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sábado, 1 de janeiro de 2005

O Álbum de Sergipe e a historiografia de Clodomir Silva

O Álbum de Sergipe (1920) corresponde fielmente ao sentido etimológico do substantivo: uma espécie de livro de folhas brancas, nas quais se registram nomes, pensamentos, versos, músicas, retratos, paisagens e outras coisas com objetivos memorialísticos (Aulete, 1974, p. 136). Pode o Clodomir Silva ter pensado algo diferente – uma história de Sergipe, por exemplo, para “demonstrar fora do Estado as condições em que nos encontramos, a capacidade de ação de que somos dotados, os recursos de que dispomos” etc., mas o resultado foi mesmo um coquetel de informações desarticuladas – ou de registros articulados como a narrativa imagética de um álbum de família.
O plano do impresso assim denuncia essa Babel. Fora pensado para rememorar os fastos do centenário da independência de Sergipe, difundir e imortalizar a ação patriótica e modernizadora do Governo Pereira Lobo. O resultado é que passado e presente, tempo e  espaço, história política e geografia física se misturam constantemente. Inicia-se com a narrativa da experiência sergipana, de capitania à província. O fluxo é interrompido para descrever-se a “parte física” – por sua vez, encerrada com uma nota sobre as Constituições locais, hino, selos e listagem de parlamentares estaduais e federais.
O Álbum trata, em seguida, de administração e finanças contemporâneas e encerra a descrição das contas para avaliar a história dos últimos cem anos. Volta-se ao presente, à biografia e aos feitos do Lobo governador. Muda-se abruptamente o foco para a cronologia sobre a imprensa sergipana do período 1832/1916 e, de novo, para a descrição das repartições públicas federais e estaduais, das entidades civis representativas como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a Diocese de Aracaju e a Loja Maçônica Cotinguiba. Daí, salta-se para uma resenha corográfica de todos os 34 municípios.
Já perto do fim – estamos na página n. 303 – a experiência municipal é reunida em longa e útil lista de todas as cidades, vilas, povoados e arraiais, notas biográficas sobre notabilidades políticas, econômicas, literárias e religiosas, e quadros estatísticos da atividade produtiva relativa aos anos 1919/1920. Ufa !
Esqueçamos esse ligeiro plano seqüência e fiquemos, apenas, com a escrita da histórica tradicional. Mas, ela existe no impresso? Que tipo de história Clodomir teria praticado? As histórias estão em todo o Álbum e representam a variedade de gêneros em vigor por essas terras no final do século XIX. Há síntese global sobre a história de Sergipe – 1500/1822; síntese sobre o último século 1820/1920; história dos municípios; cronologia da imprensa sergipana; biografias de artistas, cientistas, políticos e religiosos. As limitações de espaço não permitem que se toque em todas as pedras. Também não quero fazer um sobrevôo no espectro iconográfico desse livro. Para isso, convido o leitor a desfrutá-lo diretamente. Aqui comento, apenas, o texto escrito – “Sergipe em cem anos” – que trata da época da “cristalização das aptidões sergipanas” – dizemos hoje, da identidade local.
Clodomir inicia a narrativa (?) confessando a sua dificuldade em “historiar com segurança, sob um ponto de vista mais alevantado que o comum das proposições a que se lança o historiador” (p. 82). O que seria “o comum do historiador”? A justaposição de fatos relativos à experiência político-administrativa, intercalados com longos depoimentos contemporâneos fabricados pelo próprio Estado em formação? – É isso que ele faz na síntese global sobre a colônia. O “ponto de vista mais alevantado” seria a tentativa de interpretação sob princípios sociológicos? Espero que algum dia um aluno de história responda a essas questões. Enquanto esse aluno não chega, exponhamos uma hipótese. Quando tenta fazer história um pouco longe da crônica, Clodomir descamba para um ensaismo de matizes, digamos, psico-sócio-antropológicos. Como isso pode ser demonstrado?
No “Sergipe em cem anos”, Clodomir abandona a cronologia e a fatuidade política stricto sensu. Ele volta-se ao estudo do meio físico, da raça e dos costumes de Sergipe. O meio é belo e, ao mesmo tempo, hostil: o meio castiga. O território é pequeno. A seca e o “impaludismo endêmico” atrapalham o crescimento da população.
