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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Questões de gênero em sociedades indígenas

Etnias e gênero
Como o homem se faz homem? Como a mulher se faz mulher? Existe “homosexualismo” entre povos indígenas? Estas questões desconcertam qualquer professor e são recorrentes já entre os alunos dos cursos de graduação. Que tal prestarmos atenção ao que dizem os antropólogos que tratam do assunto?
Para a compreensão das teses dos antropólogos é importante entender a palavra gênero de forma instrumental, ou seja: como “a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos seres humanos” (Soihet e Pedro, 2007, p. 288).
É também necessário conceber o gênero como construtor do sexo e o sexo como construtor do gênero. Em outras palavras, não é apenas a existência da genitália sexual masculina que constitui um homem. São necessárias várias práticas e representações sociais para que um ser passe a comportar-se e afirmar-se como homem. O mesmo ocorre com os caracteres biológicos. Os sistemas reprodutivos são empregados como traços diferenciadores dos seres, ganhando o papel de construtores da identidade de homem e de mulher.
Mas como esse tipo de raciocínio é empregado para o exame da experiência indígena?
Os antropólogos referidos neste texto ocupam-se da construção social da diferença, das hierarquias e das mudanças nas hierarquias entre homens e mulheres. Entre os Mbyá-Guarani (RS), por exemplo, o gênero mulher é construído a partir da nomeação das crianças (mediada pelo Xamã), onde intervém entidades que habitam moradas divinas. Há divindade para nomear meninos e divindade para nomear meninas.
Os ritos de iniciação pubertária (reclusão para as meninas) são outro instrumento de produção das diferenças. Na experiência Rikbaktsa (AM), da mesma forma, o status de mulher não é construído apenas tomando-se como base a sua função reprodutiva. A construção do gênero mulher, a construção do corpo (geração do feto), envolve interações (sexuais) não apenas com homens, mas também com mulheres e coisas.
Evidentemente, as diferenças e hierarquias existem entre os gêneros mulher e homem. Práticas rituais, espaços na aldeia, tarefas cotidianas situam a mulheres em lugares específicos. Mas, não há como pensar a construção do gênero mulher apenas com as dicotomias submissão/dominação. Entre os Terena (MS), é sabido que as mulheres na participam do Conselho Tribal. Mas, são responsáveis pelo choro nas visitas, festas, funerais e casamentos. Choro ou canto ritualizado, por sua vez, tem importância similar à oratória praticada pelos homens. Quando migram para a cidade e casam com não indígenas, as mulheres transformam-se em chefes de famílias, responsabilizando-se pelo sustento (econômico) dos seus lares. Esse fato modifica, inclusive, determinados modos de estabelecer o parentesco. Enfraquece-se a patrilineridade da comunidade étnica.
O mesmo processo ocorre com as mulheres da etnia Tukano Oriental (AM) que se casam com não índios. Tornando-se responsáveis pelo apoio econômico à família extensa, elas assumem novos papéis perante a comunidade. Esse novo lugar lhe oferece a prerrogativa de transmitir aos filhos os nomes dos seus antepassados, modificando a tradição patrilinear do grupo.
Outro exemplo de variação de papéis e de relativização das hierarquias pode ser observado entre as mulheres Apinajé (TO). O envolvimento de algumas delas em mobilizações reivindicatórias por saúde, educação e geração de renda modificou sua imagem no grupo. O determinante, neste caso, foi o prestígio social auferido individualmente, independentemente do gênero. É importante registrar que em 2008 duas mulheres haviam se transformado em cacique.
A construção do gênero e o estabelecimento das hierarquias mobilizam os esforços dos antropólogos. Mas, eles também abordam determinadas práticas afetivas e sexuais, imediatamente classificadas pelos não indígenas como lesbianismo e homoerotismo. Vejamos alguns exemplos.
Entre os Timbira (TO), mitos que explicam a formação da vida ajudam no entendimento sobre suas práticas sexuais. São necessárias várias relações sexuais e com vários parceiros (além do marido) para que uma mulher seja considerada grávida. Entre esses povos, acredita-se que o feto é formado por uma “quantidade grande e contínua de sêmen disponibilizada dia após dia”. Acredita-se também que a relação extra-conjugal é determinada pela busca (nos parceiros) das qualidades que mulher deseja ver reproduzidas no seu filho.
Para os Ramkokamekra (MA) a mulher pode relacionar-se com os maridos de suas irmãs e com os irmãos do seu marido. A regra vale também para os homens. Prática proibida é a disputa da mãe e da filha pelo mesmo homem e do pai e filho pela mesma mulher.
Entre os Guarani e os Terena (MS), há relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo, consideradas pelos não indígenas como homoafetivas. No entanto, apesar da tolerância e o respeito pela opção do outro serem características de modos de vida Guarani, não há consenso sobre esse tipo de prática. As aprovações ou condenações são fundadas nas posições individuais, independentemente da influência de geração ou religião.
E agora, você já consegue responder às perguntas do início deste texto? Se ainda não se aventura a dar respostas sobre a vida dos povos indígenas, tente refletir sobre os sentidos, por exemplo, de homem, mulher, homosexual e lésbica, partilhados por seu grupo. Quais as fronteiras que definem os gêneros no seu cotidiano? Quem define o quê? Você nasceu gostando de homem? Você nasceu gostando de mulher?


Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A experiência indígena entre os antropólogos: questões de gênero nna 26ª edição da Reunião Anual da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (Porto Seguro, 2009). Texto base da terceira aula do curso "A experiência indígena em sala de aula", ministrado aos alunos de licenciatura em História da Universidade Regional do Cariri-URCA. Crato, 24 jun. 2010. <http://itamarfo.blogspot.com/2010/06/questoes-de-genero.html>
Fontes das imagens:
Etnias e gênero (sem identificação do autor e dada). <http://contramachismo.files.wordpress.com/2010/03/racas.jpg> Acesso em: 15 nov. 2010.


