretanto, pode evitar esse problema: toda vez que se deparar com essa frase quase gongórica, basta saltar da primeira a última linha e depois refazer a leitura, consumindo as minúcias de Sebrão, como se vê na citação seguinte: “Pobre Santo Antônio do Aracaju! Enquanto o do convento de Santo Antônio da Cidade de San-Cristovam de Sergipe, desde 1826, como os demais de quase todas as capitais do Império, foi agraciado capitão do Exército por D. Pedro I, a exemplo de Lisboa, o da colina de Santo Antônio do Aracaju, possuidor de um quadro contendo um quarto de légua para cada uma de suas faces, patrimônio instituído por um dos antepassados do autor destas linhas, Antônio Mendonça Furtado, em data imemorial, anterior a 13 de outubro de 1788, quando alcançou sentença para administra-lo o padre Luís de Brito Soares, tio de d. Maria Custódia dos Anjos, espôsa de Luís Francisco das Chagas, mais conhecido pelo hipocarístico Luizinho, o maior proprietário da barra da Cotinguiba, da praça Fausto Cardoso (a do Palácio), até ao Tramandaí, com os fundo correspondentes até à Lagôa da Pomba, perdeu tudo, ficou pobre sem nada!” (p. 168).
Para finalizar, duas ironias bem ao modo de Sebrão. Logo ele, que atirava para quase todos os lados, observa, pela segunda vez, a elite intelectual e a nata dos poderes constituídos reunidas a lhe renderem merecidas homenagens, sob o teto do Instituto Luciano Barreto Júnior. De onde estiver o autor, dará muitas gargalhadas a partir de agora.
Outro dado importante – e não é com prazer que anuncio: há cinqüenta anos Sebrão sobrinho escrevia as suas Laudas sobre a história do Aracaju. Hoje, comemoramos o sesquicentenário de fundação da cidade e não há notícias de que nesse meio século algum historiador tenha se empenhado na pesquisa básica para nos oferecer uma síntese, marcando alguma distância em relação à Tese de  José Calazans e às Laudas de Sebrão Sobrinho. Por isso, e porque o poder (digo, o saber) não admite vácuo, retorna o historiador itabaianense, pelas mãos do seu sobrinho-neto, como se quisesse dizer: “vocês vão ter que me engolir por muitos anos mais”. “Que viva então a obra de Sebrão!
Gostaria de dar os parabéns aos patrocinadores da reedição – Colégio Amadeus, Fundação Oviêdo Teixeira, Prefeitura Municipal de Aracaju e Instituto Luciano Barreto Júnior – e agradecer, especialmente, ao historiador Vladimir Carvalho pelo trabalho de recuperação da memória do autor.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As Laudas da história do Aracaju. A Semana em Foco, Aracaju, 09 abr. 2005.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse:
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.

