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segunda-feira, 1 de junho de 2009

História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático em questão (2006/2009)

FREITAS, Itamar. História regional para a
escolarização básica no Brasil: o livro didático em
questão(2006/2009). São Cristóvão: Editora da UFS,
2009.Capa: Hermeson Alves de Menezes.
Um livro didático de História é um artefato de papel e tinta de uso em situação didática, que veicula textos escritos e imagéticos auxiliando os alunos na construção de representações sobre a experiência humana no tempo (Cf. Munakata, 1997, p. 84). Ele tem sido instrumento fundamental na prática cotidiana do professor em todo o Brasil, ao longo do século XX, sobretudo. Os livros didáticos são, em muitos casos, o único impresso que o professor lê durante um ano e os únicos exemplares que constituem a biblioteca familiar da maioria dos alunos e dos pais ou responsáveis pelos alunos da escolarização básica no Brasil.
Para o aluno, ele contempla a matéria a ser lecionada, as atividades que viabilizam a aquisição de capacidades necessárias ao convívio em sociedade, à sobrevivência no mundo do trabalho e à construção da cidadania. Para o professor, além desses atributos, o livro didático exerce a função de guia curricular e, ainda mais importante, de instrumento de formação continuada nas áreas de História e de Pedagogia, principalmente.
Por sua relevância, o livro didático é um artefato prestigiado nas políticas públicas para a educação básica. Nosso país é o que mais investe no mundo. São, em média, R$ 600.000.000,00 anuais, despendidos com a compra de aproximadamente 40 milhões de exemplares, distribuídos para mais de 150.000 escolas em todos os estados brasileiros anualmente. (Cf. Freitas, 2007). Para 2010, a previsão de gastos ultrapassa a quantia de R$ 690.000.000,00. (Cf. FNDE, 2009).
Não obstante a relevância do artefato, bem como a magnitude das políticas educacionais concretizadas por meio da ação do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, a difusão do livro didático no Brasil enfrenta alguns dasafios que afetam a eficácia dessa relevante iniciativa, no sentido de melhorar a qualidade na educação dos brasileiros. A produção de livros regionais de História é um desses problemas. O Ministério da Educação – MEC, com recursos provindos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, adquire milhões de exemplares de livros de História regional, mas o processo de avaliação dessas obras tem apontado que aí residem as maiores fragilidades no que diz respeito aos aspectos gráficos e de conteúdo. (Cf. Brasil, 2007). É nesse contexto que se insere esta obra. Ela aborda a questão da qualidade do livro didático de História regional e, de forma indireta, propõe estratégias para o aperfeiçoamento da sua produção. Mas, o que são livros didáticos de História regional?
Os livros denominados de História regional são impressos que registram a experiência de grupos que se identificam por fronteiras espaciais e sócio-culturais – seja na dimensão de uma cidade, seja nos limites de um Estado ou de uma região do Brasil –, sendo costumeiramente utilizados em situação didática no ensino de História. No âmbito do PNLD, os livros regionais começaram a ser avaliados na edição 2004. Nessa ocasião, 41% dos 24 títulos apresentados por autores/editores foram reprovados (Cf. Brasil, 2006; Bezerra, 2004 e 2007), em grande parte, por não contemplarem os avanços da pesquisa histórica e da pesquisa pedagógica e por desprezarem as diretrizes para a escrita e a editoração dessa tecnologia educacional.
No PNLD 2007, o número de exclusões diminuiu significativamente. Mas, na maioria dos livros, foram conservadas a periodização colônia, império, república, a ênfase na ação político-institucional e nos personagens ilustres, e as abordagens pedagógicas ultrapassadas.[1] Grande parte desses livros não incorporou inovações historiográficas e pedagógicas, manteve relativo descaso com o projeto gráfico e desprezou o papel que o manual do professor representa no processo ensino-aprendizagem (Cf. Brasil, 2006).
Outro problema que também afeta a produção dos livros didáticos regionais é a concentração de títulos em alguns espaços da federação. Entre 2004 e 2007, o número de livros aprovados ampliou-se de 14 para 27, um crescimento de 93%. O número de estados contemplados, entretanto, ficou bem longe dessa marca, ampliando-se de 10 para 14, ou seja, 29%.[2] (Cf. Caimi, 2007, p. 174).
A marcante presença das imperfeições no livro didático de História regional – ao contrário do que ocorre com as coleções de História (Brasil e geral) – foi, inicialmente, atribuída à submissão da História à área de Estudos Sociais (Cf. Bezerra, 2004) que vigorou no Brasil entre 1971 e o início da década de 1990 (Cf. Martins, 2002, p. 105, 191). Segundo Holien Bezerra (2004), no processo de transição do livro de Estudos Sociais para o livro de História como disciplina autônoma nas séries iniciais, vários resíduos da antiga rubrica foram mantidos. (Cf. Bezerra, 2004; Bezerra e De Luca, 2006). Tais vícios do recente regime militar são justificativas relevantes. Entretanto, podemos atribuir outras razões para esses problemas de qualidade na literatura didática regional, entre as quais, o fato de muitos estados não serem considerados espaços significantes em termos mercadológicos para as editoras que trabalham com livros didáticos.
Detalhe da capa de Gente de São Paulo, São Paulo da gente. Eliana Caboclo et. al. (2005). Ilustrações de Conceito Comunicação
Pesquisa, Hélio Senatore e Fernando Miller. A capa sugere uma viagem da criança ao passado da sua cidade. 
É é também umaalusão à atividade de comparação passado/presente, que desenvolve na criança a noção de
mudança (meios de transporte, roupas, construções, pavimentação) - fundamentando, futuramente,
a aquisição do conceito de tempo cronológico.
Essa justificativa – a do mercado –, explicaria, também em parte, o desestímulo dos editores e a ausência de investimento no gênero História regional, posto que as universidades públicas têm a sua parcela de responsabilidade. Seus cursos de História e de Pedagogia têm demonstrado pouco interesse na produção do livro didático regional. O profissional multidisciplinar, que dá conta da produção do livro, ainda é raro nessas instituições e as iniciativas de boa qualidade, transitando entre a Linguística, História, Design e Pedagogia, ainda são raríssimas, quando não migram imediatamente dos centros acadêmicos para as grandes editoras.[3] 
Não bastassem esses entraves, verificamos também que a maioria dos historiadores universitários demonstra certo desprezo pelo artefato, dominantemente, considerado como uma literatura de segunda ordem. Um bom indicador são as obras de síntese da História da historiografia. Desde a primeira metade do século XX, quando estas começaram a vir a público, não foi produzido, sequer, um trabalho que contemplasse, no todo ou em parte, essa literatura historiográfica específica, respeitando-a em seus traços dominantes – de escrito didático (Cf. Rodrigues, 1949 e 1952; Holanda, 1951; Campos, 1961; Canabrava, 1972; Lacombe, 1973; Mota, 1977; Lapa, 1981 e 1985; Silva, 1983; Gomes, 1996; Reis, 1999, Arruda e Tengarrinha, 1999).
O trabalho de maior envergadura sobre a História da historiografia brasileira, produzido no início da década de 1990 – A História no Brasil –, não incluiu o livro didático como fonte. Carlos Fico e Ronald Polito assim justificaram a exclusão:
Cremos que a veiculação de conhecimento especializado em textos didáticos da maioria das áreas de conhecimento ocorre com relativo atraso. Levantamentos nessas áreas provavelmente demonstrariam que o que hoje é divulgado pela produção didática em História nos primeiro e segundo graus não equivale ao que é lido e discutido pelos grupos mais especializados e pelos leitores em geral. (Fico e Polito, 1992, p. 27-28).
Evidentemente, as razões de Fico e Polito foram de ordem metodológica: o processo de seleção das fontes enfatizou as “esferas mais especializadas de produção do conhecimento histórico”. No entanto, o desprestígio da historiografia didática entre os profissionais da História que não dedicam maior parte do tempo à docência no ensino básico é amplamente reconhecido no meio. O depoimento da historiadora Claudia Wasserman é bastante revelador neste sentido:
Ao ser convidada para participar do simpósio de Teoria e Metodologia, senti um grande orgulho de pertencer a essa seleta elite que estuda não apenas a História, mas também o desenvolvimento do processo de produção do conhecimento, ou melhor, que discute a própria ciência. Porém, logo que me foi designada a mesa de ensino, me senti frustrada (temos a tendência a menosprezar os temas da educação). Com tantos temas importantes, pulsantes, novos e polêmicos (biografias, novas tendências, História no fim do milênio), eu teria que me contentar com a discussão do livro-didático, lamentar as mazelas da educação brasileira, etc. (Wasserman, 2000, p. 249, grifos da autora).[4]
