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sábado, 8 de agosto de 2009

As histórias de Santiago e do seu Anuário

Detalhe da procissão do Senhor dos Passos em São Cristóvão-SE. Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 1.
Um personagem
Serafim Santiago[1] é o nome de um historiador desconhecido entre nós. O graduando de História da UFS, Maurício dos Santos Reis, bem que tentou biografar a personagem no ano de 2006, depois de conhecer o Anuário Cristovense. Fez buscas no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE e no Arquivo Público do Estado de Sergipe - APES, inquiriu funcionários da Prefeitura de São Cristóvão, visitou o Cemitério de Santo Antônio em São Cristóvão, consultou a documentação do Cartório do 3º ofício, sem conseguir vestígios significativos. Melhor sorte teve com os depoimentos de alguns intelectuais sergipanos que consultaram a sua obra: Jackson da Silva Lima, Luiz Antônio Barreto e Beatriz Góis Dantas.
De Jackson da Silva Lima, historiador que comentou e transcreveu trechos do Anuário no antológico livro Os estudos antropológicos, etnográficos e folclóricos em Sergipe (1984), Maurício certificou-se da origem dos manuscritos. Há dois originais: o primeiro, em poder do professor José Cruz, pertence hoje ao acervo do Instituto Cultural Tobias Barreto - ICTB, sob direção de Luiz Antônio Barreto. O segundo está no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe - IHGSE. Tratar-se-ia de uma versão ampliada e revisada do Anuário.
Serafim Santiago (1859/1932)
Foto: ICTB. 
Fonte: Santiago, 2009, p. 11.
Com Luiz Antônio Barreto, Maurício informou-se sobre a trajetória da primeira versão. Chegou ao ICTB como parte do acervo da Biblioteca do Professor José Cruz, adquirida por compra aos familiares desse professor sergipano. No mesmo Instituto, Maurício ainda conseguiu o atestado de óbito de Serafim e uma reprodução ampliada de uma fotografia 3x4 em preto e branco. Soube também da existência de um formulário nos arquivos da Loja Maçônica Cotingüiba que informa a data do nascimento de Santiago: 4 de janeiro de 1859.
Por fim, com Beatriz Góis Dantas, Maurício soube um pouco mais da trajetória do primeiro manuscrito, em poder do professor José Cruz. Talvez tenha conseguido a peça devido às ligações havidas entre a sua esposa e a família de Serafim Santiago. A pesquisadora sergipana também teve acesso ao manuscrito de José Cruz e transcreveu alguns trechos em seu primeiro livro de repercussão nacional – A Taieira em Sergipe (1972).
No segundo semestre de 2006, Maurício Reis concluiu a licenciatura, transformou-se em professor de História para crianças e abandonou o projeto biográfico. Ao final das suas pesquisas, portanto, juntando as informações colhidas junto aos manuscritos custodiados pelo IHGSE, o máximo que nos legou sobre o autor do Anuário foi uma legenda e uma imagem reproduzidas a seguir. Muito pouco para os ávidos perscrutadores da História e da memória sergipanas, porém, um grande esforço desse que foi um dedicado estagiário da “Casa de Sergipe”. Temos certeza de que o trabalho de Maurício será ampliado pelos desdobramentos que esta edição do Anuário deverá provocar.

Um gênero
Quando encontramos os escritos de Serafim Santiago duvidamos que dali pudesse produzir-se alguma peça de relevo, uma resenha talvez. O título da obra – “Anuário Cristovense” – e as nossas pré-noções, evidentemente, foram os grandes responsáveis pela relativa discriminação do trabalho como obra de historiador. Mas, o esforço daquele homem que aos cinqüenta e quatro anos começou a tecer um presente especial para os seus filhos e netos – a própria memória (de si, de sua família e do seu município), obrigou-nos à leitura atenta dos volumosos cadernos manuscritos, recheados de fatos da história política e cultural de São Cristóvão. Presumimos que não tinha orientação acadêmica, além das preleções de retórica e poética do Colégio Atheneu, quem sabe; além dos escritos históricos nativos à disposição no final do século XIX.
Por que deu o título de “Anuário” a sua obra? Quais seriam seus modelos? Quais foram suas escolhas? Enfim, como escrevera a história dos seus e que função creditava aos próprios registros sobre os costumes da cidade mais antiga de Sergipe? Ampliando ainda mais o estoque de questões sugeridas pela leitura dos manuscritos continuamos a nos interrogar: que História se escrevia no final do século XIX? Que escrita se efetivava num tempo em que o saber histórico não se havia metodizado? Que temáticas interessavam ao memorialista como dignas de lembrança aos pósteros?
No século XXI, já é difícil circunscrever o gênero ou o tipo textual preconizado pela Universidade. Há pouco tempo, por exemplo, o historiador Fernando Novais (1990) apontou, pelo menos, quatro motivos e lugares de produção dos quais se originavam diversos gêneros admitidos como História: artigos de vulgarização publicados em jornais e magazines (escrita ligada às demandas do mercado); memórias, autobiografias, biografias (trabalhos produzidos individualmente, sem vinculações institucionais); ensaio, (os escritos institucionais não universitários); e dissertação, tese, e o artigo de periódico especializado (a historiografia universitária propriamente dita). Se assim nos parece – bastante plural –, em pleno século da especialização, que gênero textual poderia ser considerado como História nos tempos de Serafim Santiago? Seria o Anuário uma legítima forma de recortar o tempo, de dar ritmo a vida pretérita, enfim, de organizar a secular e fragmentária experiência cristovense? Seria o Serafim um historiador?
Procissão do Senhor dos Passos. São Cristóvão-SE
Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 17.
Essa série de questões já oferece motivações para meia dezena de monografias. Entretanto, colocadas nesses termos, o que se tem acima é um falso problema. Não devemos procurar o gênero ideal ou o mais significativo que mereça o rótulo de História. Se quisermos descrever as práticas historiadoras anteriores à Universidade é necessário que sejamos bastante flexíveis nos critérios, ou melhor, que inventariemos todas as modalidades que pululam dos jornais, arquivos e bibliotecas e interroguemos os próprios autores sobre a definição, função e os valores atribuídos aos seus próprios escritos.
Foi agindo dessa forma que, recentemente, pudemos estender o limite inicial da produção historiográfica local para além dos anos 1870, como encarava a maioria dos historiadores (cf. Freitas, Bibliografia..., 2006). Ao examinar a literatura sobre Sergipe no século XIX, verificamos que naquele tempo cultivava-se a memória, descrição abreviada, informação, notícia, apontamento, memorial, narração, biografia, autobiografia, corografia, ensaio, uma infinidade de registros, mas nenhuma das obras fora intitulada como “História”. Coragem para encarar o gênero e nomeálo como História – História de síntese, com explicitação da teoria e método – somente observamos em Felisbelo Freire. Publicada a História de Sergipe em 1891, os demais modos de escrita parecem ter sido lançados à penumbra. Os próprios autores passaram, cada vez mais, a classificaremse como cronistas – crônicas é o que escreviam.
Nós mesmos, no final do século XX e início do século XXI, costumamos estabelecer a síntese de Felisbelo Freire como paradigma e parâmetro para a qualificação da historiografia produzida até a fundação da Universidade Federal de Sergipe. Todos conservamos a noção de que os textos dignos de classificação como de “História” são tão raros a partir de Felisbelo Freire que não há grande dificuldade para listar as iniciativas dignas do nome, como foram a defesa do espaço territorial sergipano produzida por Ivo do Prado (1919) e a tese de José Calazans sobre a fundação de Aracaju (1944).
Ocorre que a produção historiográfica sergipana, até a inauguração do curso universitário de História, (obviamente) não se iniciou com Felisbelo Freire e nem se encerrou com Calazans. A pluralidade de gêneros se manteve. Alguns desapareceram, como as descrições e os apontamentos; outros permanecem – a biografia cultivada por muitos e também a rara autobiografia. Houve gêneros recuperados do século XVIII – a prática epistolar de Oliveira Telles (1906). Outros foram inaugurados a partir da segunda década do século XX, como o didático de Elias Montalvão (1914), o Álbum de Clodomir Silva (1920), o Dicionário de Armindo Guaraná (1924), as Efemérides de Epifânio Dória (19...) e o Anuário de Serafim Santiago.
Museu do Ex-Voto. São Cristóvão-SE. 
Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p. 275.
Anuário, carta, efeméride, álbum etc., tudo isso são gêneros textuais, ou seja, são exemplos de “formas verbais de ação social relativamente estáveis” (Marcuschi, 2005, p. 25) que ordenam a comunicação entre as pessoas durante o século XIX e também na primeira metade do século XX. É certo que o gênero textual se materializa em textos que possuem determinadas características linguísticas (narrativos, descritivos, com discurso direto, predominantemente argumentativo – grande marca da tese de Calazans sobre Aracaju, por exemplo). Mas, não é esse o seu principal traço definidor: o gênero é um fenômeno construído socialmente. Ele sobrevive enquanto sua função social se mantém – quando prediz e interpreta a ação humana, quando facilita a comunicação entre as pessoas.
Se hoje estranhamos o Anuário de Serafim Santiago como gênero de escrita da História é porque a sua função comunicativa já se extinguiu. O seu conteúdo substantivo – as coisas que conta, a informação, os acontecimentos –, entretanto, vem ganhando mais valor à medida que o tempo avança, consumindo as fachadas, os ritos, a memória, os homens, enfim, soterrando os indícios sobre o passado cristovense e sergipano. É principalmente por esse motivo que o IHGS tomou a decisão de publicar o manuscrito.
Mas, de que trata em fim esse exemplar do gênero anuário? Trata, sobretudo, de “Calendários e festas na antiga São Cristóvão” e de um “Depoimento sobre o catolicismo popular”, é o que veremos, respectivamente com a antropóloga Beatriz Góis Dantas e o sociólogo Péricles Morais de Andrade nos dois textos que se seguem.