Referências
ATHILA, Adriana Romano. A “Caixa de Pandora”: disputando pessoas e produzindo diferenças em uma sociedade indígena amazônica. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
ÁVILA Thiago. Sexualidade, gênero e sistema de parto nos povos Timbira do Maranhão e Tocantins. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em:  www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
LASMAR, Cristiane. Experiência urbana e relações de gênero no alto rio negro. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais...Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
MACHADO, Almires Martins, CANCCELA, Cristina Donza e SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu. Jeutaha entre pessoas do mesmo sexo. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em:  www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
PANET, Rose-France de Farias. A semântica sexual na mitologia Ramkokamekra: modelo de uma prática? REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
PRATES, Maria Paula. Corporalidade e gênero: reflexões possíveis sobre mulheres e crianças Mbyá-Guarani. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
ROCHA, Raquel Pereira. Os Apinajé: situação atual e gênero. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
SANT’ANA, Graziella Reis de. Incorporando o “componente mulher”: o associativismo da mulher Terena. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, Porto Seguro. Anais... Porto Seguro: Associação Brasileira de Antropologia, 2009. Disponível em: www.aba.org.br. Acesso em 1 dez. 2009.
SOIHET, Rachel, PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 54, p. 281-300, 2007.

terça-feira, 17 de abril de 2007

A identidade do ensino médio e a proposta da integração

Colégio Ateneu Sergipense (Aracaju-SE), na década de 1940. 
Primeira instituição de ensino secundário em Sergipe.
Caríssimos colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer a presença de todos e cumprimentar a presença da professora Lúcia Elena Lodi, nossa convidada do MEC. Gostaria de parabenizar Secretaria de Estado da Educação pela iniciativa de discutir os novos rumos para o ensino médio. E também quero agradecer às professoras do setor de Ensino Médio da SEED, em particular às professoras Claudina e Clotildes e, por fim, agradecer à professora Isabel Ladeira pelo convite para participar deste evento.
Nesta manhã dará ênfase à palavra identidade, como está no título da nossa mesa redonda. A fala está distribuída em quatro tempos. No primeiro, tratarei do sentido da palavra identidade. No segundo, aplicarei a definição de identidade com a intenção de abarcar a experiência dos estudos médio no Brasil no século XX. Em seguida, apresentarei alguns sentidos colhidos pelos historiadores dos estudos médios no Brasil. E, finalmente, apresentarei outras situações onde a idéia de identidade será necessária no processo de implantação do ensino médio integrado em Sergipe.
Composta dessa forma, espero que a minha fala possa demonstrar a importância da discussão sobre o conceito de identidade na implantação de qualquer projeto educacional, como o caso do ensino médio integrado.


Essa tal de identidade
O que é a identidade? Em que consiste a identidade? Essa não é uma pergunta fácil de responder entre os homens de ação. Não é uma questão do universo da prática docente, não habita o cotidiano do professor. Nós sabemos bem exemplificar, mas quase nunca definir. Então segue uma definição trazida no bolso: identidade é “entidade abstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência.” (Lévi-Strauss, 1977). Agora vamos ao exemplo mais conhecido de todos que envolve a idéia de identidade cultural. Ser sergipano. Esse é um exemplo de identidade. Ser sergipano não se compra, não se vende, não se destitui, ou seja, ser sergipano não têm existência real. Mas, nós nos rotulamos assim para nos diferenciarmos de outros seres, os alagoanos, por exemplo. Como é que identificamos o ser sergipano? Alguns dirão que é pela comida: ele gosta de carangueijo. Outros dirão que é pelo falar: o sergipano fala arrastado. Outros ainda apontarão o habito de dançar – sergipano adora o forró – ou o espírito pacato, entre outros. Sabemos muito bem que nem todos os sergipanos gostam são pacatos, gostam de forró, ou de comer carangueijo. Mesmo assim, insistimos nesses atributos, adoramos cantar o “meu papagaio das asas douradas” e ficamos bastante chateados quando alguém nos chama de baianos ou de paraibanos lá fora. Essa raiva, esse estigma demonstrado em relação aos baianos ou paraibanos é a manifestação da tal identidade de que estamos falando. Votemos agora à definição de identidade: é uma entidade abstrata, mas indispensável como ponto de referência” e que se torna visível quando a pessoa, o grupo, a instituição está em perigo”, quando se sente ameaçada – como os sergipanos que foram chamados de baianos há pouco.
Pois bem, identidade existe não somente para as pessoas, os grupos, as comunidades, os gêneros – identidade de Itamar, feminina, identidade negra, identidade sergipana. Ela também tem função referencial para instituições, projetos, disciplinas, cursos, modalidades de ensino como é o caso do ensino médio. Vejam mais um exemplo. Eu milito pela disciplina história. História é um rótulo apenas. Se eu não souber defender seu objeto, método, função social, conteúdos etc. ou seja, se eu não conhecer e defender seus atributos, com certeza a sua identidade se fragilizará e é bem provável que na próxima reforma pedagógica a minha carga horária seja diminuída, simplesmente porque o professor de matemática soube melhor que eu defender a identidade da sua disciplina de formação. Por esse exemplo espero ter convencido aqueles que ainda pensam na inadequação do termo identidade do ensino médio.
Mas, ensino médio não é uma pessoa. É coisa. E como é construída a identidade dessas coisas? Quem constrói são, principalmente, aqueles que dependem dessa coisa que é o ensino médio, ou seja, os profissionais da educação. Lembrem das disputas entre os professores dos cursinhos pré-vestibulares e os do ensino médio; entre os professores do primeiro e do segundo ciclos com os do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Uns colocando a responsabilidade do fracasso nos outros, uns defendendo mais recursos para a sua modalidade por ser a mais importante que a outra etc. Em todos esses casos a mesma operação pode ser observada: quem não consegue defender a razão de ser da sua modalidade não se estabelece. Quem não consegue fortalecer a identidade da sua modalidade – apresentar a razão da sua existência – está fadado ao desemprego.
Com esses exemplos quero dizer que também os estudos médios no Brasil tiveram direito a uma identidade. A existência de cursos médios no Brasil é contemporânea de calorosos debates sobre a sua identidade. E cada notícia sobre debate acerca de identidade dos estudos médios é também sinal de uma crise de identidade do ensino médio. Sim, porque identidade não existe desde sempre e para sempre. Ela sempre está e está em construção. Talvez isso cause incômodo nos professores. É bem mais confortável ser aprovado num concurso, receber a lei que diz: o ensino médio é isso e ver esse atributo de identidade ser mantido até o dia da sua aposentadoria. Em outras palavres, é bastante cômodo, para alguns profissionais, passar trinta e cinco anos sabendo o que se vai ensinar, o que se deve aprender e como se deve aprender. É mais os homens mudam, a história muda e o professor, mais cedo ou mais tarde terá que enfrentar uma crise de identidade no seu ofício – de professor do ensino médio. E esse momento chegou. Para a nossa sorte, a a identidade do novo ensino médio será construída com a participação de todos, com o nosso voto e as nossas vontades e aptidões.


A identidade dos estudos médios e a legislação específica no século XX
Agora, vamos sair do reino das abstrações e rever um pouco o quadro apresentado na última palestra que proferi sobre o ensino médio. Vejamos no quadro abaixo o que os dispositivos legais pregaram sobre a identidade dos estudos médios. Fiquemos apenas no núcleo definidor: as finalidades. Observem que não nos referimos a ensino médio. Ele não existe ao longo do século XX. Tratamos aqui de um seu equivalente: os estudos médios, ou seja, a modalidade de ensino destinada àquele indivíduo que já desenvolveu suas faculdades básicas (a memória), que já conhece as principais ferramentas para viver em sociedade e começa a desenvolver as principais potencialidades de conhecer, como por exemplo, a razão, o juízo (como diriam os jesuítas), ou aquela modalidade destinada ao adolescente – o aluno inserido numa faixa etária bem elástica que vai dos 10 ou 11 aos 18 ou 19 anos, como se fala modernamente.
Saindo da Idade Moderna e tratando de temas do século XX, podemos dizer que o grande alvo dos ensinos médios é o adolescente ou mesmo o aluno inserido numa faixa etária bem elástica que vai dos 10 ou 11 aos 18 ou 19 anos. Vejamos na transparência alguns momentos desses estudos médios no Brasil. Observemos as prescrições quanto às finalidades no período de um século (entre as décadas de 1890 e 1990).


Quadro nº1
“Finalidades de objetivo" dos estudos médios no Brasil - 1890/1996

Reformas
Finalidades de objetivo
1890 - B. Constant
Preparação para o ensino superior
Formar o cidadão para a vida social
1892 - F. Lobo
Preparação para o ensino superior
Formar o cidadão para a vida social
1897 - A. Cavalcante
Formar o cidadão
Fornecer o grau de bacharel e ciências e letras
1901 - E. Pessoa
Proporcionar cultura intelectual para o
ensino superior
Fornecer o grau de bacharel e ciências e letras
1911 - R. Correia
Proporcionar Cultura geral de caráter
prático
Difundir o ensino das ciências e das letras
1915 - C. Maximiliana
Preparar para o exame vestibular
1925 - J. L. Alves (Rocha Vaz)
Preparar para a vida
Fornecer a cultura média geral do país
1931 - F. Campos
Formar o homem para todos os setores da atividade nacional
1942 - G. Capanema
Formar uma sólida cultura geral
Elevar a consciência patriótica e a consciência humanística
Preparar as individualidades condutoras
1961 – LDB
Formar integralmente o adolescente (trabalho e cidadania)
1971 - Lei 5.692
Formar o adolescente (formação integral do adolescente)
1996 - LDB (Lei 9.394)
Consolidar e aprofundar conhecimentos do ensino fundamental
Preparar para o trabalho e a cidadania
Aprimorar o educando como pessoa humana (ética, intelecto e crítica)
Compreender fundamentos cientifico-tecnológicos do processo produtivo
[Dentro das prescrições do Decreto 5.154 / 2004, essas finalidades podem ser cumpridas em articulação com a educação profissional técnica de nível médio, ou seja, integrando componentes curriculares de ambas as modalidades de ensino médio].
Fonte: Leis e Decretos da União e regimentos do Colégio 
Pedro II – 1890/1931; LDB – Lei 4024/1961; Lei 5692/1971;
LDB - Lei 9394/1996; Freitas, 2006.
O que podemos perceber pelo Quadro nº 1? Observemos os verbos empregados na legislação de cada ano. Nota-se o conflito entre as funções preparatória (ao vestibular), formativas (personalidade do adolescente), especializadora (mundo do trabalho) e, agora, de forma integrada (componentes curriculares do ensino médio convencional e do ensino técnico de nível médio), ou seja, notam-se as várias identidades em conflito. Uma identidade produzida pelos legisladores para os estudos médios no Brasil
Vejamos agora a noção de identidade extraída por intelectuais brasileiros a partir desses conflitos e crises de finalidades das funções legais. O que dizem os pesquisadores?