Certamente, a pesquisa educacional produzida na Universidade não tem condições nem ambição de resolver em curto tempo o problema da desqualificação dos profissionais, o desprezo dos universitários ou a questão do mercado colocada por algumas editoras. No entanto, ao menos, em um campo pode-se intervir imediatamente, de forma a melhorar a qualidade das obras de História regional: na descrição das suas características, indicação de virtudes e vícios e no acompanhamento sistemático das suas reedições.
A avaliação de livro didático no Brasil tem sido bastante criteriosa e, por isso mesmo, legitimada pelo campo acadêmico, pelos professores do ensino básico e por grande parte dos autores e editores de textos escolares. A prática da avaliação está sempre em mudança. A cada PNLD lançado, há um esforço das equipes avaliadoras para tornar o processo e os instrumentos muito mais atualizados em termos dos indicadores de qualidade do livro didático.
O resultado das mudanças no processo avaliativo repercute positivamente no meio editorial. Ajustes nos critérios significam, na maioria dos casos, mudanças no projeto editorial, gráfico, historiográfico e pedagógico. É sintomático, portanto, que as propostas curriculares e o trabalho pedagógico difundidos pelos livros didáticos tenham ganhado maior sofisticação nos últimos 10 anos.
É perceptível também que tenha havido uma diminuição do tempo médio de transferência da pesquisa acadêmica para o livro didático; beneficiando  a qualidade da educação básica.
Os impactos das recentes políticas sobre livros didáticos (incluídas as iniciativas de avaliação), como afirma Holien Bezerra (2004), têm incidido positivamente nas comunidades científica e educacional e no meio editorial, embora em relação ao livro didático regional, os avanços não sejam tão animadores quanto os resultados das coleções de História para as séries/anos finais.
Detalhe da capa de Santa Catarina: interagindo com a História. L. Sourient, R. Rudek e
R. Camargo (2006). Ilustrações de P. Borges e Branbilla.
A imagem demonstra a iniciativa dos autores em representar a diversidade
étnica, de gênero no estado de Santa Catarina e, ainda, de introduzir a criança como personagem
da história local, seguindo a a legislação federal que fundamenta os editais do
Programa Nacional do Livro Didático.
Assim, pensamos que o exame do conjunto de 27 títulos de livros didáticos regionais (LDR) distribuídos pelo PNLD 2007 pode, ao mesmo tempo, dar a conhecer essa variante da escrita da História aos historiadores, aperfeiçoar os instrumentos de mensuração e contribuir para a melhoria da qualidade dos livros. Tais foram, portanto, as principais metas e justificativas dessa empreitada, efetivada entre agosto de 2007 e julho de 2009 pelo Grupo de Pesquisas sobre Ensino de História – GPEH, contando com três professores e sete alunos dos cursos de História e de Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe, dentro do projeto “História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático em questão (2006/2009)”.[5]
O projeto partiu de um programa de estudos mínimos baseados nas áreas que incidem sobre as dimensões nas quais os livros são costumeiramente avaliados, a saber: História (Teoria e História da historiografia), Pedagogia (psicologias da aprendizagem e do ensino), Linguística (textual e análise do discurso), e Design (gráfico), além da observância de algumas demandas sociais incorporadas recentemente pelo Estado (inclusão da experiência e melhoramento da imagem das sociedades indígenas) e também de interesses da política exterior brasileira (as representações sobre a América).
Os procedimentos metodológicos que viabilizaram esta empreitada compreenderam ações de pesquisa bibliográfica e de análise estatística. A pesquisa bibliográfica teve o seu papel no inventário das questões e soluções mais recorrentes sobre a natureza do livro didático de História para crianças, em uso por historiadores, pedagogos, linguistas e designers gráficos. A análise estatística foi empregada para testar as hipóteses de linguistas, historiadores, pedagogos e designers, tendo como fonte primordial os livros didáticos de História regional aprovados no PNLD 2007.[6]
No campo da Linguística, selecionamos indicadores que permitiram examinar o processamento textual do ponto de vista de sua produção. Analisamos, prioritariamente, as estratégias textual-discursivas que têm por finalidade facilitar a compreensão, introduzir esclarecimentos e exemplificações, aumentar a força teórica do texto, e dar relevo a certas partes dos enunciados. Quais as escolhas operadas pelos produtores dos textos de livros didáticos de História regional, sobre o material linguístico à sua disposição, objetivando orientar o interlocutor na construção do sentido? São as mesmas estratégias utilizadas em todos os anos do ensino fundamental e do ensino médio? A abordagem linguística, portanto, ofereceu os indicadores que permitiram responder a estas questões com o intuito de demarcar os recursos utilizados pelo produtor textual para negociar com seu interlocutor os sentidos que pretende veicular.
Em termos de Design, selecionamos os indicadores responsáveis pelo exame da linguagem visual, discutindo os parâmetros de produção gráfica, confrontando as indicações do PNLD 2007 e os projetos gráficos apresentados nos livros de 1ª a 4ª séries das editoras que tiveram livros contemplados pelo Programa. Para tanto, submetemos cada um dos 27 títulos de LDR a uma “Matriz de análise de projetos gráficos de livros didáticos” com o intuito de traçar um perfil dos recursos gráficos utilizados e de identificar as contribuições do planejamento visual na elaboração dos livros didáticos.
Esta ferramenta orientou a investigação dos recursos visuais presentes nos livros didáticos para capturar as relações destes com os processos de ensino-aprendizagem, a partir da forma e disposição dos elementos na diagramação das páginas, das técnicas de composição utilizadas; das tonalidades, matizes e funções das cores; dos tipos e funções das imagens; e dos aspectos tipográficos, além do nome da obra, volume, série/ano a que se destina, formato, número de páginas, encadernação, número de cores de impressão e tipo de papel utilizado.
No que diz respeito às questões pedagógicas e historiográficas, selecionamos indicadores para o exame das soluções e desvios mais recorrentes em termos de paradigmas da Psicologia da aprendizagem e do ensino, da Teoria da História e da História da historiografia recente. Em termos pedagógicos, examinamos a escolha de capacidades, o entendimento do fenômeno aprendizagem e seus condicionantes no ensino de História implícitos nas estratégias de elaboração das atividades destinadas aos alunos. Em termos historiográficos, analisamos as formas de recortar o tempo, a eleição de personagens e cenários, a seleção e uso de conceitos meta-históricos e substantivos e o tratamento concedido às temáticas indígenas e de História da América.[7]
Sobre as formas de apresentação das sociedades indígenas e da História da América, examinamos textos escritos e imagéticos, buscando responder: que representações são construídas e dadas a ler às crianças dos anos iniciais? O que explica a raridade ou a recorrência de determinadas imagens?
O texto final ganhou a seguinte estrutura: Parte I - elementos estruturantes da escrita da história, atividades destinadas aos alunos nos LDR, estudo sobre estratégias textual-discursivas, soluções linguísticas dos produtores de LDR, matriz de análise de projeto gráfico, soluções gráficas dos produtores de LDR; Parte II - abordagem da História da experiência indígena e da História da América nos LDR; Parte III – considerações finais.
Resta, por fim, agradecer aos principais atores deste trabalho. Aos alunos de iniciação científica, graduandos de História e de Pedagogia, que aceitaram o desafio de ir além das suas áreas de formação para ampliar a compreensão sobre esse objeto multifacetado que é o livro didático: Ana Maria Garcia Moura, Analice Marinho Santos, Bárbara de Barros Olim, Carla Karinne Santana de Oliveira, Kléber Luiz Gavião Machado de Souza, Kléber Rodrigues Santos e Max Willes de Almeida Azevedo. É também necessário agradecer à Universidade Federal do Rio Grande do Norte que, antes de inaugurar o Memorial do Livro Didático – sob a direção da Profa. Maria Margarida Dias de Oliveira –, abriu o seu acervo à consulta dos pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe. Por fim, agradecer aos professores Christianne de Menezes Gally e Hermeson Alves de Menezes, ambos responsáveis pela construção de modelos analíticos, respectivamente de linguística textual e de projeto gráfico.