Referências
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; e BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais & ensino. 4 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 19-36.
SANTOS, Maria Francisca Oliveira; QUEIROZ, Marinaide Lima de; MOURA, Tânia Maria M.; e MIGUEL, Geilda de Souza. Os gêneros textuais. In: Gêneros textuais na educação de jovens e adultos. 2 ed. Maceió: FAPEAL, 2004. p.33-40.
NOVAIS, Fernando. A. A universidade e a pesquisa histórica apontamentos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 108-115, jan./abr. 1990.
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. Historiografia sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. p. 23-34.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As histórias de Santiago e do seu Anuário. In: SANTIAGO, Serafim. Anuário Cristovense ou Cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 9-16.

Nota
[1] Serafim Santiago. Memorialista e funcionário público. Filho de José Florêncio e Umbelina Santiago, nasceu em São Cristóvão a 4 de Janeiro de 1859 e faleceu no mesmo município a 01 de janeiro de 1932. Casou-se com Sara em 25 de junho de 1887. Foi pai de 9 filhos, dos quais sete são referenciados no Anuário: João B. de Santiago, Benjamin, Serafim de Santiago Júnior, Francisca Xavier de Santiago, Umbelina Santiago Prudente, Anita, e Pedro. Mudou-se para Aracaju em 29 de junho de 1887, onde exercera o funcionalismo público. Aos 60 anos, começou a escrever memórias sobre sua vivência em São Cristóvão que resultariam no mais rico e inédito depoimento sobre a cultura sergipana do final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, o Anuário Cristovense.

domingo, 12 de setembro de 2004

Retalhos de Severiano Cardoso

Severiano Cardoso (1840/1907) é um daqueles sergipanos do século XIX com os quais se tropeça no “pó dos arquivos” com a promessa de monografia. Os elogios endereçados ao personagem por Armindo Guaraná chamam a atenção: “nenhum outro o excedeu em competência e amor à instrução, nem houve quem melhor soubesse difundir o ensino no espírito dos seus jovens discípulos.” (Guaraná, 1925, p. 259). Idênticos qualificativos lhe são atribuídos por Acrísio Torres, para quem o Severiano, além de “precursor” dos dramas infantis em Sergipe, co-responsabilizou-se pela educação das famílias Resende, Franco, Dantas e Campos. (Torres, 1999, p. 28). Também chama a atenção o juízo de Manoel dos Passos de Oliveira Teles, às vésperas da morte do intelectual estanciano: Severiano Cardoso é “o mais notável poeta” de Sergipe.” (Teles, 1907).
Apesar dos louvores, e por ser, até então, considerado um personagem “menor” – diante de um Felisbelo Freire ou dos outros Cardosos da mesma família, – a gente vai protelando a leitura, até que um dia ele se impõe como objeto de pesquisa. Para mim, Severiano ganhou importância em 2002 quando li, no Almanaque Sergipano (1899, p. 242-256) a sucinta monografia “Lagarto: história e costumes”, um texto singular para a historiografia do final do século XIX em termos de temática e de didaticidade. (Há juízo inédito de Ibarê Dantas sobre esse trabalho, produzido em 2002). 
Depois do encontro no Almanaque, ouvi o comentário de Jorge Carvalho que “flagrou” o Severiano ganhando uma “ajudinha” do irmão Brício Cardoso no aparelho do Estado. Brício determinou o emprego de hinos escolares em Aracaju. e o Severiano foi chamado para criar as peças.
Christianne Gally também encrencou uma vez com o poeta. Ao estudar o Brício Cardoso, a moça das gramáticas começou a suspeitar que as peças teatrais assinadas por Severiano poderiam ter o mano como verdadeiro autor. Não foi à frente com a suspeita, porém.
Este ano, Vera dos Santos trouxe a mais grata surpresa sobre Severiano. Ao estudar A geografia e os seus livros didáticos sobre Sergipe (NPGED/UFS, 2004), anunciou a intenção de Severiano Cardoso de produzir um livro didático sobre a matéria.
Neste mês de agosto, por fim, Severiano Cardoso foi notícia, novamente, quando Aglaé Alencar colocou os estagiários do IHGS em guarda para localizar a literatura teatral desse escritor. Não foi por acaso. Severiano é o patrono da cadeira n. 12, da Academia Sergipana de Letras, ocupada agora pela referida professora, também musicista e dramaturga.
Como afirmei, já conhecia a verve de historiador, pelas páginas do Almanaque Sergipano. Mas, não sabia que o “Lagarto: história e costumes” tratava-se apenas de um fragmento. O texto é parte constituinte de um trabalho didático que teve a escritura, provavelmente, abandonada na última década do século XIX. Um livro de corografia.
Mas, o que vem a ser uma corografia? Os dicionários da língua portuguesa, publicados no século XIX, conservaram o significado de descrição de uma localidade em particular. Morais Silva (1813) referia-se a “reino” ou “região”, Silva Pinto (1832) “de uma terra”, Eduardo de Faria (1850), “de um país”. Foi Domingos Vieira (1873) quem registrou sentido mais preciso, repetido no século XX por Laudelino Freire (1940), Caldas Aulete (1958) e Aurélio Buarque de Holanda (1975): “descrição de um país, assim como a geografia é a descrição da terra, e a topografia a de um lugar particular.” (p. 216, v. 2).
A precisão de Domingos Vieira informa sobre o estatuto da ciência da geografia e também sobre a presença da corografia na educação intelectual da segunda metade do século XIX. A Corografia brasílica (1817, 1933) de Manuel Aires de Casal (1754/1834) é a primeira obra que vem à memória. Ela serviu de modelo às diversas iniciativas regionais, provinciais, municipais etc. de descrever os aspectos físicos e políticos desses recortes espaciais por todo o período monárquico.
Ocorre que num tempo onde os saberes não estavam bem delimitados não era tão clara a definição de uma corografia como obra específica de geografia. O próprio “pai da geografia” brasileira, Aires de Casal, expressou a dubiedade no título do seu trabalho: Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do reino do Brasil. Como isso, quero dizer que, independentemente das conclusões a que cheguemos sobre o emprego da expressão “corografia”, a narrativa histórica estava lá em Casal, Silva Lisboa, e em Laudelino Freire. Também fez parte da suposta corografia de Severiano, que (pelo menos, para mim) continuaria hibernando no arquivo do IHGS, provavelmente, não fosse o toque oportuno de Vera dos Santos.
Os originais constam de cinqüenta e seis folhas escritas à mão. Parece tratar-se de um rascunho de obra inacabada. Não traz assinatura, nem título e se inicia com uma “notícia histórica” sobre o Estado de Sergipe. Seguem-se-lhes a situação, limites, aspectos físicos, clima, salubridade, orografia, hidrografia e os textos sobre cidades vilas e povoados.
O autor não se estendeu muito sobre o “Estado” de Sergipe. Quarenta e sete páginas foram dedicadas às cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão. Há fragmentos sobre o rio Poxim também. Mas, o maior espaço entre as localidades foi destinado às cidades de Lagarto e Aracaju. Como o escrito sobre a terra “papa-jaca” já foi divulgado no Almanaque, reservarei maior atenção sobre o que Severiano disse da cidade de Aracaju há pouco mais de um século.
* * *
Na semana passada (A Semana, 29 ago./04 set.), fiz alguns registros sobre a figura do educador, poeta e escritor  Severiano Maurício Cardoso (1840/1907) e do interesse que a sua obra tem despertado nos últimos meses. Também dei notícia sobre uma suposta obra de corografia, escrita, provavelmente, na última década de 1890. Por que Severiano não foi à frente com o livro didático? Existe outro original dessa obra? Silva Lisboa e Laudelino Freire teriam-no cortado o caminho, publicando as suas corografias em tempo recorde? Não arriscamos opiniões. É mais urgente proceder uma crítica de autoria para confirmá-lo como o autor do manuscrito que se encontra no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Os verbetes que tratam das cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão seguem de perto uma grade diplomática que se espelha em parte na descrição efetuada sobre o Estado de Sergipe. Eles informam sobre o número de habitantes, a situação geográfica, dão notícia histórica sobre a fundação, o estado geral de ruas praças e edifícios, a atividade produtiva – comércio indústria e serviços, aspectos sobre a salubridade, os equipamentos escolares e relação sucinta de povoados.
A Aracaju de Severiano Cardoso é cidade “ainda nova”. Era nova também para Silva Lisboa (Corografia...) que a ela se referia como “a nova capital” nos idos de 1897. Talvez por isso, trate pouco do seu passado, muito menos que sobre o de Estância e de Lagarto. Pode ser sensato pensar também que a ausência da diacronia seja um traço dominante do gênero – corografia. Trata-se mais de um flagrante sobre a economia e os equipamentos que denotam a urbanidade da jovem Capital.
Tinha então quinze mil habitantes, quatro praças, vinte e duas ruas que não ultrapassavam a extensão de aproximadamente quatro quilômetros... Segue Severiano a listar edificações, a contabilizar estabelecimentos públicos e residenciais, e a comentar sobre o movimento comercial da cidade. Tudo muito ligeiro e resumido. Mas, para bom entendedor, suas quase-listas oferecem, pelo menos, quatro informações importantes sobre a história social de Aracaju.
A primeira está ligada ao mundo do trabalho. A sua tipologia das empresas até então existentes sugere uma hierarquia que contempla a malha da atividade produtiva. Começa com a grande companhia de rebocagem de navios, os serviços tipográficos, bancários, de hotelaria; passa pelas fábricas, pelo comércio de fazendas, ferragens e de bebidas e prossegue com uma gama de pequenos negócios: botequins, bodegas, farmácias, padarias, relojoaria, açougue, confeitaria, ferreiro, marceneiro, sapateiro, tamanqueiro, funileiro, cocheiro, encanador, ourives, fogueteiro, carvoeiro e latoeiro.
O segundo dado importante é o comentário sobre a morada dos pobres no final no século XIX. Uma informação carregada de ironia e de forte dose de sergipanismo é o que se pode ver na sua frase: “Existe... um número assaz considerável de casas inferiores, cobertas de telhas ou de palmas de coqueiro, e edificadas sem a mínima regularidade, constituindo os subúrbios (...) que habitam [as] classes mais necessitadas. São moradias pobres, singelas, modestas; mas relativamente limpas, arejadas e claras, alegres, como o povo se exprime, muito distanciadas, no tocante à comodidade e asseio, da cortiçada abjecta imunda que faz a vergonha e a desonra das grandes cidades, sem excluir a opulenta [e] luxuosa capital da nossa esperançosa República.” (Cardoso, 189-, f. 11 v., f. 12, grifos do autor).
As duas últimas notas importantes para a história de Aracaju, longe do verbete sobre a cidade, estão dispersas nos fragmentos sobre a hidrografia de Sergipe e no texto correspondente ao município de São Cristóvão. No início da República, a velha capital estava “em decadência progressiva, após a retirada da sede governamental...quase [arruinada]”, lamentou Severiano. Do alto da colina que abrigava “a melhor edificação da ex-capital” ainda se viam as grandes fendas provocadas pelas chuvas, “enormes [brocas] a que o vulgo chama[va] de barrocões.”
É possível que se trate do famoso barrocão José Aleixo, citado com estardalhaço pelo historiador Sebrão Sobrinho. O mesmo barrocão que o conhecido Armindo Guaraná avaliava como o “maior mal” da sua adorada São Cristóvão. (cf. Guaraná, 1873). O mais interessante da nota de Severiano, todavia, está na importância conferida ao referido fenômeno – o barrocão – provocado pela erosão: “foi essa uma das causas concorrentes para a mudança da capital.” (Cardoso, f. 21).
 Por fim, um dado sobre o rio Aracaju. Conta Severiano que um dos problemas da capital ainda era a carência de “boa água potável”. Já se havia tentado a canalização da água dos rios Pitanga e Poxim para abastecer à população de Aracaju. Até aí, tudo conhecido na historiografia local. A novidade, para mim, foi a notícia do plano de desviar o leito do rio Poxim através de um canal que cortaria a cidade, “engrossando o ribeiro Aracaju, que se lança na Cotinguiba ao pé da fábrica de Tecidos”.
Se realizada fosse a obra, teria sido a sorte grande do ribeiro Aracaju. Além de dar de beber aos moradores da capital, seria, muito provavelmente, reconhecido como o rio que dá nome à cidade e ganharia muitas homenagens no ano do sesquicentenário. Mas, isso é uma outra história que o Severiano vai ajudar a contar quando o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe começar a expor o seu acervo relativo aos primeiros tempos da ilustre aniversariante do 17 de março de 2005.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Retalhos de Severiano Cardoso (Final). A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 12 set. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 15 de agosto de 2004

Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes

Como prometido na semana passada, aqui estou para comentar “A evolução de Aracaju”, texto de Silvério Fontes editado por Luiz Antônio Barreto na coletânea A formação do povo sergipano (Aracaju: Secretaria de Estado da Cultura, 2004).
O trabalho é uma conferência, fundada sobre fontes de segunda mão. Não vale pela apresentação de fatos novos ou documentos inéditos. Vale pela interpretação produzida sobre os clássicos relatos que tematizaram a história e a geografia de Aracaju.
O que é Aracaju para Silvério? – Ele responde: “Ela é minha cidade! Parte de meu sangue, dos meus olhos, de minhas recordações e emoções!”. Lembro daquela confissão de Sebrão sobrinho: “Estimo, bem-quero tanto a Aracaju que não sei si me sobejava coragem pra falar mal dela, ainda mesmo o merecendo.” (1955, p. 348). A diferença é que Silvério não se esforça para anunciar a imparcialidade do historiador, como fez o itabaianense. Ele não canta-lhe louvores, não é poeta. Também não define a vocação futura da cidade, não é político. Quer apenas compreendê-la. (cf. Fontes, 2004, p. 106)
Sim, mas o que é o objeto “Aracaju” para Silvério? É “um assunto central da história política, econômica e social de nosso Estado”, uma “unidade cívica em crescimento e em expansão relativamente às demais de Sergipe”. Para compreendê-la em sua “evolução global”, é necessário abandonar toda a periodização que não leva em conta a diversidade da experiência citadina – a um só lance, econômica, geográfica, política, educacional, etc. Disso decorre, talvez, a mais significativa contribuição do ensaio à historiografia sobre Aracaju: a divisão em cinco fases: 1. antecedentes ou pré-história da cidade – 1590/1852; 2. fundação – 1853/1856; 3. consolidação urbana – 1857/1899; 4. centralização regional – 1900/1935; 5. concentração regional – 1935/1973.
Cortada em fatias, Aracaju pode já ser compreendida, o que não significa dizer descrita, contemplada, comentada com isenção. “Compreensão” nesse ensaio é a atitude do historiador que tem ligação efetiva e afetiva com o seu objeto, nele estando imerso. É assim que eu “compreendo” as intrusões que atravessam o texto. Silvério dá lições de moral e ensaia explicação sobre os jogos da política no século XIX. Ele denuncia a incúria do prefeito Cleovansóstenes Aguiar com o arquivo municipal, a miopia político-administrativa de Pedro II, a pobreza da população e o conservadorismo da classe média aracajuana. Em suma, compreender para Silvério significa (também) aproximar-se e firmar posição.
Além da periodização e da atitude compreensiva sobre a “Evolução”, merecem registros, pelo menos, dois traços distintivos de Aracaju: o primeiro foi extraído da Corografia de Sergipe (1897): a capital, “como uma esponja, absorve a seiva dos núcleos populosos que lhe ficam perto.” A tese é validada para todo o período do século XX . O crescimento econômico e demográfico da capital – via fábricas de tecidos, ferrovia, estradas de rodagem, instituições escolares etc. – é proporcional à pauperização das cidades do interior do Estado. Um paradoxo.
O segundo elemento que demarca a identidade de Aracaju é o conflito entre a “mentalidade urbana” – da “classe média” e do “proletariado” local  – e a mentalidade das “forças tradicionais” do interior do Estado que a dominaram em toda a sua existência, “um grupo de famílias de proprietários de terras ou de industriais e comerciantes, que são também proprietários de terras”, que conservam valores de “sociedade agrícola arcaica e retrógrada”.
Silvério lamenta que a sua Aracaju nunca tenha participado “decisivamente na escolha do Governo Estadual”, apesar das tentativas lideradas pelo deputado Fausto Cardoso (1906) e pelo tenente Maynard Gomes (1924 e 1926). Deplora a aliança da classe média com os proprietários do interior. Anima-se com as possibilidades de mudança a partir do crescimento da indústria mineradora e da Universidade Federal de Sergipe, mas não quer indicar o papel da cidade “no novo panorama” que se esboça em 1973, pois “não é função do historiador responder. Pertence-lhe o mostrar ao político as tendências marcantes da evolução e sua problemática.” Tudo bem, professor... Faltava apenas um parágrafo para encerrar-se a conferência. As coisas já estavam ditas.
De 1973 até hoje, o conservadorismo das classes médias foi bastante matizado, embora o governo do Estado ainda seja uma prerrogativa das famílias do interior. Por outro lado, muitos problemas de pesquisa apontados por Silvério já ganharam bons desenvolvimentos, tais como: a Revolta Fausto Cardoso, o movimento tenentista, o abolicionismo de Francisco José Alves, os indígenas, a instrução pública e os trabalhos de geografia urbana (a abordagem geográfica tem grande peso no seu texto e não se sabe, ainda, se pela inexistência de trabalhos de historiadores sobre Aracaju pós-centenário ou se por conta das suas leituras braudelianas).
A grita sobre a desorganização das fontes arquivísticas também foi atendida. Muito do que ele precisava para enriquecer o seu ensaio está catalogado no Arquivo Estadual, no Instituto Histórico, na Cúria Metropolitana, no Arquivo do Judiciário, entre outros. Até mesmo a Prefeitura Municipal de Aracaju já disponibiliza a documentação que restou dos tempos de Cleovansóstenes de Aguiar em Arquivo público. Somente a pesquisa arqueológica, apesar de frondosa, não trouxe ainda “alguma luz” sobre o local da primeira Aracaju. Mas, ainda é tempo. O sesquicentenário da cidade só começa no próximo ano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 15 ago. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 23 de maio de 2004