A identidade dos estudos médios na cabeça dos historiadores
Alguém já disse, e com muita propriedade, (penso que foi Jaques Le Goff) que os historiadores resolvem primeiro os seus problemas para depois pensarem no coletivo. A pergunta, o problema de pesquisa proposto pelo historiador é, em grande medida, um problema seu, a priori. Assim ocorre no geral e também na questão específica sobre a história dos estudos médios no Brasil. Três momentos dessa discussão que ocorre com maior vigor a partir dos anos 1970.
Tomemos como exemplo os trabalhos de Geraldo Bastos Silva, um dos mais abonados pela historiografia sobre o secundário. Para esse autor, a utopia (paixão, projeto etc.) disseminada no debate político e presente em A educação secundária são as “funções essenciais” desse tipo de ensino: preparar as novas elites – propedêutica do ensino superior – e formar a personalidade do adolescente. Assim, os conceitos de arrimo, presentes no citado livro – alienação, transplante e antecipação – ajudam a explicar o fracasso de todas as tentativas de emprego de idéias e de instituições educacionais européias, haja vista a situação colonial e periférica da experiência histórica brasileira até os anos 1930. (cf. Silva, 1969, p. 32, 33, 232, 285). Sua utopia e o seu entendimento sobre a ciência histórica resultam na idéia de que o ensino secundário brasileiro seguiu uma trajetória evolutiva linear de reiterados fracassos na tentativa de eliminar, tanto o caráter propedêutico do ensino, quanto o perfil ornamental e enciclopédico do currículo – com ênfase, ora nas ciências físico-naturais e nas matemáticas, ora nos estudos das humanidades.
Maria Thétis Nunes, nossa grande sergipana, e Maria de Lourdes Mariotto Haidar mantêm essas mesmas chaves de leitura sobre o ensino secundário. Para Thétis, a educação secundária era um “reflexo dos interesses de classe”, e a classe proletária não fora contemplada em suas aspirações na década de 1960 – um secundário de qualidade que lhe possibilitasse a mobilidade social em tempos capitalistas. Movida por essa utopia e baseada numa teoria mecanicista da história (onde a superestrutura - lugar da educação - estava a reboque da infraestrutura, e a esperada revolução burguesa não poderia queimar etapas), a autora chega à conclusão de que o ensino secundário no Brasil esteve sempre em “desconexão...com as condições sócio-econômicas do momento” (Nunes, 1999, p. 112).[1] Quando as reformas eram avançadas (Leôncio de Carvalho), a sociedade não estava preparada para recebê-las. Quando a sociedade e a economia estavam aptas para os melhoramentos da educação, as reformas retrocediam aos objetivos e currículos de ensino livresco, ornamental, conservador (Gustavo Capanema). Por essa equação bastante crítica (para não dizer, pessimista), o ensino secundário no Brasil nasceu (1550) e desapareceu (1971) sem ter cumprido a evolução de que se esperava: migrar de uma proposta elitista para uma proposta democrática, ou como se diz atualmente, para uma proposta inclusiva.
O caso de Haidar não destoa do anterior. Ela conclui o seu livro Ensino secundário no Império brasileiro com o clássico argumento da história como pedagogia para o presente: é preciso não deixar que os erros do velho ensino secundário se repitam. Eles estão batendo à nossa porta (isso ocorria em 1972). Não podemos tolerar a volta de exames parcelados disfarçados de exames de madureza e nem a freqüência livre que mutilam a qualidade do ensino secundário. Não é difícil perceber que esse alerta (propiciado por um conhecimento histórico que “liberta”, operando uma “verdadeira catarse”) está relacionado aos resultados obtidos a partir do exame de algumas formas do ensino secundário até a penúltima década do século XIX: a pobreza do currículo (desinteressado) e a aristocrática finalidade do ensino secundário. A utopia de Haidar é, portanto, a construção de um ensino secundário como canal democrático de mobilidade social – o que não foi permitido no regime monárquico ante às sucessivas protelações da extinção do sistema de exames parcelados, da não implantação da regularidade e da simultaneidade dos estudos disciplinares, da ausência do bacharelado como único acesso aos cursos superiores e da inoperância do Colégio Pedro II como “padrão real” para o secundário nas províncias. (cf. Haidar, 1972, p. 136-137, 262).
A partir dos anos 1980, outra utopia se configura, ainda inserida na idéia de transformação radical das relações sociais de produção. Aí, novamente, os estudos médios em vigor nos séculos XIX e XX são os vilões. Nada deu certo. O dualismo trabalho/formação cultural (oriundo da idéia de educação numa sociedade capitalista) atravessou décadas. É necessário, então, exterminá-lo e colocar em seu lugar o ensino médio integrado que, senão reproduz as diretrizes básicas, pelo menos introduz noções fundamentais da escola unitária pregada por Gramsci.
O que vimos, então, com essas quatro posições? Vimos, portanto, que a cada utopia corresponde uma proposta inovadora de estudos médios. Cada uma dessas propostas representa uma nova identidade para o ensino médio. Da mesma forma, a cada uma dessas novas identidades corresponde uma identidade que deve ser defenestrada. E são os agentes do presente quem vão indicar os atributos dessa nova identidade e vão decretar o fim de uma forma escolar considerada inadequada aos padrões do seu tempo ou de sua utopia, mesmo que para isso tenha que cometer alguns anacronismos; mesmo que para isso, sob o manto de um método materialista, tenha que utilizar argumentos idealistas. Exemplificando melhor: anacronismo - quem põe defeito nos estudos médios do seu tempo costuma tropeçar nas singularidades de cada época (ex: ensino médio é uma invenção recente. Não existiu no século XIX e por todo o século XX); idealismo – o caráter dual dos estudos médios não pode ser considerado como essência do ensino médio, pois a identidade não tem essência – não existe desde sempre e para sempre; ela é uma construção relacional e por isso muda.