O tipo etnográfico é o segundo traço característico da população a ser investigado. Não há homogeneidade – digamos sem medo de exagerar: Clodomir lamenta que não sejamos ainda uma raça homogênea e regozija-se das possibilidades de clareamento.
Quanto aos costumes, há um elemento importante: é fácil identificar o sergipano pelo seu modo de falar. Clodomir constata “uma certa demora em pronunciar as palavras” e sentencia: “O caráter exato do falar do comum dos sergipanos é a média lentidão”.
Essa análise do meio, da raça e dos costumes leva o historiador à eleição dos traços principais do nosso caráter. Para ele o sergipano é inteligente, confiante, animado, bravo, estóico, em duas palavras: migrante e trabalhador. São categorias colhidas no povo sergipano e facilmente identificáveis nos seus filhos mais ilustres, destacados no comércio, agricultura, magistratura, armas, letras, artes, magistério, tribuna e no parlamento. A ação sergipana pode ser constatada no Acre, Bahia, Pernambuco e até no Paraguai.
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 Como tratamos na semana passada, a narrativa do “Sergipe em cem anos”, incerta no Álbum de Sergipe (1920), de Clodomir Silva, apresenta analise do meio, da raça e dos costumes e informa sobre os traços dominantes do nosso caráter: o sergipano é inteligente, confiante, animado, bravo, estóico, em duas palavras: migrante e trabalhador. São categorias colhidas no povo sergipano e facilmente identificáveis nos seus filhos mais ilustres, destacados no comércio, agricultura, magistratura, armas, letras, artes, magistério, tribuna e no parlamento e constatadas no Acre, Bahia, Pernambuco e até no Paraguai.
Mas, como acontece em toda a eleição de princípios e durante a elaboração dos trabalhos de síntese histórica, o estudioso tropeça nas evidências do próprio tempo, e do evolver da história. Entende-se que o Álbum é obra ecumênica e que só poderia externar a fraternidade entre grupos, indivíduos e ideais. Clodomir, entretanto, exagera. Diz que na política, quando “os ânimos e os fragores vibram, cedo logo os interesses se harmonizam e a vida calma segue o seu curso pacífico e proveitoso. Esquecem-se os ódios, velam-se as desafeições e a marcha prossegue ao som triunfal do trabalho vivificador.” São belas palavras inscritas no Álbum. As colunas dos diários aracajuanos das décadas de 1900 e 1910 – os tempos de Sílvio Romero, Olímpio Campos, Fausto Cardoso – e o rastro de violência (física) deixado pelas disputas oligárquicas (na época de Valadão e Lobo, inclusive) dizem coisa muito diferente.
Outro excesso destacável de Clodomir Silva: a tentativa de minimizar a ação do contingente negro. Esse fato é compreensível – quem quereria apresentar um Sergipe “de cor” após séculos de escravismo oficial? Mas, não deixa de ser patética a forma como tenta explicar o clareamento da população. Primeiro fala da importância do mameluco, do grande contingente indígena, da criação de subtipos oriundos destes últimos. Depois, noticia a “quase desaparição do elemento negro”, mesmo tendo informado que esse representava próximo de 2/3 da população local, no início do século XIX.
Para a infelicidade de Clodomir, a missão de bem representar Sergipe perante o Brasil também é atrapalhada pelo acaso futuro. Ele afirma que não temos cangaceiros. O povo “decaído” – o “nomadismo assassino” – só existira no tempo da guerra de Canudos. A verdade é que esse Estado não somente forneceu muitos conselheiristas à infortunada Canaã da Bahia (1893/1897), como também produziu grandes efetivos para o cangaço – Poço Redondo que o diga! Isso sem falar que o mais famoso bandoleiro do norte do país – Virgulino Ferreira da Silva – aqui encontrou apoio de gente graúda e aqui foi aniquilado, colocando a gruta de Angicos e o Estado de Sergipe nas páginas dos jornais e da história do Brasil.