Sumário
Apresentação 7
Parte I
  • As histórias que contam os livros didáticos de História regional 25
  • A fixação dos conteúdos históricos 55
  • As estratégias textual-discursivas de construção de sentido nos livros didáticos de História 75
  • Escrevendo a História regional para as crianças 97
  • Matriz de análise para projetos gráficos de livros didáticos 123
  • O projeto gráfico nos livros didáticos de História regional 137
Parte II
  • História da América nos livros didáticos de História regional 163
  • Temáticas indígenas nos livros didáticos de História regional 195
Considerações finais 241


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Itamar Freitas <itamarfo@gmail.com>

Fontes das imagens:
Capa de Historiografia regional para as séries iniciais da escolarização básica no Brasil. Autoria de Hermeson Alves de Menezes.
Detalhe da capa de Gente de São Paulo, São Paulo da gente. CABOCLO, Eliana, BARCELOS, Irene. Gente de São Paulo, São Paulo da gente: História. 2 ed. São Paulo: Editora do Brasil, 2005.
Detalhe da capa de Santa Catarina: interagindo com a História. SOURIENT, L., RUDEK, R., CAMARGO, R. Santa Catariana: interagindo com a História. São Paulo: Editora do Brasil, 2003.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Apresentação. In: História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático em questão (2006/2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 7-22.

Notas
[1] Em recente estudo sobre livros didáticos regionais, Flávia Caimi chegou a conclusões idênticas a respeito de 9 nove livros do Rio Grande do Sul, produzidos nas décadas de 1990 e 2000: abordagens intercaladas de Geografia física e História factual, capítulo específico de cultura gaúcha, cronologia linear institucionalizada (primeiros habitantes, missões jesuíticas, colonização açoriana, imigração européia, Revolução Farroupilha, Rio Grande do Sul na época republicana, cultura e símbolos do “nosso estado”), imagens elogiosas da província e de alguns de seus homens e tipos, visão ufanista da história regional. (Caimi, 2007, p. 177).
[2] PNLD 2004 – Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo; PNLD 2007 – Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina.
[3] Cabe aqui, mais uma vez, citar as conclusões de Flávia Caimi, especificamente, sobre o Rio Grande do Sul: “(...) verifica-se um distanciamento entre a produção acadêmica de história regional e os conteúdos escolares veiculados nos programas e nos livros didáticos (...) ao que nos parece, dentre as principais razões, estão: a) a excessiva ingerência do movimento tradicionalista gaúcho na escrita e na disseminação de uma certa visão da História e da cultura do estado, apoiada no ufanismo, na ideologia e no orgulho de ser gaúcho; b) a acolhedora recepção que as escolas fazem a essa visão histórico-cultural, reproduzindo-a em festividades, gincanas, invernadas artísticas, café-de-chaleira etc.; c) a pouca preocupação dos professores universitários de História com a produção de livros didáticos regionais e com a formação de professores para atuar qualificadamente nas séries iniciais do ensino fundamental; d) a insuficiente frequência de conteúdos da História regional na organização curricular das escolas, os quais são relegados, na maior parte dos casos, a apenas uma série no Ensino Fundamental, sendo raramente contemplados no Ensino Médio; e) a tendência existente no âmbito acadêmico de produzir conhecimentos para consumo e deleite entre os próprios pares, descuidando-se da sua divulgação e recepção no seio da sociedade”. (Caimi, 2007, p. 178).
[4] Segue o restante do texto, onde a autora anuncia a relevância dos estudos sobre o livro didático de História: “Mas, logo que comecei a refletir sobre o tema proposto, percebi o privilégio único de debater sobre o verdadeiro ofício do historiador. Ou seja, pensar nos conteúdos teórico-metodológicos do nosso cotidiano acadêmico-universitário é muito menos desafiador do que pensar nesses conteúdos no âmbito da escola e dos instrumentos envolvidos no processo ensino-aprendizagem”. (Wasserman, 2000, p. 249).
[5] Os alunos de graduação foram auxiliados pelo Programa de Auxílio ao Recém-Doutor (2007), Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal de Sergipe, com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (2007/2008) e da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe - FAPITEC (2008).
[6] É preciso esclarecer que a pesquisa não fez descrição/avaliação de títulos em particular ou de grupos de títulos por autoria ou editora. Parte deste trabalho é da competência dos avaliadores do PNLD e está disponível no Guia do livro didático do PNLD 2007. O projeto ocupa-se da descrição do conjunto das obras para a construção de bases referenciais que, num futuro próximo, poderão indicar tendências no perfil do gênero.
[7] O projeto previa a análise historiográfica a partir dos elementos constituintes da narrativa. A desistência de alguns alunos e os ajustes nos projetos de iniciação científica impediram a concretização das metas iniciais, ficando a análise restrita ao recorte do tempo, tipificação dos sujeitos históricos e extração dos conteúdos conceituais. O mesmo ocorreu em relação à análise da orientação pedagógica dos LDR. Não examinamos os manuais do professor, como estava previsto na primeira versão do projeto de pesquisa.

Referências
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BEZERRA, Holien Gonçalves. Impactos do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) na oferta de livros didáticos. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DO ENSINO DE HISTÓRIA, 2004. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH/UERJ, 2004. 1 CD-ROM.
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domingo, 23 de maio de 2004