Considerações finais ou outras identidades no debate para a implantação do ensino médio integrado
No início desta fala, me propus a examinar o tema da identidade e a implantação do ensino médio integrado. Anunciei uma definição para a identidade: uma entidade abstrata, mas fundamental para a sobrevivência de qualquer pessoa, grupo ou instituição. Disse que identidade não tem essência, é mutável, manifesta-se nos momentos em que o grupo/instituição sente-se ameaçado em seus domínios, e que é produzida não raro por intelectuais, entre os quais os professores. Em relação ao ensino médio, ou melhor, aos estudos médios, disse que os historiadores têm construído o seu discurso sobre o que acham que eles deveriam ser, segundo suas próprias concepções, atropelando até mesmo as peculiaridades dos estudos médios em diferentes tempos e espaços do Brasil. É hora de anunciar também outras preocupações. Sou simpático à tentativa de promover estudos integrados no atual ensino médio. Não somente porque os historiadores de hoje assim o querem: porque Gramsci teria razão, porque o dualismo tem que ser defenestrado etc. A proposta de integração deve ser implantada, simplesmente, porque no real, vários estabelecimentos do ensino médio enfrentam forte crise com o atual modelo disciplinarizado e de costas viradas para os interesses dos alunos (e esses interesses são o mercado)..
Assim, um novo ensino médio deve começar sair dessas discussões. Mas os professores, grandes agentes intelectuais na construção da identidade do ensino médio, os professores, repito, não necessitam ancorar-se na denúncia acerca do dualismo secular dos estudos médios. Não precisam ancorar-se na tábua de salvação da escola unitária. Outras configurações podem ser buscadas e necessariamente passarão pela discussão sobre identidades em outros menos passíveis à reduções simplistas. Dou como exemplo as discussões sobre identidade regional, identidade local, identidade subalterna (à outras nações), identidade de classe (pobres, trabalhadores etc.), identidade de trabalho, de escola (o respeito à escola), de gestores e professores (das concepções de cada um sobre cursos e escolas), do sistema de ensino entre outros. Somente assim, discutida em diferentes níveis, é que se poderá falar em fim de propostas de novas identidades para a formação integrada nos estudos do ensino médio em Sergipe. Só assim teremos tantos ensinos médios integrados, quantas forem as instituições envolvidas nesse processo.
Muito obrigado.


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Conferência proferida no Seminário “Ensino Médio Integrado: Identidade, Legislação, Iniciativas e Perspectivas”, promovido pela Secretaria de Estado da Educação. Auditório da Biblioteca Pública Epifânio Dória, Aracaju, 17 de abril de 2007.


Referências bibliográficas
BICUDO, Joaquim de Campos. O ensino secundário no Brasil e sua atual legislação (de 1931 a 1941 inclusive). São Paulo, 1942.
__________. O ensino secundário no Brasil e sua atual legislação (de Janeiro a setembro de 1942) com a reforma Capanema e seus regulamentos. São Paulo, 1949.
FREITAS, Itamar. A pedagogia da história de Jonathas Serrano para o ensino secundário brasileiro (1913/1935). São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em História da Educação) – Programa de Estudos Pós-Graduados – História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
LÉVI-STRAUSS, Claude. (dir.) L’identité: Seminaire. Paris: Bernard Gasset, 1977.
SENADO FEDERAL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
__________. Diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. Brasília : Diretoria de Divulgação do Senado Federal, 1971.
SILVA, Geraldo Bastos. A educação secundária: perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
NUNES, Maria Thétis. Ensino secundário e sociedade brasileira. 2 ed. Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira; São Cristóvão: Editora da UFS, 1999. [A primeira edição é de 1962].
VECHIA, Ariclê e CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora (orgs.). A escola secundária: modelos e planos (Brasil, séculos XIX e XX). São Paulo: Anablume, 2003. P. 27-35. 


Notas
[1] Fizemos uso da segunda edição, que traz um posfácio autógrafo bastante esclarecedor sobre o pensamento da autora.