Para a história de Itabaianinha

E a história de Itabaianinha? Como foi contada no livro lançado na semana passada? Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Itabaianinha (Editora da UFS, 2003) é anunciado como livro de memórias e de crônicas – as memórias de José Carlos de Oliveira (1919/...), oficial do registro civil aposentado do Tribunal de Justiça do Estado. Seu filho, Gilmário Macedo de Oliveira, organizador e co-autor, explica bem a situação limite da escritura: “avisado do crepúsculo que se aproximava, ele reuniu suas forças, suas últimas energias e, com dedicação e zelo, entregou-se à tarefa de ser um dos cronistas da sua terra natal.”
Repostos o gênero e as circunstâncias, cabem ainda as perguntas: a proximidade da morte modificaria a estrutura da narrativa? Que tipo de crônica fora escrita sobre Itabaianinha? Trata-se, na verdade, de um clássico relato de história local ao modo da primeira geração do IHGS.
O livro é aberto com curtas relações de filhos ilustres, intendentes e prefeitos, juízes e promotores, vigários e senhores de engenho, ou seja, gente que inscreveu suas memórias na política e na economia do lugar, deixando marcas – umas trágicas, outras cômicas – nas lembranças dos “sem nome”. Mas, o seu José Carlos era um “sem nome”? Certamente que não.
As curtas relações que tratam dos “com nomes” situam-se entre a apresentação e o prólogo. É preciso registrar que, independentemente do plano original dos manuscritos, elas não parecem contribuir para a harmonia do livro que ganha a forma narrativa e não tópica, a partir da página 33. Além disso, não entendi o porquê do título: “Freguesia”, já que as experiências relatadas extrapolam os limites dessa jurisdição eclesiástica.
Seguem-se os capítulos sobre religião, política, festas populares, e sobre o trabalho. O período mais “lembrado” remete-nos às décadas de 1920 a 1940.  Há perfis biográficos de personalidades dos três poderes, de professores, jornalistas, artistas e religiosos; relatos sobre fatos inusitados, como a chegada dos trens, dos automóveis e sobre a seca de 1932.
Grande parte do livro é também ocupada pela descrição de edifícios públicos e privados, de ruas praças e becos. Em quaisquer desses segmentos, além da descrição – às vezes, rigorosa e adjetivada em excesso –, há freqüentemente a inserção de saborosos contos [a parte “inventada”?], dos quais destaco o episódio em que o funcionário público Antônio Pinto de Abreu fraudou os boletins meteorológicos, chamando a atenção dos técnicos da SUDENE para “o fenômeno do micro-clima estável” de Itabaianinha.

Algumas informações desse livro me chamam a atenção pela regularidade com que estão aparecendo nas histórias locais recém publicadas: a idéia de que o mundo se encerra nas cercas de cada cidade; a partidarização (em dois cordões) de instituições culturais – filarmônicas, clubes carnavalescos, procissões; e a idéia de progresso e decadência baseada na fortuna do comércio – os algozes de Itabaianinha são a BR 101 e a cidade de Umbaúba.
Outros dados aguçam a curiosidade pelas luzes que lançam sobre a história de Sergipe (síntese): o trânsito de mão-de-obra entre Itabuna/Ilhéus e Itabaianinha, a importação de práticas carnavalescas do Rio de Janeiro – sem passar por Aracaju –, e a “invasão da cidade pelos fanáticos do ‘Céu das Carnaíbas’ são exemplos destacados. Deste fenômeno messiânico, alguns pesquisadores da UFS têm buscado pistas nos arquivos, sem resultados alentadores. No livro existe página e meia de história.
Mas, há também aquela informação sutil que provoca uma dúvida insuportável: o relato sobre casas, homens, ruas, trabalho, sobre a vida enfim, transmite ao leitor a idéia de tranqüilidade que beira a monotonia. Tem-se a impressão de que o tempo passa lentamente, apesar das rusgas eleitorais, das esporádicas aparições do circo e do cinema. O tempo só parece ser quebrado com a chegada da ferrovia. A minha dúvida é se as pessoas de Itabaianinha, nos primeiros anos do século passado, assim percebiam o movimento das suas vidas, um cotidiano “circular”, “miúdo” e “triste” ou se esse sentido costuma ser construído pelos cronistas/historiadores que não conseguem despir-se do “bem estar” da nossa civilização.
Também por conta dessa dúvida, a escritura desse livro fortaleceu ainda mais os meus juízos quanto às dificuldades de se escrever uma história do município ou uma história da cidade. Sem medo de exagerar, é tão difícil fazer história local quanto ensaiar uma história do homem sobre a terra – a história geral, antiga história universal. Vê-se como os autores esbarram com problemas de seleção dos agentes históricos – as autoridades, o vulgo, a classe –, de períodos a enfocar, de dimensão da experiência – o religioso, o político etc. – e de ordenamento dos textos a expor – a sincronia ou a diacronia? –, não obstante o esclarecimento de que o(s) autor(es) prefere(m) seguir os “fios da memória” e não os clássicos modelos corográficos.
Mas, a dificuldade não indica o limite entre o autodidata – o memorialista – e o historiador por formação acadêmica – a iniciativa da Editora da UFS é meritória. O grande problema é mesmo o da impossibilidade de apreender a totalidade, de abranger o máximo de fatos e dimensões da experiência dos homens em determinada comunidade, num golpe de vista, numa centena de páginas. Neste e em outros livros, o real, sempre fascinante, sempre fugidio (Cf. Veyne, 198.), acaba representado, não raramente, como “as contas do colar histórico” (Cf. p. 40-52) ou como inventário de lembranças – peça por peça, desconexas e com inoportunas repetições.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Para a história de Itabaianinha. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 23 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 9 de maio de 2004

“Os anos dourados da Urbis Propriaensis"