Para a história de Itabaianinha

E a história de Itabaianinha? Como foi contada no livro lançado na semana passada? Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Itabaianinha (Editora da UFS, 2003) é anunciado como livro de memórias e de crônicas – as memórias de José Carlos de Oliveira (1919/...), oficial do registro civil aposentado do Tribunal de Justiça do Estado. Seu filho, Gilmário Macedo de Oliveira, organizador e co-autor, explica bem a situação limite da escritura: “avisado do crepúsculo que se aproximava, ele reuniu suas forças, suas últimas energias e, com dedicação e zelo, entregou-se à tarefa de ser um dos cronistas da sua terra natal.”
Repostos o gênero e as circunstâncias, cabem ainda as perguntas: a proximidade da morte modificaria a estrutura da narrativa? Que tipo de crônica fora escrita sobre Itabaianinha? Trata-se, na verdade, de um clássico relato de história local ao modo da primeira geração do IHGS.
O livro é aberto com curtas relações de filhos ilustres, intendentes e prefeitos, juízes e promotores, vigários e senhores de engenho, ou seja, gente que inscreveu suas memórias na política e na economia do lugar, deixando marcas – umas trágicas, outras cômicas – nas lembranças dos “sem nome”. Mas, o seu José Carlos era um “sem nome”? Certamente que não.
As curtas relações que tratam dos “com nomes” situam-se entre a apresentação e o prólogo. É preciso registrar que, independentemente do plano original dos manuscritos, elas não parecem contribuir para a harmonia do livro que ganha a forma narrativa e não tópica, a partir da página 33. Além disso, não entendi o porquê do título: “Freguesia”, já que as experiências relatadas extrapolam os limites dessa jurisdição eclesiástica.
Seguem-se os capítulos sobre religião, política, festas populares, e sobre o trabalho. O período mais “lembrado” remete-nos às décadas de 1920 a 1940.  Há perfis biográficos de personalidades dos três poderes, de professores, jornalistas, artistas e religiosos; relatos sobre fatos inusitados, como a chegada dos trens, dos automóveis e sobre a seca de 1932.
Grande parte do livro é também ocupada pela descrição de edifícios públicos e privados, de ruas praças e becos. Em quaisquer desses segmentos, além da descrição – às vezes, rigorosa e adjetivada em excesso –, há freqüentemente a inserção de saborosos contos [a parte “inventada”?], dos quais destaco o episódio em que o funcionário público Antônio Pinto de Abreu fraudou os boletins meteorológicos, chamando a atenção dos técnicos da SUDENE para “o fenômeno do micro-clima estável” de Itabaianinha.

Algumas informações desse livro me chamam a atenção pela regularidade com que estão aparecendo nas histórias locais recém publicadas: a idéia de que o mundo se encerra nas cercas de cada cidade; a partidarização (em dois cordões) de instituições culturais – filarmônicas, clubes carnavalescos, procissões; e a idéia de progresso e decadência baseada na fortuna do comércio – os algozes de Itabaianinha são a BR 101 e a cidade de Umbaúba.
Outros dados aguçam a curiosidade pelas luzes que lançam sobre a história de Sergipe (síntese): o trânsito de mão-de-obra entre Itabuna/Ilhéus e Itabaianinha, a importação de práticas carnavalescas do Rio de Janeiro – sem passar por Aracaju –, e a “invasão da cidade pelos fanáticos do ‘Céu das Carnaíbas’ são exemplos destacados. Deste fenômeno messiânico, alguns pesquisadores da UFS têm buscado pistas nos arquivos, sem resultados alentadores. No livro existe página e meia de história.
Mas, há também aquela informação sutil que provoca uma dúvida insuportável: o relato sobre casas, homens, ruas, trabalho, sobre a vida enfim, transmite ao leitor a idéia de tranqüilidade que beira a monotonia. Tem-se a impressão de que o tempo passa lentamente, apesar das rusgas eleitorais, das esporádicas aparições do circo e do cinema. O tempo só parece ser quebrado com a chegada da ferrovia. A minha dúvida é se as pessoas de Itabaianinha, nos primeiros anos do século passado, assim percebiam o movimento das suas vidas, um cotidiano “circular”, “miúdo” e “triste” ou se esse sentido costuma ser construído pelos cronistas/historiadores que não conseguem despir-se do “bem estar” da nossa civilização.
Também por conta dessa dúvida, a escritura desse livro fortaleceu ainda mais os meus juízos quanto às dificuldades de se escrever uma história do município ou uma história da cidade. Sem medo de exagerar, é tão difícil fazer história local quanto ensaiar uma história do homem sobre a terra – a história geral, antiga história universal. Vê-se como os autores esbarram com problemas de seleção dos agentes históricos – as autoridades, o vulgo, a classe –, de períodos a enfocar, de dimensão da experiência – o religioso, o político etc. – e de ordenamento dos textos a expor – a sincronia ou a diacronia? –, não obstante o esclarecimento de que o(s) autor(es) prefere(m) seguir os “fios da memória” e não os clássicos modelos corográficos.
Mas, a dificuldade não indica o limite entre o autodidata – o memorialista – e o historiador por formação acadêmica – a iniciativa da Editora da UFS é meritória. O grande problema é mesmo o da impossibilidade de apreender a totalidade, de abranger o máximo de fatos e dimensões da experiência dos homens em determinada comunidade, num golpe de vista, numa centena de páginas. Neste e em outros livros, o real, sempre fascinante, sempre fugidio (Cf. Veyne, 198.), acaba representado, não raramente, como “as contas do colar histórico” (Cf. p. 40-52) ou como inventário de lembranças – peça por peça, desconexas e com inoportunas repetições.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Para a história de Itabaianinha. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 23 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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domingo, 9 de maio de 2004

“Os anos dourados da Urbis Propriaensis"

Abençoada por Deus e bonita por natureza. Essa foi a sentença cunhada pelo ouvidor Antonio Pereira de Magalhães de Passos (1801) para convencer o governador da Bahia sobre a conveniência de a pequena povoação “Propriha” – nome de um riacho próximo – vir a ser ereta em vila. Boa situação geográfica – o relevo, o rio São Francisco –, bons ares (?) e bom clima fizeram-no vaticinar: é “a melhor para o comércio, que não decairá, porque parece que Deus Onipotente a destinou para fazer aos nacionais felizes, e ao Estado aumento”.
A profecia foi repetida pelo “memorialista do futuro”, D. Marcos Antônio de Souza em 1808 e transformada em realidade pelos ilustres proprieaenses, ao longo do século XIX e início do século XIX, quando o rio – a ferrovia, depois – e os frutos da terra, notadamente o algodão e o arroz, determinavam a prosperidade econômica da região.
Desde então, na historiografia, registrou-se a experiência dessa povoação/vila/cidade/comarca/município como uma linha ascendente, com ápice na primeira metade do século passado e brusca decadência a partir do final dos anos 1960.
A decadência, provavelmente, já fora notada pelo médico João Rodrigues da Costa Dória (1960), que a visitou em 1959, depois de meio século ausente. O cemitério e a praça Rodrigues Dória, em abandono. O Flor e Elisa, “maior e mais luxuoso hotel das margens do São Francisco”, deixando a desejar quanto à comodidade dos quartos e ao estado de janelas e banheiros. O rio São Francisco mais estreito, o porto entulhado de areia e terra – fatos que não o impediram de comentar: o lugar havia “progredido muito nestes últimos tempos” (nos 50 anos em que esteve fora?).
A prosperidade, enfim, encontrou o seu narrador na figura de outro Marcos, o Melo (1945/...), economista, advogado e administrador com passagens pelo primeiro escalão do governo do Estado. Não haveria melhor currículo para descrever o fausto da ribeirinha. Mas, propriamente falando, seriam os “anos dourados” da cidade ou da vida de seu narrador?
Ora, isso tem pouca importância para o escasso leitor das coisas sergipanas. Importa é saber que o livro Própria/mente falando, lançado no último abril, é, talvez, o maior inventário cultural sobre a história de uma cidade, produzido nos últimos anos. Os vinte e dois capítulos varrem a vida de Própria, da segunda metade dos anos 1940 ao início dos anos 1960, registrando as curiosidades e os grandes fatos relativos à centenas de pessoas que habitaram o imaginário da criança e do jovem Marcos Melo.
Lá estão os agentes – professores, professoras, boêmios, políticos, músicos, literatos, desportistas, familiares, padre, sargento do Exército; as instituições – Igreja, imprensa, Tiro de Guerra, partidos políticos; a descrição do traçado e da infra-estrutura da cidade. Também se registram os costumes privados – um domingo em família – e os costumes públicos – a missa, a procissão, a dança, a bebida, o cinema, o circo, a música veiculada nos auto-falantes (traços característicos de uma família de “classe média”).
A memória inicial é a do jovem propriaense, mas o filtro que atualiza as imagens é o do administrador e, mais ainda, do “jazzista” viajante. Os textos são atravessados por citações/comparações de cenas propriaenses com os clássicos do cinema e da música norte-americana, dando margem a algumas críticas sobre hábitos sergipenses do século XXI. No conjunto, não chega a ser saudosista. Entretanto, vence o patriota algumas vezes – a mais bonita, a mais alegre, a mais quente de Sergipe etc. São as marcas da caneta nativista e o veio autobiográfico do relato. Nesse sentido – no traço memorialístico stricto sensu –, o tipo social sintetizado no “incrível Rubens” (pena que não fosse propriaense) e o não menos incrível “Doutor Faninho” foram os meus capítulos preferidos.
Reconheço, porém, que nem tudo são memórias, apesar de o Marcos Melo anunciar-se como a principal fonte de informações do Propria/mente falando. Há trechos dissertados onde se ensaia alguma explicação sobre a decadência da cidade. Há elementos tributários do discurso histórico, pois se tem conhecimento dos antecedentes e dos conseqüentes dos anos dourados. Avalia-se e se atribui valores a determinados fatos, fazendo uso de alguma teoria, não obstante o aparente descompromisso acadêmico/literário. Na verdade, o livro não é nem memória, nem história e está dois passos adiante da crônica. O texto sobre a fantástica cosmogonia do visionário Mariú (1914), que escreveu Emblema do mar luminoso e Denoksuá, a síntese sobre “política e políticos” e a descrição das atividades produtivas do município dão mostras desse outro lado (híbrido) da escritura.
A importância da obra já foi bem assinalada pelo prefaciador. Escreve Luiz Eduardo de Magalhães que a “coletânea” proporciona prazer na leitura, conserva a experiência de pessoas-chave na vida de pequenas comunidades e fortalece a auto-estima do propriaense. Mas, o livro é também um detalhado repositório de dados sobre a cultura de uma cidade não circunscrita à esfera de influência de Aracaju. Isso alarga as possibilidades de estudos sobre outras cidades e até mesmo sobre as futuras sínteses de história de Sergipe.
Resta apenas lamentar que o Marcos Melo não se tenha “aposentado completamente” para – com a experiência de administrador dos negócios do Estado – ensaiar uma história de Própria, exumando esse tão malfadado período de decadência do lugar. Mas, será que não encontraremos nesse novo período um outro tempo dourado para a geração nascida a partir dos anos 1960? Esperemos a história.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os anos dourados da Urbis Propriaensis. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 09 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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domingo, 2 de maio de 2004