domingo, 2 de novembro de 2003

O Amado Genolino

Genolino Amado (1902-1989)
Leveza e densidade, o fortuito e o reflexivo, a crônica e o ensaio caracterizam a prosa do itaporanguense Genolino Amado (1902/1989), segundo o seu maior especialista, o poeta Jeová Santana (2000). Contraditórios tais atributos – como a vida do autor, repartida entre a crítica social e a freqüência aos gabinetes do governo Vargas –, eles transformaram-se em “janelas abertas para a cidade e para o mundo”, de onde se pode observar um dos “projetos de brasilidade” em curso no período 1930/1950 (Cf. Santana, 2000, p. 142-142) e a idéia de uma identidade sergipana para a primeira metade do século XX.
Genolino Amado, cronista, ensaísta, tradutor, político, professor de História Universal, foi um exilado voluntário. Sua produção esteve fortemente marcada pelos ares metropolitanos. As referências a Sergipe, no entanto, abundam nos livros que enfeixaram suas crônicas. A prosa memorialística vai pelo mesmo caminho. O texto mais conhecido foi Um menino sergipano (1977). A este, planejou dar prosseguimento, escrevendo “a história do moço que estudou na Bahia e se formou no Rio de Janeiro”, e que se chamaria “Um rapaz sergipano”.
Um terceiro livro contaria a sua vida em São Paulo, a iniciação literária, o retorno ao Rio de Janeiro e a comemoração das bodas de ouro do casamento dos seus pais. Essas memórias eram também “a narrativa de toda uma família sergipana, a do velho Melk, a de Donana”, a dos quatorze irmãos Amado, com destaques para o excepcional Gilberto e, quem sabe até, para “um outro grande Amado que a Bahia nos levou, [s]eu primo Jorge, sergipano de origem.” (Cf. Amado, 1977, p. 41-43; 1977b, p. 199).
O surto memorialístico de Genolino não se iniciou com a visita que fez a Sergipe, nos anos 1970, início da escrita de Um menino sergipano. Ele havia publicado O reino perdido (1971), livro de reminiscências sobre a vida de professor de história no Rio de Janeiro. Quanto aos flagrantes de memória sobre os modos sergipanos de pensar, agir e sentir já estão dispersos em crônicas publicadas desde a década de 1940. É por essa janela que se pode, em parte, observar “todo um Sergipe que vive na lembrança dos sergipanos exilados, que constitui a obsessão poética do seu degredo”. (idem, 1946, p. 137). Exemplo dessa catarse: “cheiros de mangaba madura, músicas de reisado, versos do ‘colibri’ ao som da Dalila, cadeiras na calçada, serenatas de violão soluçante, a fala cantada do povo, as mocinhas de fita no cabelo passeando ao largo da matriz.” (idem, p. 1977b, p. 136-137).
Mas, por que observar “em parte”? Porque o Genolino rememorador é o mesmo que apõe a crítica à lembrança e reconhece a impotência da cultura provinciana do final do século XIX frente à “revolução” operada pelo rádio no início dos anos 1940: em Laranjeiras, Orlando Silva substitui Fausto Cardoso; em Propriá, o reisado perde espaço para os sambas de Odete Amaral; as histórias contadas sob os alpendres do Riachão dão lugar às novelas radiofônicas; os “rr” do locutor César Ladeira estragam a prosódia das meninas de Itabaianinha e de Itaporanga; as imagens do amor e da namoradinha encarnam-se na figura de Linda Batista e não mais em Julieta; enfim, sucesso do rádio significa “a morte da província”. (cf. Amado, 1946, 136-139).
O menos famoso dos Amado era também um homem da mídia, um cultor da modernidade. Esse fato, entretanto, não o obriga a concordar com o expresso aniquilamento de um modo de vida coletivo. Essa preocupação de Genolino reverbera sempre nesses instantes de mudanças bruscas, desde Maiackowsk aos críticos da globalização: “Se perdermos a província, que será de nós, de nós que tanto já perdemos? Onde encontrar o sentido da nossa existência, se lhe turvamos a fonte de onde ele sempre veio?” (idem, p. 138).
Trinta anos mais tarde, a fonte da singularidade (a província) continuava pródiga. O rádio não era novidade, a televisão se impunha, mas ao que parece, a “alma de Sergipe” não fora destruída pela modernidade. Ela foi ganhando nitidez na cabeça do viajante Genolino à medida em que ele amadurecia, exercitando todos os sentidos, analisando, generalizando, sintetizando, comparando e diferenciando maneiras de viver, timbre de humanidade, inclinações morais e sentimentais, dotes criadores, simpatias e idiossincrasias do sergipano. (cf. Amado, 1977b, p. 193).
Genolino chegou a definir a alma de Sergipe: “um conjunto de qualidades próprias, facetas caracterizadoras, aspectos específicos e inconfundíveis dos meus conterrâneos, enfim, sergipanidade.” (idem, p. 193). Mas, na hora de demonstrá-la academicamente, recuou. Seria muito cansativo e trabalhoso!
“Sergipanizou”, portanto, ao léu, com o que lhe veio à cabeça no momento da escrita (idem, p. 196). Agiu impressionisticamente, tentando demonstrar que o sergipano era mais caboclo que negro, majoritariamente pardo, sofredor. O nativo era, como o cearense, um eterno migrante e, talvez – pela ausência de um porto –, um forte ascendente judeu. No legado cultural, não se sobrelevaram os sonetistas, oradores e romancistas (Cf. Amado, 1977, p. 192-200). A ausência dos Amandos Fontes anteriores à década de 1930, por exemplo, esteve relacionada ao caráter do “espírito sergipano”: denuncista, influenciador, inovador. “No espírito sergipano, concluía Genolino, “o senso crítico prepondera sobre o imaginativo, sobretudo de caráter meramente estético.” (Amado, 1997b, p. 41).
Genolino Amado não era cientista social, nem saudosista melancólico. Mas, é curioso como releva e, ao mesmo tempo, critica a idéia de alma cultivada pelos patrícios do final do século XIX. Para o cronista, alguma “coisa”, em última instância, deveria ser preservada. Que “coisa” seria essa, e do passado de quem seria recuperada é a pergunta que não quer calar. Com a introdução desse componente político, Genolino dinamiza o debate sobre o passado, memória e identidade sobre o qual nos debruçamos no momento.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O Amado Genolino. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 nov. 2003.

Referências
AMADO, Genolino. O reino perdido: histórias de um contador de história. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.
__________. A morte da província. In.: Os inocentes do Leblon: crônicas do Rio. Rio de Janeiro: Globo, 1946. p. 136-139.
__________. Um menino sergipano: memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
Momento entrevista Genolino Amado. Momento: Revista Cultural da Gazeta de Sergipe, Aracaju, n. 9, p. 41-43, fev. 1977.
SANTANA, Jeová. A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino Amado. Campinas, 2000. 245 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.

