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domingo, 2 de maio de 2004

Um resumo da história de Sergipe

Na edição nº 68, (18-24 abr. 2004), demonstrei algumas estratégias de transposição da erudita História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891) para o livro didático do mesmo nome, elaborado pelo professor Laudelino Freire (1898). É bom que sejam relevados os truncamentos da transposição e os poucos avanços detectados em termos pedagógicos. Na cidade bandeirante, a introdução da história local nas escolas primárias também não contou com texto exemplar, adequado às possibilidades cognitivas ou, como se dizia no final do século XIX, ajustado ao “interesse da infância”.
As narrativas didáticas destinadas ao “ensino da mocidade”, mocidade que poderia variar desde os 7 aos 16 anos, produzidas por José Joaquim Machado de Oliveira (Quadros históricos da província de São Paulo) e pelo republicano histórico Américo Brasiliense (Noções de história pátria) possuíam estrutura  de frase e vocabulário eruditos. O texto deste último não passava da transcrição integral de conferências proferidas para um público nada infantil em Campinas, logo veiculadas na Gazeta local e, na seqüência, distribuídas nas escolas públicas em formato livro.
Desconheço as tentativas de emendar a obra dos paulistas. Mas, no caso de Laudelino Freire – futuro organizador da Revista Didática (1902/1906) – houve outra oportunidade de escrever um resumo da história de Sergipe para o curso primário, dessa vez, incerta num livro escolar de Corografia.
Corografia era a nomenclatura de uma disciplina cujos conteúdos versavam sobre o conhecimento do espaço de uma determinada região ou localidade. Quadro Corográfico de Sergipe (1898) foi o nome do livro de Laudelino, publicado um ano depois da Corografia do Estado de Sergipe do infortunado Silva Lisboa (Cf. A Semana, 7-13 set. 2003).
No Quadro, o “resumo” da História de Sergipe (1898) foi transformado em “resenha histórica”. Um novo texto foi produzido sob indiciário título de “Notícia histórica” contemplando todas as adaptações que o formato editorial requereria. Ficou 75% mais curto e aqui é interessante registrar o procedimento de Laudelino para compor essa nova síntese.
A periodização foi mantida – tempos colonial, imperial e republicano – e a natureza dos fatos também – conquista, invasões, guerras, posse dos governantes. O que fez com que a narrativa fosse reduzida tão drasticamente foram as omissões de grandes blocos. Ele excluiu os detalhes sobre a catequese, sobre as guerras – os efetivos, as estratégias de combate, o sofrimento dos fugitivos –, os fatos destacados na maioria das administrações, os fatos exorbitantes da história política – a presença da cólera no Estado –, excluiu seus comentários sobre a direção tomada pela história local – o fracasso da ação jesuítica – e o julgamento sobre algumas ações administrativas – a mudança da capital, o desapego dos sergipanos à causa emancipacionista defendida por Carlos Burlamaque.
O texto da História teve suprimido os títulos e subtítulos, capítulos foram fundidos e as listas de governantes e parlamentares migraram das notas de pé de página para um bloco no final da “resenha”. Algumas palavras estrategicamente postadas no curso do texto anterior – nem sempre importando em melhor solução. Laudelino condensou e mudou a ordem de parágrafos. Corrigiu, fez justiça com o historiador Barleus, não citado na História de Sergipe e também deve ter deslizado em alguma informação – no Quadro corográfico o número de cativos em 1590 é de apenas 1.000, enquanto que na História vem grafado 4.000 (erro tipográfico?).
Estava agora a história de Sergipe posicionada na Corografia de Sergipe, ou seja, na segunda parte do livro, intitulada “Descrição política de Sergipe”, após a “Descrição física de Sergipe” – limites, nosografia, orografia, hidrografia, limenegrafia, portos, barras, faróis e divisão civil, judicial e eclesiástica do Estado – e à frente das sinopses de todas as suas comarcas e municípios. Sob o ponto de vista da história a ser ensinada,, a disposição do Quadro é bem mais rica do que a gravada na História de Sergipe. No Quadro, em que pesem os objetivos da Corografia – os fatos geográficos – estão contempladas a história geral e a história local.
A transposição da História de Sergipe para o Quadro corográfico fez recrudescer o caráter narrativo da primeira obra. Com os cortes efetuados, a história transformou-se ainda mais numa seqüência linear de eventos postos em relação de causa e efeito – o antecedente determina o conseqüente –, eventos que, por sua vez, guardavam estreitas filiações com a história do nascente Estado republicano.
Contada dessa forma – conquista e colonização portuguesas, expulsão dos holandeses, redução à comarca da Bahia, emancipação política, transferência da capital, administração republicana – , pelo menos três elementos constituintes do mito fundador de Sergipe seriam renovados entre professores e escolares: a idéia de que estamos fadados à civilização dos costumes, por obra e graça do povo português; a presença da violência como traço marcante da história local, caráter traduzível até mesmo nas lutas partidárias do final do século XIX; e a eleição do nosso “outro”, do nosso diferente, do nosso algoz centrada na Bahia.
Também contada dessa forma, nos textos de Laudelino Freire, a história de Sergipe faria coincidir dois modos operadores do final do século XIX, o do ofício do historiador e o do ofício do professor de história. Para o primeiro, majoritariamente, escrever história era narrar, encadear ações destacadas na experiência política, de preferência, num texto dito a um só fôlego. Para o professor, segundo a pedagogia hegemônica, ensinar história seria uma tarefa mais produtiva se os fatos fossem dispostos em ordem cronológica – o antecedente explicando o conseqüente – de forma a que a memória fosse adequadamente alimentada e treinada, podendo assim conservar as principais informações que o aluno precisaria para situar-se no Estado e na vida.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Um resumo da história de Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >

domingo, 25 de abril de 2004

A História de Sergipe na escola republicana

O lagartense Laudelino de Oliveira Freire (1873/1937) já era professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro há cinco anos, quando resolveu publicar uma História de Sergipe. Laudelino também estava enfronhado com o que havia de mais “novo” em termos de pesquisa geográfica (geológica) e histórica no Brasil. Era amigo do Manoel dos Passos de Oliveira Teles – tradutor de John Casper Branner – e estava fisicamente próximo de Capistrano de Abreu e João Ribeiro, sem contar a amizade do irmão mais velho – Felisbelo Freire – que poderia ser convocado em caso de dúvida capital. Apesar disso, seria sensato supor que o professor Laudelino transportaria todo o cacife para a elaboração da sua História de Sergipe (1898)? Que formato ganhou esse primeiro livro didático de história local?
História de Sergipe era destinada “à instrução primária da juventude sergipana”. Provavelmente, pelo programa de ensino, serviria como uma introdução aos conteúdos de história do Brasil. Constituía-se, como indica a “advertência”, num “pequeno resumo”, fundado “especialmente” na única obra escrita sobre o assunto – a História de Sergipe” de Felisbelo Freire (1891).
Ocorre que esta última história era obra de erudição. Discorria sobre teoria da história, comentava as recentes conquistas da etnografia e da arqueologia sobre a pré-história americana, fazia longas citações sobre a geologia local em francês, transcrevia manuscritos do século XVI com a grafia original e ensaiava uma monografia sobre a questão de limites entre Sergipe e Bahia.
Pensando nos pequenos leitores, Laudelino foi logo tratando de escoimar o seu livro didático de todo esse instrumental que dava à História do irmão um caráter científico e cientificista, como até hoje atribuímos. O texto ficou bem mais curto. Listas de governantes migraram para os pés de página. As frases em ordem direta, a raridade da paráfrase e da condensação, os parágrafos obedecendo ao tempo cronológico deram um ritmo ligeiro à narrativa.
Esses arranjos fizeram com que a história de Sergipe fosse resumida à seguinte seqüência: conquista do território, colonização, invasão holandesa, reconquista portuguesa, criação da comarca, elevação à capitania, independência, disputas partidárias, mudança da capital, presença da cólera e, por fim, a vida republicana nos períodos ditatorial e constitucional.
Mas, o livro base – o de Felisbelo Freire – tinha outros inconvenientes. Nada dizia sobre o “descobrimento do Brasil” – ocorrido pouco antes do nascedouro da Capitania de Francisco Pereira Coutinho (1534) – e, praticamente, encerrava-se com o evento da mudança da capital (Aracaju, 1855). Para cobrir as lacunas, Laudelino utilizou-se de obras de Capistrano de Abreu (1883), Antônio J. S. Travassos (1875) e de Balthazar Góis (1891). Corrigiu o livro do irmão no que diz respeito às divisões geográficas do território e a descrição da hidrografia, detalhou e expandiu a exposição sobre a fauna e da flora de Sergipe, e estendeu o registro histórico até o ano de 1896.
Tantas mudanças assim poderiam sugerir que um novo livro fora elaborado sob os pontos de vista didático e de informação histórica. E isso, em parte, ocorreu. O problema é que os cortes, enxertos e adaptações não desmontaram os principais pilares edificados por Felisbelo, tais como: a periodização, a idéia de fato histórico e a forma expositiva. No texto de Laudelino Freire, a história de Sergipe permaneceu seccionada pelo critério político – colônia, império, república. Era a evolução do Estado de Sergipe, dentro da evolução do Estado brasileiro que se buscava.
Não obstante a abertura para o exame de um fato social de grande impacto – a epidemia de cólera –, a intriga entre partidos e entre autoridades, a rebelião, a invasão, a fraude eleitoral e os atos de heroísmo representavam bem o que se queria transmitir como fato histórico. A disposição de “acontecimentos notáveis” numa cronologia progressiva, a estratégia de listar os feitos de cada administrador e os poucos sobrevôos interpretativos durante a obra também conservaram os “quadros de ferro” presentes na obra de Felisbelo Freire. No livro de Laudelino, nada de ilustrações, nada de sinopses ou conclusões, nem uma representação espacial do pequeno torrão sergipano – um mapa! Em suma: o “intuitivo” do método de ensino prescrito para o primário local ficou só na intenção.
No Colégio Militar (RJ), pouco antes de a obra vir a público, Laudelino fazia uso da vulgata pedagógica do século XIX – partir do concreto para o abstrato, levar em conta o interesse do aluno –, mantinha a idéia de desenvolvimento das faculdades da criança (inteligentemente orientado pelo professor), defendendo a implantação de uma “cultura lógica e racional para o ensino primário” (cf. Freire, 1895). Mas, daí a transferir esse conjunto de princípios para a elaboração de um moderno livro didático de História eram outros longos passos que esperariam, pelo menos, uma década e meia para florescer na instrução sergipana, pelas mãos de Elias Montalvão (1916).
Por outro lado, é sensato, também, compreender que a opção – ou a falta da opção – de Laudelino Freire estivesse relacionada as suas idéias de ensino de história e de história local e às práticas escolares em vigor. Em tal sentido, o caráter de catecismo cívico atribuído à disciplina e a hegemonia da preleção e da sabatina em sala de aula demarcam bem a utilidade da História de Sergipe na instrução pública, postando-se como um grande óbice às tentativas de mudança no formato do livro didático republicano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A história de Sergipe na escola republicana. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 25 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >