FREITAS, Itamar. Historiografia sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. |
A história da historiografia, como domínio específico, é uma prática recente. Mesmo em lugares onde a ciência histórica estabeleceu-se desde o século XIX, a exemplo da Alemanha e França, esse campo de estudos custou a se constituir, e, somente no início do século XX, os traços dominantes de uma disciplina que se ocupa do desenvolvimento do próprio saber a que está vinculada (a ciência histórica) começaram a ganhar nitidez.
É claro que, durante o século XIX, houve momentos onde a ciência histórica fez-se objeto de si própria. Mas, nessas iniciativas – circunscritas aos “lugares de produção” e às “práticas disciplinares” em que foram gestadas –, não estavam tão claros os limites entre os diversos domínios constitutivos do saber. Praticou-se, então, de tudo um pouco e simultaneamente. O resultado dessas análises, “esboços”, “introduções”, “iniciações”, “noções” sobre os historiadores e o fruto do seu trabalho foi uma mescla de estudos filosóficos, metodológicos, epistemológicos e didáticos de abrangência e estratégia vária, que dificultam a visualização de um campo específico nomeado história da historiografia para o chamado século da história.
No início do século XX, em grande medida pelo vigoroso empreendimento dos discípulos da Escola Histórica alemã e da Escola Metódica francesa, o trabalho do historiador tornou-se complexo e hierarquizou-se de tal maneira que o interesse pelo método, teoria, didática e, mais recentemente, a epistemologia acabou por transformá-los em domínios específicos da ciência histórica. Quanto à história da historiografia – por motivos que vão do desinteresse de parte dos historiadores por questões teóricas stricto sensu, ao afã pela novidade, como também o desdém manifestado sobre as instâncias de formação, legitimação e reprodução do próprio ofício –, ela só sedimentaria o seu campo de atuação na década de 1970. (cf. Carbonell, 1976; Guimarães, 1998).
No Brasil, a história da historiografia ganhou status de disciplina nas faculdades de Filosofia na passagem da década de 1950 para 1960, a partir da introdução de matérias teórico-metodológicas nos currículos dos cursos superiores de história, logo após a instituição de geografia e história como licenciaturas independentes, contando com as pressões de profissionais congregados na ANPUH.
Como campo para o historiador – antes mesmo de tornar-se matéria propedêutica –, a história da historiografia refugiava-se, principalmente, nas introduções dos livros didáticos de história do Brasil para o ensino secundário, nos livros de introdução à história no curso superior, nas "histórias da literatura" brasileira, nos estudos preliminares dos brasilianistas, e numa extensa e fragmentária série de produtos analíticos ou sintéticos que se acercavam dos registros escritos sobre o passado, tais como: resenhas, discursos, conferências, revisões de literatura, bibliografias, inventários, necrológios, efemérides, e centenários de revistas, de associações do ofício, da nação ou de tal e tal região.
Visto dessa forma, o quadro é de dispersão. Mas, se levarmos em conta apenas as obras de síntese (as historiografias gerais) – não importando o objeto e a abordagem stricto sensu (se os escritos, se as práticas cotidianas dos historiadores, se o indivíduo ou o coletivo, se os temas, paradigmas, tendências, correntes, escolas etc) –, poder-se-á estudar a história da historiografia em perspectiva diacrônica, e logo se constatará a emergência de dois tempos não necessariamente sucessivos: o tempo dos pioneiros e o tempo marcado pelas práticas universitárias. O primeiro período reúne os trabalhos de João Ribeiro e Sílvio Romero (1909), Basílio de Magalhães (1914), Jonathas Serrano (1925), Alcides Bezerra (1929), Hélio Viana, Nelson Werneck Sodré (1945), Sérgio Buarque de Holanda (1949, 1951), Joaquim Ribeiro e José Honório Rodrigues (1949), Rubens Borba de Morais e William Berrien (1949) – que organizaram sínteses temáticas produzidas por Alice Canabrava, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda –, Astrogildo Rodrigues de Melo (1951), Pedro Moacyr dos Campos (1954), Aníbal Freire (1958), entre outros.
