segunda-feira, 1 de maio de 1995

Aracaju: cartografia do perfume

Mapa de Aracaju.
Nas noites mal dormidas, tédio ou na solidão, toda espécie de pensamento nos ocorre; selvagerias eróticas, autoflagelação mental, projetos vanguardistas e outras colossais inutilidades reflexivas. Foi justamente numa dessas noites que, após uma sacrificante reflexão, descobri que o banheiro da casa da gente nunca cheira mal; ou melhor, que o banheiro da casa dos outros tem um cheiro característico, e que o nosso, não tem cheiro algum. E eu explico a descoberta: nos acostumamos tanto com o próprio cheiro que este nos passa desapercebido.
Mas não é bem sobre odores latrinários que eu desejo discorrer nestes parágrafos. Mis que um passeio pelo quarto, banheiro e cozinha, gostaria de informar da minha mais recente descoberta: assim como a nossa casa, a cidade em que moramos tem seus cheiros característicos, elementos que a diferenciam das outras. Sinto que essas proposições causam estranheza à maioria das pessoas. Sei que podem pensar: "isto é tolice, toda mediana cidade tem os mesmos odores e olores". Mas, digo que é necessário sensibilidade e um certo apego ao lugar para perceber, numa viagem, o que diferencia Aracaju de outras cidades que conheço, tais como: Porto Alegre, Recife, Salvador, Campina Grande, João Pessoa, Rio de Janeiro, São Paulo etc.
O cheiro é a impressão produzida no olfato pelas partículas odoríferas. Quando nos é agradável recebe o nome de perfume, olor, aroma etc. Quanto não, transforma-se nos tradicionais "mau cheiro" e "fedor". Estes são os sinônimos que o mais famoso "pai dos burros" apresenta sobre "cheiro".
Como vimos agora, são "cheiros" não um só. E para identificarmos, ou melhor – para mapearmos os cheiros de Aracaju –, é necessário participar de um desses maravilhosos "tours" cotidiano-proletários. De preferência, utilizar uma das linhas que circundam toda a cidade, tipo Bugiu-Atalaia ou Marcos Freire-Terra Dura. Tem-se que escolher o lado inverso ao cano de descarga e, é claro, um lugar ao sol, dito à janela. O ônibus é um excelente meio para captar a totalidade odorífera dessa nossa velha urbe. Por ser excessivamente lento e parar de cem em cem metros, praticamente, o cheirador leigo pode notar as mudanças bairro a bairro, os desenvolvimentos, as fusões e as rupturas ofativas.
Pois bem, voltemos à tipologia do cheiro numa viagem pela cidade. Saindo do Bugiu, o trabalhador percebe a diferença ao se aproximar da linha férrea. O sal e a secura do mato, nas proximidades da maré, marcam o lugar. Ao passar pela Av. Maranhão, o seu espírito é transportado ao campo, a uma fazenda que seus ancestrais nunca possuíram e nem ele, certamente, nunca a possuirá. É o cheiro conjuntural do esterco de vaga, impregnando as cercanias do Parque João Cleofas. Na Av. Simeão Sobral, a partir da Igreja do Espírito Santo, a fragrância dominante é o jasmim, entre outras flores cultivadas pelas antigas famílias do bairro Santo Antônio. A ruptura, a primeira, acontece na Av. Carlos Firpo: o aroma vira poluição de óleo diesel e gasolina, somente amenizado pelo convidativo olor da Saboaria Celeste. Confesso que me sinto bastante atraído por ele, embora muitas pessoas afirmem ser essse sentimento um sintoma de verminose nos intestinos.
Vista aérea dos mercados Antônio Franco e Thales Ferraz. Aracaju-SE.
O cheiro do Complexo do Mercado é um fenômeno sui generis. Em um mesmo espaço (se por sua sorte o ônibus ficar engarrafado por alguns minutos nesse local) tempos condições de detectar vários deles: o das verduras podres, o do esterco de galinhas, patos, porcos e cabras, o de carne "moqueada", o dos peixes e caranguejos e, por fim, o cheiro misto de urina e cerveja. É aí, nesse lugar, que o mau cheiro passa a ser "fedor", onde todos viram o rosto, até mesmo os passageiros que trabalham no próprio mercado.
O interessante é que vendendo, comprando ou simplesmente transitando pelo local, esse cheiro não é tão perceptível quanto da janela desse nosso ônibus. É que como se os passantes se acostumassem com o cheiro da "própria casa".
Alguns mais "afetados" comentam: "esse é o legítimo cheiro de povo". Reclamam durante a semana. Mas, no sábado, lá estão contribuindo com a mesma química odorífera que antes criticaram.
Seguindo pela Av. Ivo do Prado, o cheiro do "apicum" do Bugiu vem à memória, dosado com o ácido que escapa dos esgotos do centro. A síntese é complementada com mais óleo diesel e gasolina. Há pouco, passeando pelo local, à noite, e com o auxílio da brisa do Rio Sergipe, era possível chegar ao êxtase com a torrefação do Café Aragipe, trabalhando a todo vapor (e toda fumaça). Ainda na mesma avenida, a partir da Des. Maynard, o cheiro de combustível perde terreno para o adocicado perfume do casario quase secular e dos seus oiteiros. Passando pela Praia 13 de julho, temos a remota sensação de estar no mercado. É incrível como os mesmos freqüentadores que reclamam dos odores do Mercado Tales Ferraz conseguem se acostumar com a “fragrâcia” da Praia 13 de julho.
No espaço entre a 13 de julho e o Conjunto Augusto Franco, final dessa viagem, encontra-se uma comunidade da qual não consegui descobrir o cheiro característico e, por hora, está enquadrada numa categoria não prevista no “Aurélio”: o cheiro neutro. Os pobres dizem: “um lugar que não fede nem cheira”.
A minha viagem termina por aqui. Descrevi o suficiente para explicar que Aracaju tem um cheiro particular. Seu cheiro ativa a memória, renova o afeto e reforça a solidariedade que parte da população devota a si própria e à cidade onde mora. A ausência desse cheiro nas outras cidades nos faz sentir desprotegidos. Ficamos com a impressão de que todas as pessoas e lugares são suspeitos e até ameaçadores. Eu os convido, então, a fazer o outro percurso proposto (Marcos Freire-Terra Dura) ou Em caso de ojeriza aos ônibus), identificar o cheiro do seu bairro, condomínio ou apartamento, ajudando-nos a conhecer a cidade  e assim contribuir para a elaboração da segunda parte dessa cartografia do perfume.


Fontes das imagens
Mapa turístico de Aracaju. <www.hbturismo.com.br.jpg>. Acesso em: 29/11/2010.
Vista aérea dos mercados Antonio Franco e Thales Ferraz. <http://4.bp.blogspot.com>. Acesso em: 29/11/2010.

Para citar esse texto
FREITAS, Itamar. Aracaju: cartografia do perfume. Azimute, Aracaju, mai. p. 3, 1995.