Abençoada por Deus e bonita por natureza. Essa foi a sentença cunhada pelo ouvidor Antonio Pereira de Magalhães de Passos (1801) para convencer o governador da Bahia sobre a conveniência de a pequena povoação “Propriha” – nome de um riacho próximo – vir a ser ereta em vila. Boa situação geográfica – o relevo, o rio São Francisco –, bons ares (?) e bom clima fizeram-no vaticinar: é “a melhor para o comércio, que não decairá, porque parece que Deus Onipotente a destinou para fazer aos nacionais felizes, e ao Estado aumento”.
A profecia foi repetida pelo “memorialista do futuro”, D. Marcos Antônio de Souza em 1808 e transformada em realidade pelos ilustres proprieaenses, ao longo do século XIX e início do século XIX, quando o rio – a ferrovia, depois – e os frutos da terra, notadamente o algodão e o arroz, determinavam a prosperidade econômica da região.
Desde então, na historiografia, registrou-se a experiência dessa povoação/vila/cidade/comarca/município como uma linha ascendente, com ápice na primeira metade do século passado e brusca decadência a partir do final dos anos 1960.
A decadência, provavelmente, já fora notada pelo médico João Rodrigues da Costa Dória (1960), que a visitou em 1959, depois de meio século ausente. O cemitério e a praça Rodrigues Dória, em abandono. O Flor e Elisa, “maior e mais luxuoso hotel das margens do São Francisco”, deixando a desejar quanto à comodidade dos quartos e ao estado de janelas e banheiros. O rio São Francisco mais estreito, o porto entulhado de areia e terra – fatos que não o impediram de comentar: o lugar havia “progredido muito nestes últimos tempos” (nos 50 anos em que esteve fora?).
A prosperidade, enfim, encontrou o seu narrador na figura de outro Marcos, o Melo (1945/...), economista, advogado e administrador com passagens pelo primeiro escalão do governo do Estado. Não haveria melhor currículo para descrever o fausto da ribeirinha. Mas, propriamente falando, seriam os “anos dourados” da cidade ou da vida de seu narrador?
Ora, isso tem pouca importância para o escasso leitor das coisas sergipanas. Importa é saber que o livro Própria/mente falando, lançado no último abril, é, talvez, o maior inventário cultural sobre a história de uma cidade, produzido nos últimos anos. Os vinte e dois capítulos varrem a vida de Própria, da segunda metade dos anos 1940 ao início dos anos 1960, registrando as curiosidades e os grandes fatos relativos à centenas de pessoas que habitaram o imaginário da criança e do jovem Marcos Melo.
Lá estão os agentes – professores, professoras, boêmios, políticos, músicos, literatos, desportistas, familiares, padre, sargento do Exército; as instituições – Igreja, imprensa, Tiro de Guerra, partidos políticos; a descrição do traçado e da infra-estrutura da cidade. Também se registram os costumes privados – um domingo em família – e os costumes públicos – a missa, a procissão, a dança, a bebida, o cinema, o circo, a música veiculada nos auto-falantes (traços característicos de uma família de “classe média”).
A memória inicial é a do jovem propriaense, mas o filtro que atualiza as imagens é o do administrador e, mais ainda, do “jazzista” viajante. Os textos são atravessados por citações/comparações de cenas propriaenses com os clássicos do cinema e da música norte-americana, dando margem a algumas críticas sobre hábitos sergipenses do século XXI. No conjunto, não chega a ser saudosista. Entretanto, vence o patriota algumas vezes – a mais bonita, a mais alegre, a mais quente de Sergipe etc. São as marcas da caneta nativista e o veio autobiográfico do relato. Nesse sentido – no traço memorialístico stricto sensu –, o tipo social sintetizado no “incrível Rubens” (pena que não fosse propriaense) e o não menos incrível “Doutor Faninho” foram os meus capítulos preferidos.
Reconheço, porém, que nem tudo são memórias, apesar de o Marcos Melo anunciar-se como a principal fonte de informações do Propria/mente falando. Há trechos dissertados onde se ensaia alguma explicação sobre a decadência da cidade. Há elementos tributários do discurso histórico, pois se tem conhecimento dos antecedentes e dos conseqüentes dos anos dourados. Avalia-se e se atribui valores a determinados fatos, fazendo uso de alguma teoria, não obstante o aparente descompromisso acadêmico/literário. Na verdade, o livro não é nem memória, nem história e está dois passos adiante da crônica. O texto sobre a fantástica cosmogonia do visionário Mariú (1914), que escreveu Emblema do mar luminoso e Denoksuá, a síntese sobre “política e políticos” e a descrição das atividades produtivas do município dão mostras desse outro lado (híbrido) da escritura.
A importância da obra já foi bem assinalada pelo prefaciador. Escreve Luiz Eduardo de Magalhães que a “coletânea” proporciona prazer na leitura, conserva a experiência de pessoas-chave na vida de pequenas comunidades e fortalece a auto-estima do propriaense. Mas, o livro é também um detalhado repositório de dados sobre a cultura de uma cidade não circunscrita à esfera de influência de Aracaju. Isso alarga as possibilidades de estudos sobre outras cidades e até mesmo sobre as futuras sínteses de história de Sergipe.
Resta apenas lamentar que o Marcos Melo não se tenha “aposentado completamente” para – com a experiência de administrador dos negócios do Estado – ensaiar uma história de Própria, exumando esse tão malfadado período de decadência do lugar. Mas, será que não encontraremos nesse novo período um outro tempo dourado para a geração nascida a partir dos anos 1960? Esperemos a história.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os anos dourados da Urbis Propriaensis. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 09 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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domingo, 2 de maio de 2004

Um resumo da história de Sergipe

Na edição nº 68, (18-24 abr. 2004), demonstrei algumas estratégias de transposição da erudita História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891) para o livro didático do mesmo nome, elaborado pelo professor Laudelino Freire (1898). É bom que sejam relevados os truncamentos da transposição e os poucos avanços detectados em termos pedagógicos. Na cidade bandeirante, a introdução da história local nas escolas primárias também não contou com texto exemplar, adequado às possibilidades cognitivas ou, como se dizia no final do século XIX, ajustado ao “interesse da infância”.
As narrativas didáticas destinadas ao “ensino da mocidade”, mocidade que poderia variar desde os 7 aos 16 anos, produzidas por José Joaquim Machado de Oliveira (Quadros históricos da província de São Paulo) e pelo republicano histórico Américo Brasiliense (Noções de história pátria) possuíam estrutura  de frase e vocabulário eruditos. O texto deste último não passava da transcrição integral de conferências proferidas para um público nada infantil em Campinas, logo veiculadas na Gazeta local e, na seqüência, distribuídas nas escolas públicas em formato livro.
Desconheço as tentativas de emendar a obra dos paulistas. Mas, no caso de Laudelino Freire – futuro organizador da Revista Didática (1902/1906) – houve outra oportunidade de escrever um resumo da história de Sergipe para o curso primário, dessa vez, incerta num livro escolar de Corografia.
Corografia era a nomenclatura de uma disciplina cujos conteúdos versavam sobre o conhecimento do espaço de uma determinada região ou localidade. Quadro Corográfico de Sergipe (1898) foi o nome do livro de Laudelino, publicado um ano depois da Corografia do Estado de Sergipe do infortunado Silva Lisboa (Cf. A Semana, 7-13 set. 2003).
No Quadro, o “resumo” da História de Sergipe (1898) foi transformado em “resenha histórica”. Um novo texto foi produzido sob indiciário título de “Notícia histórica” contemplando todas as adaptações que o formato editorial requereria. Ficou 75% mais curto e aqui é interessante registrar o procedimento de Laudelino para compor essa nova síntese.
A periodização foi mantida – tempos colonial, imperial e republicano – e a natureza dos fatos também – conquista, invasões, guerras, posse dos governantes. O que fez com que a narrativa fosse reduzida tão drasticamente foram as omissões de grandes blocos. Ele excluiu os detalhes sobre a catequese, sobre as guerras – os efetivos, as estratégias de combate, o sofrimento dos fugitivos –, os fatos destacados na maioria das administrações, os fatos exorbitantes da história política – a presença da cólera no Estado –, excluiu seus comentários sobre a direção tomada pela história local – o fracasso da ação jesuítica – e o julgamento sobre algumas ações administrativas – a mudança da capital, o desapego dos sergipanos à causa emancipacionista defendida por Carlos Burlamaque.
O texto da História teve suprimido os títulos e subtítulos, capítulos foram fundidos e as listas de governantes e parlamentares migraram das notas de pé de página para um bloco no final da “resenha”. Algumas palavras estrategicamente postadas no curso do texto anterior – nem sempre importando em melhor solução. Laudelino condensou e mudou a ordem de parágrafos. Corrigiu, fez justiça com o historiador Barleus, não citado na História de Sergipe e também deve ter deslizado em alguma informação – no Quadro corográfico o número de cativos em 1590 é de apenas 1.000, enquanto que na História vem grafado 4.000 (erro tipográfico?).
Estava agora a história de Sergipe posicionada na Corografia de Sergipe, ou seja, na segunda parte do livro, intitulada “Descrição política de Sergipe”, após a “Descrição física de Sergipe” – limites, nosografia, orografia, hidrografia, limenegrafia, portos, barras, faróis e divisão civil, judicial e eclesiástica do Estado – e à frente das sinopses de todas as suas comarcas e municípios. Sob o ponto de vista da história a ser ensinada,, a disposição do Quadro é bem mais rica do que a gravada na História de Sergipe. No Quadro, em que pesem os objetivos da Corografia – os fatos geográficos – estão contempladas a história geral e a história local.
A transposição da História de Sergipe para o Quadro corográfico fez recrudescer o caráter narrativo da primeira obra. Com os cortes efetuados, a história transformou-se ainda mais numa seqüência linear de eventos postos em relação de causa e efeito – o antecedente determina o conseqüente –, eventos que, por sua vez, guardavam estreitas filiações com a história do nascente Estado republicano.
Contada dessa forma – conquista e colonização portuguesas, expulsão dos holandeses, redução à comarca da Bahia, emancipação política, transferência da capital, administração republicana – , pelo menos três elementos constituintes do mito fundador de Sergipe seriam renovados entre professores e escolares: a idéia de que estamos fadados à civilização dos costumes, por obra e graça do povo português; a presença da violência como traço marcante da história local, caráter traduzível até mesmo nas lutas partidárias do final do século XIX; e a eleição do nosso “outro”, do nosso diferente, do nosso algoz centrada na Bahia.
Também contada dessa forma, nos textos de Laudelino Freire, a história de Sergipe faria coincidir dois modos operadores do final do século XIX, o do ofício do historiador e o do ofício do professor de história. Para o primeiro, majoritariamente, escrever história era narrar, encadear ações destacadas na experiência política, de preferência, num texto dito a um só fôlego. Para o professor, segundo a pedagogia hegemônica, ensinar história seria uma tarefa mais produtiva se os fatos fossem dispostos em ordem cronológica – o antecedente explicando o conseqüente – de forma a que a memória fosse adequadamente alimentada e treinada, podendo assim conservar as principais informações que o aluno precisaria para situar-se no Estado e na vida.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Um resumo da história de Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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terça-feira, 23 de dezembro de 2003