Um resumo da história de Sergipe

Na edição nº 68, (18-24 abr. 2004), demonstrei algumas estratégias de transposição da erudita História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891) para o livro didático do mesmo nome, elaborado pelo professor Laudelino Freire (1898). É bom que sejam relevados os truncamentos da transposição e os poucos avanços detectados em termos pedagógicos. Na cidade bandeirante, a introdução da história local nas escolas primárias também não contou com texto exemplar, adequado às possibilidades cognitivas ou, como se dizia no final do século XIX, ajustado ao “interesse da infância”.
As narrativas didáticas destinadas ao “ensino da mocidade”, mocidade que poderia variar desde os 7 aos 16 anos, produzidas por José Joaquim Machado de Oliveira (Quadros históricos da província de São Paulo) e pelo republicano histórico Américo Brasiliense (Noções de história pátria) possuíam estrutura  de frase e vocabulário eruditos. O texto deste último não passava da transcrição integral de conferências proferidas para um público nada infantil em Campinas, logo veiculadas na Gazeta local e, na seqüência, distribuídas nas escolas públicas em formato livro.
Desconheço as tentativas de emendar a obra dos paulistas. Mas, no caso de Laudelino Freire – futuro organizador da Revista Didática (1902/1906) – houve outra oportunidade de escrever um resumo da história de Sergipe para o curso primário, dessa vez, incerta num livro escolar de Corografia.
Corografia era a nomenclatura de uma disciplina cujos conteúdos versavam sobre o conhecimento do espaço de uma determinada região ou localidade. Quadro Corográfico de Sergipe (1898) foi o nome do livro de Laudelino, publicado um ano depois da Corografia do Estado de Sergipe do infortunado Silva Lisboa (Cf. A Semana, 7-13 set. 2003).
No Quadro, o “resumo” da História de Sergipe (1898) foi transformado em “resenha histórica”. Um novo texto foi produzido sob indiciário título de “Notícia histórica” contemplando todas as adaptações que o formato editorial requereria. Ficou 75% mais curto e aqui é interessante registrar o procedimento de Laudelino para compor essa nova síntese.
A periodização foi mantida – tempos colonial, imperial e republicano – e a natureza dos fatos também – conquista, invasões, guerras, posse dos governantes. O que fez com que a narrativa fosse reduzida tão drasticamente foram as omissões de grandes blocos. Ele excluiu os detalhes sobre a catequese, sobre as guerras – os efetivos, as estratégias de combate, o sofrimento dos fugitivos –, os fatos destacados na maioria das administrações, os fatos exorbitantes da história política – a presença da cólera no Estado –, excluiu seus comentários sobre a direção tomada pela história local – o fracasso da ação jesuítica – e o julgamento sobre algumas ações administrativas – a mudança da capital, o desapego dos sergipanos à causa emancipacionista defendida por Carlos Burlamaque.
O texto da História teve suprimido os títulos e subtítulos, capítulos foram fundidos e as listas de governantes e parlamentares migraram das notas de pé de página para um bloco no final da “resenha”. Algumas palavras estrategicamente postadas no curso do texto anterior – nem sempre importando em melhor solução. Laudelino condensou e mudou a ordem de parágrafos. Corrigiu, fez justiça com o historiador Barleus, não citado na História de Sergipe e também deve ter deslizado em alguma informação – no Quadro corográfico o número de cativos em 1590 é de apenas 1.000, enquanto que na História vem grafado 4.000 (erro tipográfico?).
Estava agora a história de Sergipe posicionada na Corografia de Sergipe, ou seja, na segunda parte do livro, intitulada “Descrição política de Sergipe”, após a “Descrição física de Sergipe” – limites, nosografia, orografia, hidrografia, limenegrafia, portos, barras, faróis e divisão civil, judicial e eclesiástica do Estado – e à frente das sinopses de todas as suas comarcas e municípios. Sob o ponto de vista da história a ser ensinada,, a disposição do Quadro é bem mais rica do que a gravada na História de Sergipe. No Quadro, em que pesem os objetivos da Corografia – os fatos geográficos – estão contempladas a história geral e a história local.
A transposição da História de Sergipe para o Quadro corográfico fez recrudescer o caráter narrativo da primeira obra. Com os cortes efetuados, a história transformou-se ainda mais numa seqüência linear de eventos postos em relação de causa e efeito – o antecedente determina o conseqüente –, eventos que, por sua vez, guardavam estreitas filiações com a história do nascente Estado republicano.
Contada dessa forma – conquista e colonização portuguesas, expulsão dos holandeses, redução à comarca da Bahia, emancipação política, transferência da capital, administração republicana – , pelo menos três elementos constituintes do mito fundador de Sergipe seriam renovados entre professores e escolares: a idéia de que estamos fadados à civilização dos costumes, por obra e graça do povo português; a presença da violência como traço marcante da história local, caráter traduzível até mesmo nas lutas partidárias do final do século XIX; e a eleição do nosso “outro”, do nosso diferente, do nosso algoz centrada na Bahia.
Também contada dessa forma, nos textos de Laudelino Freire, a história de Sergipe faria coincidir dois modos operadores do final do século XIX, o do ofício do historiador e o do ofício do professor de história. Para o primeiro, majoritariamente, escrever história era narrar, encadear ações destacadas na experiência política, de preferência, num texto dito a um só fôlego. Para o professor, segundo a pedagogia hegemônica, ensinar história seria uma tarefa mais produtiva se os fatos fossem dispostos em ordem cronológica – o antecedente explicando o conseqüente – de forma a que a memória fosse adequadamente alimentada e treinada, podendo assim conservar as principais informações que o aluno precisaria para situar-se no Estado e na vida.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Um resumo da história de Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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domingo, 25 de abril de 2004