Sabemos hoje que a tarefa de descrever o aspecto geral da vida dos habitantes de Sergipe era necessária à sobrevivência dessa grande comunidade política. Oliveira Telles e Prado Sampaio também trabalharam nesse sentido. O que na síntese de Clodomir chama a atenção da história da historiografia é a auto-definição do texto como de história, e de história “de um ponto de vista mais alevantado”. Uma história sintética, generalizadora e – por que não dizer – sociologizante.
O último aspecto a considerar nessa história sociologizante é a tentativa de por à prova a conhecida lei de Malthus: “o poder de crescimento da população é indefinidamente maior do que o poder que tem a terra de produzir meios de subsistência para o homem (...) Entre as plantas e os animais, [as] conseqüências são a perda do sêmen, a doença e a morte prematura. Na espécie humana, a miséria e o vício.” (Malthus, 1983, p. 282). Com a aplicação dessa lei na interpretação dos dados locais, em fins da década de 1910, Clodomir demonstrava, hipoteticamente: 1) a nossa população era muito maior do que informavam as frágeis estatísticas de então; 2) a relação crescimento dos meios de subsistência–crescimento da população do Estado era regulada por meio das secas, epidemias e da guerra mundial – da mesma forma que ocorria nos demais Estados da federação brasileira; e 3) o caráter “migrante e “trabalhador” do nosso homem típico estaria explicado cientificamente – resultaria da ação de uma lei natural.
Clodomir Silva, que raramente interpretava, deu saltos em relação à história positiva. Ele só não previu os resultados de sua iniciativa. Ao requisitar o cientista social Thomas Robert Malthus (1766/1836) para explicar o êxodo populacional no início do século XX, ele anulou aquilo que supunha ser a maior singularidade do sergipano: justamente, o caráter migrante e trabalhador. Se a lei da produção e do consumo desigual de alimentos valia para todos – os Estados, os países etc. –, “o aspecto geral” do sergipano, conseqüentemente, teria que diluir-se no “aspecto geral” do brasileiro e de qualquer outro povo sujeito a tal determinação científica. Assim, especificamente nesse texto – “Sergipe em cem anos” –, aquilo que o sentimento de pertença local forneceu com uma mão, a razão científica solapou com a outra. Curioso, não? Mas, foi também dessa forma que os sergipanos aprenderam a escrever a história de seu próprio povo nos princípios do século passado.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Álbum de Sergipe e a escrita da história de Clodomir Silva. Palestra proferida na Biblioteca Clodomir Silva. Aracaju, 2005.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 28 de março de 2004

O "povismo" de Clodomir Silva

Bastante acertada a decisão da Funcaju de republicar  Minha Gente: costumes de Sergipe, livro de Clodomir Silva. Não somente pela importância da obra desse intelectual da primeira República – pouco se tem a acrescentar às apresentações de Terezinha Oliva e de Luiz Antônio Barreto – mas também e, principalmente, pelo significado do livro na historiografia sobre Aracaju.  Clodomir Silva foi um dos maiores – com licença da feiúra dessa expressão – aracajuanófilos de todos os tempos, e o texto lançado no 17 de março último dá mostras dessa intimidade com a barbosópolis.
Certo que a capital onde nascera já fora por ele cantada, por exemplo, num artigo fundador – “Aracaju” (Correio de Aracaju¸ 1922) –, onde aportaram José Calazans, Fernando Porto e Sebrão Sobrinho. No Minha gente, todavia – livre para enredar – Clodomir associa cenários, costumes e pessoas. Ele dá um jeito de interromper uma narrativa biográfica para descrever, em rápidas pinceladas, a feição da rua do Arame, a movimentação na saída das fábricas, o clima festeiro do Aracajuzinho, o trabalho feminino nas salinas e a paisagem aracajuana vista da cidade de Santo Amaro.
Entretanto, não somente de Aracaju trata-se a obra. O texto de Minha gente é uma coleção de formas de pensar, agir e sentir que o autor, provavelmente, enxergaria como espontâneas e representativas de todo o Sergipe. Isso porque a capital era, para Clodomir, uma “cidade polvo” cujos tentáculos se expandiam, atraindo “tabaréus” de todas as partes do Estado. Daí a importância destes como arquivo da sergipanidade. Hoje, se vivo, Clodomir expandiria suas vistas e visitas aos bairros Santa Maria, São Carlos e Lamarão, que abrigam grande contingente de migrantes de outros Estados.