domingo, 23 de janeiro de 2005

Uma teoria da história no “discurso” de Sílvio Romero

Silvio Romero (1851-1914)
Muita tinta já se gastou para traduzir as noções de Silvio Romero a respeito de literatura, filosofia, direito e história em solo pátrio. Pode-se mesmo dizer que muito tempo e bastante esforço foram consumidos para aprisioná-lo em determinado cânone, paradigma etc. E o resultado desses empreendimentos? – Contradição e mudança são os traços dominantes da sua obra, concluem os estudiosos.
Demasiadamente humano, o dr. Silvio enfrentou tantas batalhas que as mais razoáveis explicações para a sua inusitada trajetória intelectual foram expressas em fórmulas metafóricas, como essa  de Antônio Cândido – Sílvio Romero representa um flagrante da “imagem nervosa do país” (1978, p. XII); ou a conclusão witeana de Roberto Ventura – a obra literária de Sílvio Romero está marcada pela tensão “entre o mito épico e o mito trágico” (2001, p. 21). Tais comentários fazem lembrar o velho Michelet, capturado por Roland Barthes como um “escritor predador”, “voraz”, um grande “comedor de história” (1991, p. 15-22).
Uma mostra desse demasiadamente humano está nas posições sustentadas sobre a história. Aí também o papa-jaca variou, pelo menos, quatro vezes, num período de quatro décadas.
Se nos ativermos, apenas, à história-saber, que resulta no documento textual escrito – o livro de história –, veremos que o lagartense a concebeu, inicialmente (1874), como ciência, e ciência expressa em leis, ao modo comteano. Em seguida, zombando de seu examinador em concurso para a cadeira de Filosofia do Colégio Pedro II, Sílvio Romero assegurou para a história o status positivo de ciência. Na tese “Interpretação filosófica dos fatos históricos” (1880), a história seria mediada pela combinação de dois determinantes: as forças naturais e as forças humanas, à maneira do britânico Henry Thomas Buckle.
No ano de 1888, Romero já era crítico consagrado. O coroamento da carreira se deveu à produção de sua História da literatura brasileira, onde a escrita da história, deveria incorporar os elementos de ordem física, biológica e histórica (naturais, étnicos e morais) sob a orientação de outro inglês de renome, Herbert Spencer.
Com o fim da monarquia, reformas escolares foram programadas e lá estava o nosso Romero a contribuir, novamente, defendendo a permanência da história como disciplina escolar dos estudos secundários. A idéia de história como ciência permanece. Mas, contrariando a orientação spenceriana, Clio não passeia de braços com as línguas e literaturas: a história é prima dos grupos matemático e físico-natural. (cf. Romero, 1901).
Fiquemos, apenas, com a primeira idéia de história. Ela foi anunciada no Discurso proferido na Assembléia Provincial de Sergipe em 1874. Na ocasião, Romero saudava a iniciativa local de premiar o escritor da primeira síntese sobre a história de sua pátria (Sergipe). Mas, emendava a proposta, tornada resolução em 1860. Deveria ser uma obra científica. Uma escrita que não se sustentasse apenas nos “brilhos de estilo e de eloqüência” dos “historiadores literatos” franceses e que não se resumisse à crônica praticada no Brasil – que não partilhava, sequer, dos recursos retóricos de escritores românticos do porte de Guizot, Thierry e Michelet.
A crítica de Romero tinha endereço certo: os trabalhos de João Manoel Pereira da Silva e de Francisco Adolfo de Varnhagem, iniciadores da novela histórica no Brasil, respectivamente, em 1839 e 1940. (cf. Rodrigues, 1982, p. 179). Hoje, sabemos que o crítico poderia ter alguma razão sobre o primeiro – glosador assumido da História da América Portuguesa (Sebastião da Rocha Pita) e de todo um modo academicista português de escrever a história no século XVIII. (cf. Silva, apud. Campos, 1991, p. 269). Mas, exagerou em relação à História geral do Brasil, de Varnhagem, uma obra legitimada até mesmo por seu parceiro na demolição da história não cientificista no Brasil, Capistrano de Abreu.
A crítica de 1874 migrou para a célebre História da literatura (1888). Mas, em Sergipe, as orientações positivistas não foram incorporadas pelos escritores de então, alguns dos quais presentes à sessão de 1874. Não houve quem se habilitasse a escrever a história de Sergipe em seis meses e ganhar os seis contos de réis ofertados – sequer nos padrões da velha crônica criticada por Romero.
Em nível nacional, também não se conhece, pelo menos até o início da década de 1880, um historiador que tenha sintetizado a história do Brasil em moldes comteanos. Isso torna o discurso de Sílvio Romero ainda mais instigante.
Considerações extemporâneas – Em 1874, a hegemonia cultural da França estava abalada com a recente derrota na guerra contra a Alemanha. Os próprios historiadores franceses – Gabriel Monod é o grande exemplo –, ao reivindicarem um estatuto de ciência para a história naquele país, punham os olhos na Alemanha, onde a produção científico-literária baseava-se nas universidades, ao contrário do domínio francês, cujo trabalho intelectual dependia da magistratura, do clero e das academias de eruditos. (cf. Monod, 1876).
Dois anos antes do “manifesto” (1876) de Monod, Sílvio Romero também reivindicava uma história científica para Sergipe e para o Brasil. Curiosamente, porém, recrutava para a tarefa um francês – Augusto Comte – “inservível” aos seus patrícios no processo de profissionalização do historiador. Onde estaria, finalmente, o germanismo de Romero apreendido no ensino secundário do Rio de Janeiro, no final da década de 1860? Da história, ao que se sabe, ele ficou muito distante.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Uma teoria da história no discurso de Sílvio Romero. A Semana em Foco, Aracaju, 23 jan. 2005.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse:< http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

Fonte da imagem
Silvio Romero - <http://www.revistabula.com/>. Acesso em, 8 dez. 2010.