A História de Sergipe na escola republicana

O lagartense Laudelino de Oliveira Freire (1873/1937) já era professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro há cinco anos, quando resolveu publicar uma História de Sergipe. Laudelino também estava enfronhado com o que havia de mais “novo” em termos de pesquisa geográfica (geológica) e histórica no Brasil. Era amigo do Manoel dos Passos de Oliveira Teles – tradutor de John Casper Branner – e estava fisicamente próximo de Capistrano de Abreu e João Ribeiro, sem contar a amizade do irmão mais velho – Felisbelo Freire – que poderia ser convocado em caso de dúvida capital. Apesar disso, seria sensato supor que o professor Laudelino transportaria todo o cacife para a elaboração da sua História de Sergipe (1898)? Que formato ganhou esse primeiro livro didático de história local?
História de Sergipe era destinada “à instrução primária da juventude sergipana”. Provavelmente, pelo programa de ensino, serviria como uma introdução aos conteúdos de história do Brasil. Constituía-se, como indica a “advertência”, num “pequeno resumo”, fundado “especialmente” na única obra escrita sobre o assunto – a História de Sergipe” de Felisbelo Freire (1891).
Ocorre que esta última história era obra de erudição. Discorria sobre teoria da história, comentava as recentes conquistas da etnografia e da arqueologia sobre a pré-história americana, fazia longas citações sobre a geologia local em francês, transcrevia manuscritos do século XVI com a grafia original e ensaiava uma monografia sobre a questão de limites entre Sergipe e Bahia.
Pensando nos pequenos leitores, Laudelino foi logo tratando de escoimar o seu livro didático de todo esse instrumental que dava à História do irmão um caráter científico e cientificista, como até hoje atribuímos. O texto ficou bem mais curto. Listas de governantes migraram para os pés de página. As frases em ordem direta, a raridade da paráfrase e da condensação, os parágrafos obedecendo ao tempo cronológico deram um ritmo ligeiro à narrativa.
Esses arranjos fizeram com que a história de Sergipe fosse resumida à seguinte seqüência: conquista do território, colonização, invasão holandesa, reconquista portuguesa, criação da comarca, elevação à capitania, independência, disputas partidárias, mudança da capital, presença da cólera e, por fim, a vida republicana nos períodos ditatorial e constitucional.
Mas, o livro base – o de Felisbelo Freire – tinha outros inconvenientes. Nada dizia sobre o “descobrimento do Brasil” – ocorrido pouco antes do nascedouro da Capitania de Francisco Pereira Coutinho (1534) – e, praticamente, encerrava-se com o evento da mudança da capital (Aracaju, 1855). Para cobrir as lacunas, Laudelino utilizou-se de obras de Capistrano de Abreu (1883), Antônio J. S. Travassos (1875) e de Balthazar Góis (1891). Corrigiu o livro do irmão no que diz respeito às divisões geográficas do território e a descrição da hidrografia, detalhou e expandiu a exposição sobre a fauna e da flora de Sergipe, e estendeu o registro histórico até o ano de 1896.
Tantas mudanças assim poderiam sugerir que um novo livro fora elaborado sob os pontos de vista didático e de informação histórica. E isso, em parte, ocorreu. O problema é que os cortes, enxertos e adaptações não desmontaram os principais pilares edificados por Felisbelo, tais como: a periodização, a idéia de fato histórico e a forma expositiva. No texto de Laudelino Freire, a história de Sergipe permaneceu seccionada pelo critério político – colônia, império, república. Era a evolução do Estado de Sergipe, dentro da evolução do Estado brasileiro que se buscava.
Não obstante a abertura para o exame de um fato social de grande impacto – a epidemia de cólera –, a intriga entre partidos e entre autoridades, a rebelião, a invasão, a fraude eleitoral e os atos de heroísmo representavam bem o que se queria transmitir como fato histórico. A disposição de “acontecimentos notáveis” numa cronologia progressiva, a estratégia de listar os feitos de cada administrador e os poucos sobrevôos interpretativos durante a obra também conservaram os “quadros de ferro” presentes na obra de Felisbelo Freire. No livro de Laudelino, nada de ilustrações, nada de sinopses ou conclusões, nem uma representação espacial do pequeno torrão sergipano – um mapa! Em suma: o “intuitivo” do método de ensino prescrito para o primário local ficou só na intenção.
No Colégio Militar (RJ), pouco antes de a obra vir a público, Laudelino fazia uso da vulgata pedagógica do século XIX – partir do concreto para o abstrato, levar em conta o interesse do aluno –, mantinha a idéia de desenvolvimento das faculdades da criança (inteligentemente orientado pelo professor), defendendo a implantação de uma “cultura lógica e racional para o ensino primário” (cf. Freire, 1895). Mas, daí a transferir esse conjunto de princípios para a elaboração de um moderno livro didático de História eram outros longos passos que esperariam, pelo menos, uma década e meia para florescer na instrução sergipana, pelas mãos de Elias Montalvão (1916).
Por outro lado, é sensato, também, compreender que a opção – ou a falta da opção – de Laudelino Freire estivesse relacionada as suas idéias de ensino de história e de história local e às práticas escolares em vigor. Em tal sentido, o caráter de catecismo cívico atribuído à disciplina e a hegemonia da preleção e da sabatina em sala de aula demarcam bem a utilidade da História de Sergipe na instrução pública, postando-se como um grande óbice às tentativas de mudança no formato do livro didático republicano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A história de Sergipe na escola republicana. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 25 abr. 2004.

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domingo, 18 de abril de 2004