Os municípios em revista

A história – saber ou escrita –,  nunca é demasiado lembrar, não se limita à Universidade. Fernando Novais (1990), quem melhor esboçou uma tipologia para a escrita produzida no Brasil, apontou, pelo menos, quatro motivos e lugares de produção: a historiografia ligada às demandas do mercado; os trabalhos produzidos individualmente, sem vinculações institucionais; os escritos institucionais não universitários; e a historiografia universitária propriamente dita. Dos três últimos, não nos faltam exemplos: temos, respectivamente, A República velha em Itabaiana, de Vladimir Carvalho, A Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, e O Nordeste açucareiro, de Maria da Glória Santana Almeida. Do primeiro, porém, é muito difícil citar um título. Nem mesmo a historiografia didática sobre Sergipe e seus milhares de petenciais consumidores foi suficientemente atrativa aos olhos do Deus-mercado. Às vistas do jornalista Antônio Bomfim, todavia, a história tornou-se um ótimo produto. Melhor ainda quando narrada a partir das pequenas unidades, reavivando vocações, sentimentos e poderes locais. Foi sob a sua direção que ganhou corpo um projeto ensaiado no Jornal Cinform e lançada no mês de junho último, em formato de revista com o título História dos municípios: um jeito fascinante de conhecer Sergipe.
Como produto para o mercado, a publicação já nasceu best seller. Foram trinta e cinco mil exemplares impressos, disponíveis em centenas de pontos comerciais do Estado ao módico preço de R$ 10,00. Haveria de ser um sucesso no varejo, mas também na captação de anunciantes. Para tanto, cuidou-se de refinar o projeto gráfico e massificar a divulgação através do próprio jornal. O resultado da empresa, cujo convite atenderam a Petrobrás, G. Barbosa, Habitacional, Norcon, Sebrae, Governo do Estado e as próprias prefeituras municipais – somente para citar os mais notáveis – foi um produto que faz orgulhoso o mais desenraizado sergipano. São 278 páginas em policromia sobre papel couché. O texto, a três colunas, é intercalado por boxes, mapas, listagens e mais de quatrocentas reproduções fotográficas que arrolam personagens e ambientes representativos de cada município. O espaço da revista é dividido eqüitativamente: 3 páginas para cada localidade. A exposição segue o critério alfabético, embora a “Reunião de coisas de Sergipe”, texto de abertura assinado pela professora Vera França, contemple o edifício “Maria Feliciana”, os mercados públicos recém-restaurados e o rio Sergipe como imagens sintéticas do Estado. É Aracaju reafirmando sorrateiramente a sua liderança à frente do passado e do presente de Sergipe.
A hegemonia da capital, entretanto, por aí se encerra. O corpo da revista é preenchido por uma história-memória que dá vazão às identidades municipais. É uma memória duplamente tipificada. Primeiro, porque foi construída, em grande parte, sobre os textos da Enciclopédia dos municípios brasileiros (IBGE), para ser mais preciso, sobre os textos de João Oliva Alves, principalmente. Esse trabalho, por sua vez, já havia alimentado a memória dos poucos leitores que, nas páginas da revista, foram transformados em historiadores. Depois, a própria estrutura da coleta (as pessoas mais antigas do lugar, os mais influentes, os herdeiros dos fundadores), o trato dos depoimentos (muitos deles com aplicação imediata, sem os devidos cruzamentos) e as formas de exposição (boxes, complementos da história recente) anunciam a maior de suas características: a forma fragmentária, a visão particular, a dimensão do individual sobre a experiência comunitária. Essa estratégia da revista abre a possibilidade, por exemplo, de o prefeito de Salgado transformar-se no responsável pela decadência do balneário da cidade, quando se sabe que esse aprazível recanto de outrora começou a perder o seu público a partir da “descoberta” da praia de Atalaia Velha pelos grandes consumidores (no dizer da época, as elites) de Aracaju. Há também o caso do soldado Evaristo, mártir santamarense da “Revolução de 1836” que, à luz de uma evocação particular, pôde ter seu feito de bravura substituído por uma prosaica venda de peixes na cidade de Rosário. Esses são dois exemplos de versões individuais sobre acontecimentos registrados pela historiografia e que, certamente, não serão os únicos problemáticos na citada publicação.
Outro ponto a destacar é o aspecto bastante plural da narrativa. Os novos historiadores revelados na revista (para alguns munícipes, já velhos conhecidos) registraram reminiscências de criança, lamentaram a destruição de velhos símbolos, paisagens e costumes e aproveitaram o espaço para denunciar a falta de projetos desenvolvimentistas em nível local. São professores, estudantes universitários, profissionais liberais e jornalistas, em sua maioria. Nativos fiéis ou ilhós distantes que, a depender da intimidade com o vernáculo, produzem saborosas crônicas ou disparam inocentes e desgastados panegíricos. Mas, não nos enganemos: a História dos municípios é majoritariamente uma produção de jornalista, facilmente identificável pela forma de legendar as fotografias, de segmentar e intitular os textos. A marca dessa escrita (não extensível à totalidade dos jornalistas) está nas condições de produção da matéria – texto de sete dias que não se obriga a referenciar obras clássicas e de fácil acesso, sobre o município de Itabaiana, por exemplo. A marca jornalística (não exclusiva ao Cinform) também se expressa no apelo ao exótico, ao anedótico ou ao escandaloso: é o lobisomem, assombração, bode carola, comunidade indígena, tesouro, remanescente quilombo e a mais notável de todas as excentricidades: as experiências da passagem de Lampião por grande parte das cidades de Sergipe. Ficaria satisfeito em saber como esse fascínio pelo “Rei do Cangaço” foi recuperado durante as entrevistas; chega a ser mais relevante que as disputas eleitorais do lugar.
Mas, Sergipe não é só Lampião, diriam os autores-organizadores, e teriam razão na reprimenda. As muitas vocações sugeridas fornecem pistas para inúmeras hipóteses e visões sobre o conjunto dos municípios. São novas fontes orais e, sobretudo, textuais. Quantos livros em preparo não foram revelados por essas reportagens? Quantos historiadores não se viram estimulados a publicar o resultado de anos de trabalho em coleções de pequenas notas em cadernos pautados? Talvez, um dos maiores trunfos da empresa venha a ser justamente essa movimentação promovida em torno da história sobre Sergipe. O alvo seria um público que se reconcilia com a matéria escrita após décadas de afastamento da escola primária. Foi um longo tempo de história em capítulos semanais, aguardados com certa ansiedade para saber o que seria narrado acerca do seu lugar de origem, fragmentos, que agora aparecem no formato revista. Para bem aproveitar a iniciativa do Cinform, vale, então esse comentário que tem endereço certo: os professores. Aos mestres que incluirão a revista em sua caixa de ferramentas didáticas sobre “cultura sergipana”, é preciso lembrar que os depoimentos foram imortalizados no papel couché, mas não precisam ser sacralizados em sala de aula. Outras memórias podem ser coletadas, outras histórias podem ser construídas, fornecendo mais alternativas para uma nova síntese sobre cada município sergipano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os municípios em revista. Jornal da Cidade, Aracaju, p. B 4-B 4, 23 dez. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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terça-feira, 14 de outubro de 2003