Não é tanto a “formação” autodidata que os identifica como pioneiros, e sim as motivações e as características das suas iniciativas: o atomismo da pesquisa e o progressivo esforço em esboçar parâmetros tipicamente historiográficos como questões de teoria e método, contribuição da obra para o esclarecimento do passado brasileiro e para o fortalecimento do próprio saber.
O segundo tempo dos escritos sobre a história da historiografia é marcado pela dominante formação superior em história, a pesquisa dentro da universidade, o trabalho sistemático de levantamento e crítica da historiografia produzida sobre o país. Aqui, devem ser incluídos, novamente, os nome de José Honório Rodrigues e Alice Piffer Canabrava (1972), Odilon Nogueira Mattos (1972), junto aos de Américo Jacobina Lacombe (1973), Carlos Guilherme Mota (1975), Francisco Iglesias (1971), Maria Beatriz Niza da Silva (1983), José Roberto do Amaral Lapa (1985), Carlos Fico e Ronald Polito (1992), Astor Antonio Diehl (1998), José Carlos Reis (1999) e José Jobson Arruda (1999).
A leitura dos clássicos produzidos nesses dois "tempos" pode demonstrar que a história da historiografia, como domínio específico, acompanhou a institucionalização da ciência histórica tanto no que diz respeito ao espaço propriamente institucional (da “Introdução à história” para uma disciplina curricular nos cursos de graduação), quanto à formalização das práticas desse tipo de estudos (métodos, técnicas, justificativas e programas).
Os critérios da abstrata representatividade de obras e autores e das classificações por assunto, progressivamente, cederam lugar ao exame da obra por inteiro, das relações entre o texto, condições de produção e os seus leitores privilegiados. Esse domínio específico, contudo, não chegou a gerar "escolas" e ainda sofre do mal de Sísifo. Além disso, a história da historiografia vive um conflito de identidade quando incorpora funções da epistemologia e da metodologia histórica.
Seria, então, essa inquietação a sua maior virtude? Estou inclinado a acreditar que sim. E os motivos dessa pluralidade podem ser compreendidos no próprio curso da história. A atividade de historiar o trabalho produzido pelos homens do ofício não se efetiva no “lugar nenhum”. A história da historiografia, tanto em relação aos seus modos de fazer quanto ao seu objeto, leva em conta os “lugares” (sociais, econômicos, culturais) e “práticas” profissionais específicas e limitadas segundo os parâmetros de quem as executa. Por isso – e para além das historiografias gerais –, um dos mais legítimos e relevantes recortes diz respeito ao exame das representações que envolvem o religioso ato do regere fines, ou seja, a demarcação de fronteiras espaciais e sócio-culturais entre os homens (cf. Bourdieu, 1984); o estudo da historiografia sobre “regiões” que recria e enforma a experiência das pessoas circunscritas em dado local do país, um Estado ou cidade.
É essa diversidade de itinerários e de formas de estabelecimento da disciplina que legitima, portanto, a organização de textos que tratam da historiografia produzida sobre Sergipe, principalmente, por nascidos no Estado ao longo de dois últimos séculos. Esta coletânea aborda a historiografia, elaborada nos limites de uma agência historiadora (IHGS, o Departamento de História da UFS), a obra de historiadores (clássicos do século XIX, noviços universitários, memorialistas), um gênero (a historiografia didática), algumas dimensões da experiência local (o econômico, político, social e cultural), um recorte cronológico (a historiografia do século XIX), um recorte espacial (a cidade de Aracaju), e o trabalho heurístico (busca, tratamento e modo e conservação das fontes). O livro também varia quanto à forma de exposição da literatura historiográfica. Há trabalhos analíticos – resenhas em sua maioria – e textos de síntese – inventário, balanço, revisão de literatura e relato de experiência.