domingo, 12 de outubro de 2003

O sergipanismo de Nunes Mendonça

No final dos anos 1950, Sergipe era um pequeno Estado da região Leste (Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal), com limites territoriais pouco precisos, população predominantemente rural, onde a construção de fábricas de cimento e a exploração de jazidas petrolíferas eram apenas uma esperança. O “atraso sócio-econômico” poderia ser medido pelo avanço das áreas de pastagem, decréscimo da produção e do nível de emprego na cotonicultura e na indústria têxtil, pelo êxodo anual de 70.000 sergipanos em direção aos estados do Sul. (Cf. Mendonça, 1958; Nascimento, 1994).
Não era de se estranhar que alguns intelectuais buscassem alternativas para essa provável estagnação. Menos estranho seria ainda se esse intelectual fosse vinculado a um partido político e desse sustentação ao governo estadual. Nunes Mendonça (1923/1983) foi um desses intelectuais. Aqui ele ganha destaque por ter associado o problema do subdesenvolvimento às reformas educacionais ao tempo que sintetizava os traços dominantes do sergipano.
Mendonça (1923/1983) era itabaianense. Trabalhou como funcionário público, chegando a técnico educacional e professor do Instituto de Educação Rui Barbosa e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais. Era homem de ação. Cedo manteve contatos com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, fazendo incursões pela Sociologia da Educação.
Seu livro que melhor aborda a temática é A educação em Sergipe (1958). Uma espécie de diagnóstico das instituições escolares no Estado, acompanhado de soluções social-desenvolvimentistas. Mas, o caráter do pensamento sobre educação de Nunes Mendonça, bem como a sua trajetória como professor e parlamentar não são objetos deste texto. A professora Eliana Souza, quem melhor estudou a sua experiência intelectual, lançará um livro, nas próximas semanas, sob o selo da Editora da UFS e com o patrocínio da Fundação Oviedo Teixeira, tratando inclusive desses tópicos. Vale a pena esperar o evento. Interessa-me, no momento, a idéia de sergipanidade desenvolvida pelo itabaianense.
As conclusões do professor Mendonça sobre a sergipanidade basearam-se em trabalhos de survey, entrevistas e observações. Suas amostras incluíram exemplares das várias “zonas ecológicas do Estado” – Litoral, Central, baixo São Francisco, Sertão do São Francisco e Oeste –, embora admitisse que tais zonas nem sempre compusessem unidades homogêneas geográfica e culturalmente falando (Cf. Mendonça, 1958, p. 40-41). Todavia, o uso do quantitativo não significou o abandono das explicações impressionistas, como pode se ver abaixo.
Nunes Mendonça chegou ao tema indiretamente, pois o seu interesse era compreender a natureza e o funcionamento do “sistema escolar”. Ele acreditava que a melhoria da cultura educacional seria o motor, em última instância, do desenvolvimento local. As “características psicológicas do sergipano” tinham a função de auxiliar no conhecimento do sistema a ser transformado. Mas, como as mudanças educacionais prescindiam das reformas econômicas, a sua proposta ganhou o mesmo caminho das demais atitudes salvacionistas; envolveu-se no conhecido enigma: o que muda primeiro? O sistema produtivo ou o sistema educacional? Mudariam os dois sistemas ao mesmo tempo?
Para Nunes Mendonça, os principais problemas geo-econômicos do Estado de Sergipe ainda eram a pequenez territorial, os rigores da seca, as deficiências dos solos cultiváveis, o caráter rudimentar dos instrumentos e dos métodos de exploração agrícolas, e a ausência de nexos entre as instituições escolares e o setor produtivo. Isso provocava baixa produtividade, que alimentava o círculo vicioso do subdesenvolvimento.
Esse estágio da economia, por sua vez, condicionava o ritmo (lento) das mudanças sociais. A oligarquia havia sido abandonada há pouco (?). Em termos de costumes, por exemplo, ainda vigorava nas “camadas incultas” o irracionalismo das práticas supersticiosas, resultantes da mescla do catolicismo com cultos ameríndio, africano e espírita (Cf. idem, p. 56).
Em suma, as adversidades do clima, solo, limitações territoriais; a mentalidade arcaica, e o apego às práticas culturais primitivas dominavam a experiência sergipana. E foi, a partir desses dados e condicionantes, que Nunes Mendonça produziu a idéia de que o sergipano era “psicologicamente” cético, desconfiado, econômico e individualista. Vejamos o que mais disse o autor:
“...em hábitos de vida e costumes, expressões lingüísticas e prosódia, o sergipano assemelha-se ao baiano, em ânimo, podemos assegurar, equipara-se ao cearense. Ambos – sergipanos e cearenses – premidos por hábitos idênticos, embora oriundos de causas mais ou menos díspares reagem com a mesma obstinação, enfrentando, desajudados mas corajosamente, as vicissitudes da natureza.
O sergipano, porém, ao contrário do cearence, possui acentuado sentimento de inferioridade...
Não herdou o espírito arrojado do pioneiro lusitano que conquistou Sergipe no primeiro século: absorveu a índole de outro tipo de colonizador português – comedido e sedentário, que veio em seguida”. (idem, p. 54-55).
O polêmico Nunes Mendonça foi aposentado pelo regime em 1964. Morreu distante de Sergipe, em Vitória, a 15/06/1983, manifestando o desejo – prontamente atendido – de não ser sepultado no Estado natal. (Cf. Souza, 1998, p. 81n). O seu degredo, paradoxalmente, pareceu cumprir um traço identitário da sociedade sergipana. Traço esse, colhido e anunciado pelo poeta Freire Ribeiro em carta aberta endereçada ao desditoso professor da Escola Normal: “sou hoje em dia um homem a caminhar sob um fardo de desencantos!... (sic) Nada tenho a fazer, prisioneiro numa terra sem horizonte, estreita, acanhada para os homens de espírito que têm, em Sergipe, o fim das flores que enfeitam os banquetes e se destinam depois à lata do lixo! Essa Judéia – concluía citando Pereira Barreto – apedreja os seus profetas. (Cf. Freire, p. 1, in. Souza, 1998).