A memória do futuro

O vocábulo “memória”, em língua portuguesa, atravessou o século XIX portando quatro básicos significados: faculdade da alma – potência de conservar informações; monumento – que conserva e evoca a lembrança; a própria lembrança – o lembrado, de que se recorda; e um “modo literário” – a narrativa. No mesmo “século da História”, esse modo literário configurou-se num “gênero” literário stricto sensu, numa dissertação científica ou num relato administrativo. A memória sobre a capitania de Sergipe, sua fundação, população, produção e melhoramentos de que é capaz (1808) – o título é assim mesmo, bem rabelaisiano – encaixa-se perfeitamente nesta última classificação.
O texto do padre Marcos Antônio de Souza (1771/1842) é uma narrativa de cunho administrativo endereçada ao ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Rodrigo de Souza Coutinho, poderoso auxiliar de D. João VI na direção geral da política portuguesa até 1812. Nesse período, flagrante das contradições entre o liberalismo político e o liberalismo econômico, Coutinho concentrava em seus “arquivos” uma farta descrição de terras, gentes e possibilidades de negócios que pudessem beneficiar o Estado e a Coroa desde os anos 1790. Eram trabalhos descritivos, com dados políticos, eclesiásticos, econômicos, etnográficos, geográficos que cobriam grandes áreas desta América Portuguesa.
A Memória sobre a Capitania carrega as marcas desse tempo e desse modo de escrita. Estrutura-se sobre um certo questionário, informando a situação dos templos e conventos, o número de habitantes, os grupos étnicos, os tipos de solo, o estado das vias de comunicação, as produções agrícola e industrial, a força de trabalho, a relação senhor-escravo e, de forma menos freqüente, o estado de letramento dos moradores desta terra. A primeira atitude é, portanto, diagnosticar o estado da população e da produção local, como indica o próprio título.
O resultado deste trabalho é o que chama imediatamente a atenção dos leitores. Na Memória estão os registros, por exemplo, dos modos de se fabricar a farinha, de produzir o açúcar, de plantar a cana e de extrair o sal. Ela conserva em papel e tinta alguns traços do convívio social nas vilas de Sergipe na virada do século XVIII para o século XIX e elege atributos para os moradores locais, já reconhecidos por essa autoridade realenga como “sergipenses”.
Certamente, essa identidade é ainda bastante mitigada. A capitania de Sergipe era uma invenção político-administrativa preenchida por sete vilas, quatro missões de índios, onze freguesias e uma cidade – São Cristóvão ou Cidade de Serzipe. Os atributos anunciados, por sua vez, variaram – muitos coincidiram – de vila para vila, ao sabor da composição étnica, da prodigalidade da natureza ou da maior e menor presença da burocracia na povoação. Os sergipenses eram ativos, afáveis, espirituosos, inclinados à vida conjugal, ao trabalho e, também, violentos, indolentes e incivilizados.
Mas a Memória não pára no diagnóstico. Indicar “os melhoramentos de que é capaz” é a sua grande finalidade. Chama a atenção a freqüência das construções no pretérito imperfeito e no futuro do pretérito. O rosário de sugestões não é pequeno: os sergipenses “podiam” fabricar queijos e manteigas, cultivar trigo, canela, pimenta da Índia, café e cacau. Os Conselhos Municipais “podiam” financiar a educação dos habitantes e até a formação de médicos para agirem na localidade. O Estado deveria modificar a perversa forma de arrecadação, transformar capelas em paróquias, transferir sedes da administração da justiça e da igreja, banir os facínoras, estimular o uso racional do solo, das florestas, promover plantios irrigados, “pastos artificiais”, abrir canais e melhorar barras.
Esse conjunto de medidas tinha um fito e uma âncora. O objetivo era progresso da pátria (Sergipe?), da nação [portuguesa], da sociedade, do Estado e da Coroa portuguesa. Planejava-se ampliar a riqueza, que melhoraria, inclusive, a vida dos pobres desta Capitania. A base orientadora dessa política econômica foi buscada em A. Smith e J. B. Say, fartamente citados como arrimo das sugestões. A experiência das nações civilizadas, notadamente a Inglaterra, transformou-se no grande exemplo a ser seguido.
Nas entrelinhas da Memória está o diálogo com os “corifeus do liberalismo” e com os burocratas que supostamente se afinam com a doutrina. Verifica-se um sistemático exercício de observação da economia local sob “os óculos” desses autores. Em certo momento – quando anuncia o bom tratamento concedido aos escravos pelos senhores de Sergipe –, cheguei a questionar se o Marco Antônio de Souza não enxergou mais do que poderia ter visto, ou seja, não transpôs para o papel como descrição do real o que assimilara entusiasticamente das leituras de Smith. Essa é uma questão a ser resolvida futuramente.
Importa concluir que o movimento do diagnóstico para as sugestões de melhoramento da produção operado na escrita da Memória não basta para considerá-la como elemento fundador da escrita da história sobre Sergipe, em Sergipe. A volta ao passado é um instrumento escasso nesse texto. A projeção do futuro da Capitania de Sergipe – via Estado português – é construída sem substantiva elaboração/reelaboração do passado local. Penso que o Marco Antônio de Souza faz mais política que história – história já cultivada entre os seus pares na Bahia, o que não anula o seu grande valor do texto como fonte para a história de Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A memória do futuro. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 18 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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domingo, 11 de abril de 2004

O hiper texto de Fernando Porto

Há quase cinqüenta anos, “A cidade do Aracaju” era tomada por Fernando Porto como um artefato mediado pelo relevo do lugar, pelo projeto de Sebastião Basílio Pirro e pelas obras iniciais de urbanização. O interesse geo-histórico do engenheiro-escritor ligava-se ao reconhecimento de que a cidade necessitava de um “plano regulador” do seu crescimento, serviço para o qual o saber de Clio teria muito a contribuir. Hoje, às vésperas do 150o aniversário, Aracaju possui um Plano Diretor, o engenheiro da Prefeitura já está aposentado e a historiografia sobre a cidade vai se reproduzindo em escala progressiva, o que me força a questionar: que interesses teriam movido Fernando Porto nesse novo livro, lançado em 2003?
O título diz muito: “Alguns nomes antigos do Aracaju” (Funcaju, 2003). A preocupação anunciada é com a memória, ou melhor, com o apagamento da memória. Por que o aracajuano esquece tão rapidamente os nomes dos lugares e logradouros de sua cidade? Fernando Porto responde: por causa da ação desrespeitosa do Estado (trocando nomes de apelo popular por homenagens circunstanciais a personalidades de valor discutível) e por conta da mobilidade populacional (as pessoas mudam-se dos bairros e os nomes deixam de ser pronunciados).
Efetivamente, é isso que ele faz. As duzentas e cinco páginas do livro condensam informações valiosas sobre o sentido etimológico, a origem e as modificações dos nomes de ruas, becos, travessas, avenidas, praças, bairros e recantos de Aracaju. Há também descrições de edifícios e histórias que envolvem os moradores desses lugares, num período que abrange desde o 1855 até a década de 1990.
Mas, eu arriscaria dizer que essa obra oferece muito mais que um inventário de nomes e seus significados. Fernando Porto não quis fazer dicionário, pois resultaria em livro “árido, monótono, de restrita curiosidade” (p. 11). – Também não quis escrever suas memórias nem contar, monograficamente, a história da arquitetura em Aracaju, nem a crítica dos costumes contemporâneos, nem a história de tipos populares ou da subserviência da política local. Preferiu “compilar” o “grande número de anotações” autógrafas sobre os locais averbetados “a fim de tornar o relato mais atraente” (p. 11). – Preferiu enredar os retalhos de uma vida de estudante em Aracaju, de engenheiro da PMA, de professor de geografia, de leitor de história da arte, etc.. O resultado foi um texto, melhor dizendo, um hiper-texto onde os títulos dos verbetes são desprezíveis diante da variedade de temas e conexões oferecidas para a leitura.
No livro só faltam os sons. Fotografias, são mais de quarenta, flagrando, por exemplo, o ambiente da travessa Deusdédite Fontes nos anos 1920 (p. 15), o prédio da Câmara de Vereadores, no final do século XIX (p. 28), o Alto de Areia e o morro do Bomfim, em 1923 e a “feira da colônia”, situada em frente à Casa Fonseca, há quase cem anos.
É pensando dessa forma que se pode compreender o desequilíbrio de tamanhos, ritmos e tempos entre os verbetes. Onde abundaram as fontes e as notas, rendeu a escritura. “Rua do Angelim” (p. 19-56) dá mostras desse formato hiper-textual. Inicia-se com dados sobre a abertura da via, o significado do nome e o primeiro empreendedor – Adolfo Rollemberg. Seguem-se a chegada do engenheiro/arquiteto Altenesch em Aracaju e as mudanças introduzidas na paisagem arquitetônica da cidade pelos artistas italianos e alemães. O leitor até esquece de que se está a tratar da “rua do Angelim”.
Nos demais verbetes, “as anotações” empregadas para tornar o relato “mais atraente” vão abrindo frentes de leitura sobre a história da cidade: é o trabalho dos empreendedores – barão de Maruim, Juca Barreto, Mariano Salmeron –, o velho hábito de tomar caldo-de-cana, a introdução de novas práticas de consumo – a macarronada, lâminas de barbear Gillette, o futebol –, o ethos do sergipano – inatamente desorganizado –, o traço dominante da burocracia local – impotente par “cortar os erros em seu nascedouro”.
É assim o hiper-texto de Fernando Porto. Entra-se por uma porta e dá-se de frente com várias outras. A experiência da cidade vai se derramando por entre vários lugares referenciados, saltando as décadas e personagens. A história de Aracaju é sorvida em goles de anúncios de jornal, de requerimentos para a construção de casas, de reminiscências, de diálogos com outros historiadores.
Há, porém, um inconveniente nesse modo de produção. Como os verbetes resultam de síntese, a proveniência das fontes é omitida e o noviço não tem muitos instrumentos para diferenciar o que é tributário à memória de Fernando Porto ou às suas notas bibliográficas e arquivísticas. Sem crítica textual futura, é possível que “alguns nomes antigos do Aracaju” sejam sacralizados por conta da palavra autorizada desse grande aracajuanófilo que é Fernando Porto. E o mais curioso: é bem provável que o seu depoimento, paradoxalmente, acabe soterrando outros “nomes antigos do Aracaju”.
Para encerrar, uma informação que considero muito importante sobre a identidade da capital. No livro de 1945, Fernando Porto apenas supunha a localização do rio Aracaju. Em 2003, ele foi afirmativo: “O rio Aracaju, que deu nome à região, desembocava no rio Sergipe, ao lado da fábrica Sergipe Industrial, daí dirigia o seu curso, inicialmente, para o poente e a certa altura infletia para o noroeste, em direção ao vale do Engenho Velho, nas proximidades do Manoel Preto.” (p. 61). Ainda insisto que o referido rio merece uma placa indicativa nesses próximos meses em que a cidade completará o seu 150o aniversário.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O hiper texto de Fernando Porto. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 4 de abril de 2004