Os novos fragmentos de Sebrão sobrinho

[Nós], os literatelhos da roça, temos obrigação de rememorar as vidas ilustres.
Em minha terra, porém, o único que se dá a este modo de vida sou eu, talvez por que saiba menos ler que eles.
Essas frases de 1922, republicadas por Vladimir Souza Carvalho em Fragmentos de histórias municipais e outras histórias (2003), levaram-me a considerar que o Sebrão sobrinho em Laudas da história do Aracaju (1955) – seu livro mais conhecido – já havia formatado um projeto intelectual aos vinte e quatro anos. Para nossa felicidade, os frutos desse plano, produzidos nos anos 1930 e 1940, foram reunidos nessa nova publicação.
Mas, a obra, como anunciado acima por Sebrão, não seria apenas um “rememorar as vidas ilustres”. Os Fragmentos lançados em Aracaju e em Itabaiana, na última quinzena de agosto trazem de tudo um pouco: instantes auto-biográficos, poemas, lendas, genealogia e a narrativa histórica baseada em fontes cartoriais, relatórios administrativos, códigos legislativos, cronistas e historiadores que tratam do Brasil.
Como referência são tomados os municípios de Itaporanga, Rosário, Carmópolis, Simão Dias, Lagarto, Estância, Itabaiana, Ribeirópolis, Frei Paul, Neópolis e a muitos outros que não tiveram suas experiências estruturadas em forma de artigos, a exemplo de Porto da Folha, Pedra Mole, Aracaju e Santo Amaro. As narrativas, porém, não se distribuem de forma equilibrada. Sebrão sobrinho tinha lá seus motivos e preferências e, também, por isso ganharam destaque as localidades de Itaporanga e Itabaiana.
Itaporanga é contemporânea das “descobertas” de Sergipe e do rio São Francisco. Foi palco da ação dos jesuítas, gente que não contribuiu para o processo civilizatório de Sergipe: nada de instrução ou de educação religiosa; “o jesuíta só vinha a Sergipe, anualmente, olhar como iam seus grandes haveres”. (Sebrão sobrinho, 2003, p. 25).
Itabaiana, tem inventariados dezesseis dos seus mais importantes povoados. A terra do “para-cebola”, simplesmente, “formou quase todos os municípios sergipanos” e era, desde [1859], o celeiro de alimentos da capital Aracaju (idem, p. 255). Somente Lagarto rivaliza com a povoação serrana, mas não chega a criar nenhuma localidade. Pelos novos Fragmentos, vê-se que SEbrão já era o crítico mordaz dos cronistas, historiadores e tupinólogos de fora e de dentro de Sergipe. A birra com Felisbelo Freire já era conhecida, mas a sistemática correção ao trabalho de Armindo Guaraná e as flechas disparadas contra o jovem historiador José Calazans foram novidades para mim. Elas fazem pensar nas conseqüências desse tipo de debate para a construção de duas obras significativas sobre a história de Aracaju: Contribuição à história da capital de Sergipe – José Calazans (1944) e Laudas da história do Aracaju – Sebrão sobrinho (1955).
Naqueles anos da Segunda Guerra, o “cachorro da velha loba” – Sebrão sobrinho – fustigava os historiadores da terra, mas também deitava o malho na Sociologia – Qual Sociologia? A de Gilberto Freyre? A de Florentino Menezes? Davas lições de crítica documental, de gramática, de leitura das línguas indígenas. Com ar professoral, Sebrão interpolava brevíssimas e confusas considerações sobre os explicadores do sentido da experiência humana – a evolução biológica, a evolução espiritual, a predestinação.
Nesse mesmo período, também já expunha suas teses com grande ênfase: o rosarense é providencialmente um piedoso, crente, masoquista – uma herança dos negros do Catete; nunca existiu a tal pedra em forma de lagarto, interpretação usual para a origem do nome do referido município; Itabaiana acolheu o culto protestante logo após Laranjeiras, em 1885; a mulher itaporanguense inventou o desquite em Sergipe (1843); Men de Sá era um covarde, o governador Luiz de Brito, um bandido e os jesuítas Gaspar Lourenço e João Saloni uns assassinos, injustamente elevados à classe de mestres do ensino.
As longas introduções, a conversa com o leitor, as intrusões, e até uma história estruturada com repente – ou como canção de gesta, se preferirem – já estão presentes nos textos do Sebrão getulino e maynardista. Ele preferia escrever defluente à passada, embair à enganar, rutilância a brilho e uxoricídios em lugar de assassinatos de esposas. Também não se furtava em fazer uso de um gilbertifreirático, do cotiliquê paroquiático e da bagaceirocracia.
O que permanece como enigma na obra são as razões pelas quais a sua escrita ganhou essa forma peculiar. Por que Sebrão assumia-se historiador com tanta ênfase? Por que afirmava ser o único num período tão fértil da historiografia sergipana? O que o levou a produzir um texto combinando arcaísmo com fórmulas da linguagem popular, por exemplo?
A resolução desses problemas ficou a gora mais fácil com a preocupação de Vladimir Carvalho em recuperar os artigos, anotá-los e oferecer ao leitor um precioso índice onomástico. Às novas possibilidades de cruzamento das referências de fontes, autores e personagens, gostaria de acrescentar 3 questões que podem ajuda r a decifrar os tais enigmas: seria o jovem itabaianense um exemplar temporão de uma cultura retórica em vigor na segunda metade do século XIX? O trabalho docente e a tarefa de inspeção escolar teriam se transformado em missão de vida para Sebrão? Teria o autor sobrevivido ao uma espécie de ‘terremoto de Lisboa” em suas primeiras investidas intelectuais?
Muita tinta há de ser gasta com as letras desse historiador, afirmei há três semanas. Mas, penso que a epígrafe acima – plena de ironia, exagero e ressentimento – pode ser uma chave para a compreensão da escrita histórica de Sebrão sobrinho.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os novos fragmentos de Sebrão Sobrinho. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 out. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 7 de setembro de 2003