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. O sergipanismo de Nunes Mendonça. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 12 out. 2003. <http://itamarfo.blogspot.com/2003/10/o-sergipanismo-de-nunes-mendonca.html>.

domingo, 5 de outubro de 2003

O sergipanismo de Prado Sampaio

Joaquim do Prado Sampaio Leite (1865/1932) era bacharel em direito e viveu sua maturidade intelectual no período áureo de um movimento intelectual renovador, a Escola do Recife (Cf. Paim, 1981, p. 111-134). Titulou-se em 1889. Atuou como promotor público, juiz de direito, secretário de polícia e advogado. Fez-se reconhecer por sua produção poética e filosófica, deixando, nas páginas dos periódicos locais, algumas das mais contundentes marcas do jeito de demonstrar a identidade sergipana, de rememorar os homens famosos do Estado, de pensar e de produzir ciência. (Cf. Guaraná, 1924; Freitas, 1998; 2000).
Para o programa científico do IHGS, Sampaio estabeleceu que não mais se deveria “aclarar pontos obscuros ou recantos crespusculares” da história e da geografia de Sergipe. O grêmio estaria, sim, encarregado de estudar antropogeografia sergipana. O que interessava naquele momento era relação homem/meio físico, inspirado nas teses de F. Ratzel. (Cf. Sampaio, 1913, p. 24-25).
Com a adoção da antropogeografia, o estudo da história seria renovado. Deixaria de configurar-se numa “infinda comemoração de batalhas ao desfile secular de dinastias sepultas” – vê-se como esse tipo de história política era alvo de fortes críticas já no início do século XX. O que se buscava, agora, no saber de Clio, era o “evoluir das ciências, das letras, das artes, das indústrias, das religiões”, “as criações fundamentais da humanidade”, em suma, os artefatos da civilização. A função dessa nova história e desses novos objetos era auxiliar os estudos sobre a “sociologia dos povos” – do povo sergipano em particular. (idem, p. 24).
Prado Sampaio também tratou da construção e da conservação de alguns mitos formadores de Sergipe. Políticos e intelectuais foram os personagens privilegiados. Sua atitude era panegírica, ainda que justificada em termos científicos. Dentro desse espírito ritualístico, vários sergipanos  foram homenageados: Ivo do Prado, Armindo Guaraná, Cid Lins, Brício Cardoso, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Inácio Barbosa, e M. P. Oliveira Valadão. Aqui e ali, uma referência às forças mecânicas, ao valor dos mortos no destino dos vivos, à lei de adaptação etc.
Além das questões memorialísticas, ganhou relevo, na sua produção, o esforço em comprovar e defender a identidade sergipana. Foi o conjunto de textos mais rico e também o mais complexo. O seu sergipanismo foi gestado sobre o paradigma dos vulgarizadores da biologia que atuaram entre a última década do século XIX e a primeira do século XX. (Cf. Oliva, 1977; Freitas, 1998).
As idéias de sociedade (organismo), ciência (busca pela verdade), método (experimental), tempo (progressivo, linear), e motor da história (a evolução das espécies) apontam para uma mescla heterodoxa entre as teses dos pensadores Ernest Haeckel (1834/?) e Herbert Spencer (1820/1903)
Essa fusão resultou numa teoria da identidade e a sua imediata aplicação. A teoria prescrevia a “unidade etno-psicológica” sergipana sob o regime de duas leis: lei de hereditariedade e lei de adaptação. Os elementos hereditários (étnicos) eram estáticos e provinham da psicologia nacional. Assim, os mitos e as lendas, importadas do Brasil, Sergipe já os possuía com vantagem: o povo sergipano apresentava-se muito mais homogêneo do que o povo brasileiro, fato comprovado pela unicidade da língua local, já que a ação da imigração estrangeira no Estado fora quase insignificante.
Quanto aos elementos dinâmicos – história, literatura, arte e ciência – que sofriam os influxos dos rios, os problemas com a fertilidade do solo, as secas, a precariedade do porto, da relação homem-meio, enfim, estes já se encontravam em franca especialização, ou seja, era possível visualizar as singularidades da nossa experiência histórica e da nossa produção estética, quando postas em comparação com o trabalho de outros Estados. Exemplificando: na história, Sergipe – mais que [que o baiano] –, contribuiu durante as lutas pela integridade territorial e política do Brasil.
Na literatura, Sergipe ajudou a renovar a poesia, a filosofia, e o padrão estético brasileiros, além de desvelar a história da democracia e praticá-la com maestria no parlamento nacional. Esse foi o legado de alguns sergipanos, como Tobias Barreto, Silvio Romero, João Ribeiro, Felisbelo Freire e Fausto Cardoso. Portanto, Sergipe já era “personalidade” na história, economia, literatura e ciência. Por volta de 1910, só não conseguira autonomia sob o ponto de vista do território geográfico, desfalcado pela hegemonia baiana.
Grande parte dessas teses está depositada nos ensaios A literatura em Sergipe (1908) e Sergipe artístico, literário e científico (1928), provavelmente a primeira síntese publicada em livro de uma história da cultura sergipana. Esses trabalhos foram interpretados como superficiais, genéricos (Cf. Lima, 1971, p. 80-81; 1984, p.19) e, com grande dose de acerto, o seu autor foi considerado um “intelectual diletante” (idem, 1971, p. 81), isso quando não o acusaram de ter apenas “vomitado idéias e teorias mal digeridas”. (Diniz, apud. Lima, 1971, p. 81).
Assim mesmo – e por isso mesmo –, penso que suas obras devem ser lidas compreensivamente, sobretudo pelos que também vêem a sergipanidade em termos de “caráter” e costumam compará-la com portentosas baianidades, mineirices, gauchismos etc., concluindo por uma incômoda  ineficiência do nosso “orgulho de ser sergipano”.
Para a reflexão, fica a tese de Prado Sampaio: “É, de fato, o sergipano um misto de acanhamento e de audácias”; de acanhamento, criado pelas condições do meio físico e social – situado num minúsculo território, comprimido pela Bahia, desprestigiado pelo poder central; e de audácias, como fenômeno de reação e de revolta, ante às sucessivas disputas e perdas políticas nos embates com poderosos Estados da federação. (Cf. Sampaio, 1928, p. 102). Esse refrão está completando cem anos e parece que vai ecoar por mais alguns anos.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O sergipanismo de Prado Sampaio. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 05 out. 2003.