A diversidade de itinerários e possibilidades do campo também abona a inserção de modelos do saber/fazer história da historiografia. Aqui são analisadas duas maneiras de criticar a escrita da história brasileira: a de João Ribeiro – um exemplar historicista, autodidata, do início do século XX –, e o “tipo ideal” de José Honório Rodrigues, também historicista, mas com formação teórico-metodológica inicial oriunda dos Estados Unidos nos anos 1940. São dois modelos que depõe sobre as mudanças na história do Brasil, e que contribuíram bastante para o estabelecimento de padrões de escrita dessa mesma história do Brasil.
Mas, para que serve esse coquetel de informações? Os próprios textos – as resenhas, as sínteses, os modelos – indicam a função, predominantemente relacionada às minhas atividades de professor nos últimos cinco anos. O objetivo desta coletânea, inicialmente, inscreve-se na razão de ser da própria disciplina, constantemente anunciada pelos especialistas desde, pelo menos, a década de 1950: a história da historiografia é um dos instrumentos mais eficazes da reflexão do historiador sobre o seu saber. Ela descreve, problematiza e reorienta as práticas, a função, enfim, o produto da ciência histórica.
Nascida a partir das necessidades docentes – nas tarefas de prática de pesquisa, nas disciplinas de história de Sergipe, métodos e técnicas de pesquisa e teoria da história, Histórias de Sergipe também tem uma função utilitária imediata, ligada aos destinatários mais proeminentes que são os alunos. Os alunos, e todos aqueles que se aventuram na pesquisa sobre a história de Sergipe, bem sabem o valor de um dado sobre determinada trajetória, de um juízo sobre um texto raro, de um índice onomástico, de uma lista de livros ou um roteiro de leituras para a elaboração de uma hipótese ou a produção de sentido sobre as pistas coletadas.
A necessidade de cada um também indicará a melhor forma de atravessar o conjunto dos textos. O plano adotado oferece apenas uma disposição mais orgânica: as análises ordenadas cronologicamente, respeitando a ordem de publicação dos livros comentados; depois as sínteses; e, no final, os modelos de como fazer história e de como narrar a história da historiografia.
Expostos a função, natureza e destinação dessa coletânea, resta o agradecer às pessoas que possibilitaram a produção de cada texto. São muitos e todos eles ver-se-ão representados nas páginas que se seguem. Entretanto, seria grande pecado omitir o nome de Christianne Gally, revisora dos originais, Adilma Menezes, responsável pela editoração eletrônica, e dos editores do Jornal da Cidade, Gazeta de Sergipe e A Semana em Foco, respectivamente, Eugênio Nascimento e Marcos Cardoso, Luiz Antônio Barreto, e Edivar Freire Caetano. Esses jornalistas foram grandes parceiros na divulgação inicial de grande parte das resenhas, mas com Edivar a dívida em bem maior. Ele fez circular os meus escritos em mais de 60 edições, por meio da coluna “Histórias de Sergipe”, que tratava, exclusivamente, de historiografia local.
Dos leitores e ouvintes, é preciso nomear os que estimularam, questionaram os juízos, sugeriram bibliografia, apontaram incorreções e divulgaram os textos em sala de aula. Entre eles, destaco com prazer: Ibarê Dantas, Beatriz Góis Dantas, Ednalva Freire Caetano, Josué dos Passos Sobrinho, Jorge Carvalho do Nascimento, Terezinha Alves de Oliva, Lenalda Andrade Santos, José Afonso do Nascimento e Manoel Salgado Guimarães. A todos meu muito obrigado.
Fontes das imagens
Capa de Historiografia sergipana. Produzida por Hermeson de Menezes e Manoel Messias de Albuquerque neto (desenhos de Ibarê Dantas, Maria Thetis Nunes, José Calazans, Silvério Fontes, Sílvio Romero e João Ribeiro).
Para ler o restante desta obra, basta clicar no capítulo do seu interesse.
Sumário
Apresentação
Introdução
1. Sínteses sobre a bibliografia historiográfica sergipana
Diálogos com Calazans: a historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos
2. Sobre o ofício do historiador em Sergipe
3. A historiografia em resenha
Os intelectuais de Prado Sampaio
Lições de história do tempo presente