O “Esboço” do Padre Aurélio

Na edição n. 62 (14-20/03/2004), informei sobre rumores da publicação do terceiro volume do “Esboço biográfico de Inácio Barbosa”, escrito pelo Padre santamarense Aurélio Vasconcelos de Almeida (1911/1999). Como dizem os populares, “queimei a língua”. O livro já estava pronto. Foi lançado quarta-feira (18/03/2004), na Biblioteca Clodomir Silva, como parte dos festejos do 149º aniversário de Aracaju.
É bem mais apresentável esse terceiro volume. Capa com foto recriada, imagem do autor, diagramação mais adequada à leitura – fontes com serifa, melhor espaçamento entre linhas etc. Pena que o conteúdo não corresponda ao progresso ocorrido na formatação, comparando-se com os dois volumes precedentes. A obra parece ter perdido o fôlego. Praticamente dois terços do livro são ocupados com transcrições. Autógrafos, somente os dois capítulos iniciais.
No primeiro, Aurélio de Almeida vai até o período cabralino para demonstrar a tradicionalidade da devoção à Maria no Brasil. Inácio Barbosa foi o introdutor oficial da prática em Aracaju, sendo esse mais um ponto positivo na biografia do fundador. E mais: segundo Almeida, Aracaju estava predestinada para receber a proteção da virgem. A “convergência de certos fatos históricos” como os nomes do vapor (Conceição) que trouxe da Corte a aprovação da mudança da capital, do primeiro hospital de caridade e do nosso primeiro cemitério demonstram a “predestinação da cidade mariana”. (Cf. p. 44-45)
No capítulo seguinte, são descritos os esforços dos aracajuanos no sentido de resolver o principal problema da nova cidade: a insalubridade – problemas com a qualidade da água, habitações, atendimento médico, ausência de calçamento e capinagem de ruas e praças, e de drenagem e aterro de lagoas. O Pe. Aurélio se esforça para comprovar que tais questões não eram privilégio de Aracaju e nem de Sergipe. A conclusão é que “a tenacidade heróica dos aracajuanos debelou enfim o mal da terra, a malária, e a cidade prosperou engrandecendo a Província de acordo com as previsões do seu fundador. Cem anos depois de fundada [Aracaju continuava a ser] uma praça regular de comércio.” (Almeida, 2003, p. 75).
Os capítulos restantes apresentam os poetas da cidade – José Maria Gomes de Souza Júnior e Álvares dos Santos –  com suas obras elogiosas e vão reconduzindo o texto na direção do objeto principal que é a vida de Joaquim Inácio Barbosa Filho. Neles, são reunidas as principais homenagens ao fundador de Aracaju e a sua biografia vai se estendendo por anos após a sua morte.
Neste último volume, é obvio, o Pe. Aurélio continua abusando das longas citações diretas. Mas, esse “deixar falar os documentos” põe o historiador em situações curiosas. Ele parece abonar os conceitos e as explicações dos médicos, dos engenheiros do século XIX, sobre a situação sanitária de Aracaju, por exemplo.
O esforço de crítica histórica, levado ao extremo, também provoca situações embaraçosas como aquela em que tenta extrair correspondência entre a “informação documentária” e a poesia da “verve popular”, cobrando “originalidade” de quadrinhas produzidas pelos moradores da antiga São Cristóvão. É um caso de hiper crítica sobre o ato criativo anônimo e coletivo da literatura folclórica. É um excesso de zelo desproporcionado com o “método histórico”, haja vista que a “verve” dos poetas de Aracaju não sofreu o mesmo tratamento e foi relacionada, neste terceiro volume, em capítulo destacado.
Nos capítulos finais, que tratam das homenagens a Barbosa, e no apêndice são transcritos os principais documentos utilizados no preparo da obra. É importante destacar entre essas fontes o raro relato sobre as solenidades de transferência dos restos mortais do fundador, ocorridas em Estância em Aracaju no ano de 1858. (Dele só conheço dois exemplares: um no Arquivo Nacional, e outro no IHGS). As transcrições, todavia, não contemplam apenas o estado do corpo e do caixão, o tipo de “licor desinfetante” derramado sobre os ossos e nem as vestes com as quais o finado defunto fora enterrado. Perfis de Barbosa, informes sobre os primeiros meses da nova cidade, publicados em jornais de Aracaju e do Rio de Janeiro, o projeto de mudança da capital, a repercussão desse fato também são alvos da recolha do Pe. Aurélio.
Entre os documentos trazidos como apêndice, também é forçoso destacar a transcrição das legendas das plantas de Aracaju (1855/1857), elaboradas pelo engenheiro Francisco Pereira da Silva. As plantas foram recuperadas por Fernando Porto e anexadas em seu trabalho “A cidade do Aracaju”. Mas, não se sabia o significado da maioria das letras espalhadas nos originais. Depois da pesquisa do Pe. Aurélio na Biblioteca Nacional, ganham maior inteligibilidade os documentos publicizados por Fernando Porto em 1945.
Com o lançamento desse volume e o encerramento da tríade, fica assim, dada a última palavra sobre o caráter de Inácio Barbosa, os primeiros anos de Aracaju e o salto desenvolvimentista alcançado por Sergipe a partir da mudança da capital. Mas, é preciso notar que alguns temas tocados no livro já encontraram alguns especialistas, tais como: a situação sanitária da cidade (Antônio Samarone), as manifestações teatrais da jovem barbosópolis (Antônio Passos), e a vida religiosa, sobretudo, a instituição da Diocese de Aracaju (Péricles Andrade).
Resta, agora, esperar não apenas pelo aprofundamento dos registros do Padre Aurélio, mas também aguardar um pesquisador que se habilite a estudar o conjunto da sua obra que tem como eixos dominantes as experiências religiosa e política de Aracaju e de Sergipe no século XIX.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O esboço do Padre Aurélio. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 04 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.