Além de síntese topográfica, o livro traz um painel da diversidade folclórica local: religiosidade, lúdica, artes e técnicas, música, folguedos, literatura e linguagem popular estão presentes na obra. É uma possibilidade de exposição, apenas. Ele “planejara um volume dedicado ao folclore de Sergipe”, livro cujos manuscritos, em 1976, estavam nas mãos do bibliófilo Antonio Simões dos Reis. (Cf. Calazans, 1992, p. 64).
Minha gente: costumes de Sergipe é simples. É uma obra de reescrita, uma coletânea. Boa leitura faz quem acompanha cada peça de forma independente (mesmo o capítulo que dá nome à obra – “Minha gente” – é, talvez, o de menor expressividade). Em alguns trechos, lembra a viagem dos românticos do século XIX à caça do povo em vias de extinção. Lembra também o Antônio Cândido cercando os modos paulistano-caipiras, forjados no tempo da colônia e embalsamados na cidade de Bofete.
Não obstante tais lembranças, não obstante a sua busca às fontes “autênticas” aos arquivos do povo, é desprovido de grandes vôos interpretativos. Clodomir Silva “era um colecionador de tradições e costumes. Um coletor de peças, voltado para as suas fontes, que deviam brotar do meio do povo, sem manifestar preocupações com o que os outros haviam colhido. Não era de seu hábito fazer citações, enunciar comparações, enumerar versos.” (Calazans, 1992, p. 62).
Essa característica chama a atenção quando olhamos ao lado, no tempo de Clodomir, os intelectuais que trabalhavam com objetivo semelhante – buscar a alma do povo sergipano. Prado Sampaio, seu contemporâneo, fez exatamente o contrário: interpretou em profusão, às vezes, bem distante da pesquisa básica. Mas, curiosa é a convergência das conclusões (do pouco que se pode extrair de Clodomir). Tanto em Prado Sampaio – com seus poetas letrados – quanto em Clodomir Silva – com seus cantores vulgares – a poesia expressa as aptidões de um povo, e o sergipano é marcadamente trabalhador, civilizador e migrante.
Mas, isso é tema para os exegetas da sergipanidade. Aqui, basta registrar que, como obra sobre folclore, Minha gente se transformou num repositório do povismo dos tempos de Clodomir. Isso também o conduz à base referencial de comparação – ele que nada comparava – de certos modos de viver de uma parcela da sociedade local. Num sobrevôo de lembranças particulares, pude notar como determinadas atividades lúdicas atravessam o tempo, conservando idênticas funções. O jogo com castanhas, o pinta-lainha, o cabra-cega, eu os alcancei na rua México, no bairro Novo Paraíso até o início dos anos 1970. Seria interessante cruzar os trabalhos do Departamento de Psicologia desenvolvidos em torno das brincadeiras de criança na periferia de Aracaju nos anos 1990.
A narrativa é um primor. Não foi pouco engenho despendido para construir o texto de forma que o provérbio, a quadrinha, a máxima fossem transmitidos em sua forma mais próxima ao evento original. Observe-se alguns títulos – “No frigi dos ovo”, “Quem non dá p’a fubá”. Não são ilustrativos. Transmitem uma riqueza de sentidos que só mesmo a cultura oral é capaz de condensar. Observam-se o vocabulário simples, mas elegante, a frase curta e o ritmo ligeiro da narrativa.
Como registro sobre as gentes de Sergipe, enfim, Minha gente já vale pelo conhecimento que sugere sobre a vida de Zé Robalo, velho pescador de Santo Amaro, nascido “no tempo da guerra do Lopes”, cheio de histórias curiosas e que nunca havia conhecido o mar; a vida de Maria de Zé Piau, fugitiva da cheia 1909 que findou seus dias como operária da Fábrica Confiança, numa tragédia semelhante à vida de Os Corumbas; as lembranças do garoto Eleotério, para quem a escola pública era “uma sala escura, [de] bancos duros, ar confinado”, a “autoridade tirânica da professora, propensa sempre a castigar.” (Cf. p. 78).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar . O povismo de Clodomir Silva. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B - 6B, 28 mar. 2004.