O Calvário de Silva Lisboa

Anteontem, pelas nove horas da manhã, quando se preparava para sair aos seus labores quotidianos, caiu fulminado por uma síncope cardíaca o estimado sr. Luiz Carlos da Silva Lisboa, lente do Atheneu Sergipense, onde lia a cadeira de Geografia Universal. 
Assim, há cem anos, noticiava o Jornal de Sergipe (24/05/1903) a morte desse funcionário público que também ocupou os cargos de Secretário de Governo, Promotor Público de São Cristóvão, Presidente do Conselho Municipal de Aracaju e Secretário da Diretoria Geral da Instrução Pública de Sergipe.
A despeito de tantos predicativos, Silva Lisboa não consta entre os representantes da elite intelectual recolhida por Armindo Guaraná em seu renomado Dicionário (Cf. Guaraná, 1925; Horta e Lennon, 1976). Por qual motivo? Critérios. O fato de não ser nascido em Sergipe pode tê-lo afastado dessa obra monumental e também da memória dos pósteros. É que o Lisboa era baiano. Desterrara-se para as bandas de Sergipe ainda moço, às vésperas da fundação do Atheneu, onde mais tarde lecionaria as matérias inglês e geografia. Viera “em busca de viver mais cômodo” (Almanaque Sergipano, 1904) ou, quem sabe, à procura de um grande amor, sua “distinta parenta” Izabel Augusta Villas Boas, com quem se casou a 2 de julho de 1870 e  de quem ganhou sete filhos.
Somente os filhos não justificariam o registro da sua morte. Outras crias, em papel e tinta, vincariam a passagem do professor entre os intelectuais do final do século XIX: os romances de costume, os livros didáticos e os artigos em periódicos locais (cf. RIHGB, 1908;  Silva, 1920). Foram muitos os produtos, mas de todos os trabalhos do Lisboa, nenhum deve ter repercutido tanto como a Corografia do Estado de Sergipe, o primeiro livro didático da matéria cuja adoção nas escolas públicas fora autorizada pelo Estado em 1896. Às vésperas do lançamento, vamos encontrar o professor no auge do prestígio, é bem provável, com seu “Curso de Preparatórios” instalado à praça Mendes de Morais. Silva Lisboa também lecionava aos particulares, “com métodos aperfeiçoados, segundo os princípios pedagógicos modernos”, dizia o reclame (Diário Oficial, DATA? 1896).
Em 1897, porém, a situação era bem diferente. Não bastou o parecer favorável à obra, emitido pelo Conselho Superior da Instrução Pública, tampouco as cento e setenta e cinco páginas por onde informava sucintamente sobre a parte física (limites, relevo, hidrografia...), a parte política (divisões administrativa, eclesiástica, representação política...), e a topografia do Estado de Sergipe (as cidades, sua economia e equipamentos urbanos). A Corografia do Lisboa foi consumida e triturada vorazmente por Manuel dos Passos de Oliveira Teles, nada menos que o tradutor de A Geologia Cretácea e Terciária do Brasil, J. C. Branner, livro esse que veio a público sob a direção de Laudelino Freire.
“Corografia de Sergipe”, ensaio crítico publicado em Sergipenses (1903), foi o calvário de Silva Lisboa e a cruz de Oliveira Teles: “Lisboa errou: errou como tomamos como uma cruz o empenho de salvá-lo” (Teles, 1903, p. 116). O salvamento constituiu basicamente em apontar as deficiências do professor Lisboa no domínio dos conceitos da ciência geográfica; na incompreensão do funcionamento psíquico do “infantil” e na falta de método de pesquisa e de exposição dos fenômenos corográficos. Perto de cinqüenta imprecisões e erros crassos na matéria são apontados por Oliveira Teles, quase sempre de forma irônica. Os comentários do analista resultaram, indiretamente, na confecção de uma outra corografia. Ao final do ensaio, o golpe de misericórdia: “Nada mais diremos da parte topográfica, onde decerto abundam outros defeitos aos centos” (idem, 1903, p. 138).
A crítica de Oliveira Teles é primorosa fonte sobre a instituição intelectual de  lugares e competências naqueles tempos de poucos limites entre os saberes e especialidades escolares, a exemplo da Corografia e da Geografia. De um lado, o funcionário público de formação secundária, mais empenhado com as lutas eleitorais e menos com a observação e experimentação científicas; sequer chegou Lisboa ao diletantismo, fustiga o crítico socorrense. Do outro, o bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, discípulo de Tobias Barreto, consumidor de autores traduzidos por Capistrano de Abreu como Wappoeus e Sellin, e do premiado manualista bandeirante Alfredo Moreira Pinto. Teles estava, sobretudo, empenhado na construção da disciplina escolar pelo seguro caminho da transposição didática.
Não coincidentemente, vem à lume, no ano seguinte, o Quadro Corográfico de Sergipe, do então parceiro de Oliveira Teles, Laudelino Freire, obra chancelada pelo conhecido pesquisador dos assuntos histórico-geográficos brasileiros, o Barão do Rio Branco. Assim, em espaço de dois anos apenas, Sergipe ganhava “três” obras de Corografia destinadas às escolas públicas e deixava mal aparados os fios que permitiriam aos pesquisadores do século XXI alguns avanços no conhecimento sobre a história do ensino de Geografia e Corografia, e do estado-da-arte da ciência geográfica no início da primeira República.
Quem matou Lisboa? Se a proveniência baiana, se as escolhas político-partidárias, se a inabilidade com as formas didáticas ou a incúria com o pensamento geográfico, ainda não o sabemos. Mas, já se sabe quem poderá lançar luzes sobre a sua obra, problematizando possíveis transposições entre o saber erudito e o saber escolar na seara da Geografia. Trata-se da mestranda Vera Maria dos Santos, de quem aguardamos a dissertação no decorrer desse 2003. Será uma bela coincidência esse cruzamento proporcionado pelo acaso histórico dos centenários aqui registrados: o do lançamento de Sergipenses (1903), onde está inserto o ensaio de Oliveira Teles, e o centenário da morte de Luiz Carlos da Silva Lisboa (22/05/1903), o primeiro autor de livro didático sobre a corografia de Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O calvário de Silva Lisboa. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 07 set. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 24 de agosto de 2003

O sergipanismo do historiador Sebrão sobrinho (1898/1973)

A historiografia de Sebrão sobrinho – sobrinho com “s” minúsculo, como nos ensina Vladimir Carvalho – é veículo e instrumento de conformação da identidade sergipana. É uma tentativa de criar tradição, um passado unificado para a pátria de Tobias Barreto. E, como a identidade pressupõe a diferença, em Sebrão, notadamente em seus Fragmentos da História de Sergipe (Aracaju: Regina, 1972), a alteridade personifica-se no vizinho estado da Bahia. A “mulata faceira” é o nosso outro. Sob esse aspecto, o autor radicaliza, ainda nos anos 1970, o discurso fundador da primeira geração de historiadores do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Ele sugere que a experiência da formação social sergipana é, por assim dizer, o roteiro da espoliação dos baianos sobre os habitantes da antiga capitania de Francisco Pereira Coutinho – Sergipe.
Mas, como esse discurso unificador é construído? Sebrão ensina: é preciso reler a documentação cartorária, estudar a etimologia da toponímia local, elaborar genealogias e dissecar os textos de cronistas e historiadores. Todo esforço é válido para sustentar a seguinte tese: o que é da Bahia é de Sergipe, e o que é de Sergipe se integra à Bahia. A Bahia tem a chave para a compreensão de muitos acontecimentos da história local, a começar pela origem do nome “Sergipe”. Diz o autor: “Mem de Sá, que não pôde conquistá-lo, como o fizera à póstera ilha de Villegagnon, lhe dera o nome de Sergipe, em homenagem a seu engenho real [localizado na Bahia] (p. 278); “Sergipe já era denominação do rio baiano, que banha o recôncavo da Mulata Velha” (p. 31). O complemento del Rei fora acrescido para diferençar o nosso Sergipe do Sergipe do Conde (o conde de Linhares, D. Fernando de Noronha, o primeiro marido de D. Felipa de Sá, filha de Mem de Sá). Essa dívida com a Bahia, não poderemos esquecer jamais, afirma Sebrão.
Além do batismo, também os primeiros sinais da sergipanidade estão ligados à experiência baiana. A identidade sergipana manifesta-se freqüentemente como reação à cobiça do vizinho sobre as riquezas do lado de cá. Nos Fragmentos, Sebrão registra todo o seu incômodo em relação a esse outro. Em primeiro lugar, enfatiza que coube aos habitantes locais a repressão aos franceses das costas sergipanas. A esses também se devem os méritos pelo início da derrota holandesa em termos de Brasil. E o que nos devolve a Bahia? Responde Sebrão: a cobrança constante dos impostos sobre o gado; o descaso com a recuperação da economia local e com a reedificação da cidade de São Cristóvão; o esquadrinhamento policial da capitania de Sergipe sob o pretexto de prear índios e combater quilombos; a extração de dinheiro e gado para equilibrar as contas da nobreza e saciar a fome na Bahia; a extração de braços armados de Sergipe para minimizar o temor baiano de uma possível invasão holandesa.
Por esses exemplos, vê-se como Sebrão despreza a historicidade das duas formações – Sergipe e Bahia – “misturando” as proveniências do nativo sergipano do período colonial e confundindo a sede do Estado português do inexistente Brasil com a entidade Bahia, que só parece ganhar a forma atual após a perda do status de base geográfica do poder central para o Rio de Janeiro.
Mas, essa atitude tem suas razões. Ressaltar a cor local exige sacrifícios. Um deles é justapor a ciência dos fatos – a História – à essência das coisas – a identidade. Esse esforço de transformar História em memória levará Sebrão a divulgar algumas teses, no mínimo, curiosas: 1) que os nascidos em Sergipe foram os primeiros a experimentarem o ofício de bandeirante. Foi  no atual território que o Governador D. Francisco de Souza garimpou em busca das minas de prata (1591/1602) de Belchior Dias Moréia; 2) que Sergipe já foi sede do poder central no Brasil. O mesmo D. Francisco bandeirante elevou a região à capitania régia. E o fez “para nela sediar o Estado do Brasil, enquanto estivesse “cavocando” a serra de Itabaiana; 3) que o “dois de Julho” é uma efeméride tão baiana quanto sergipana, posto que a derrota impingida aos portugueses foi viabilizada com suprimentos e homens sergipanos; 4) que Sergipe possui a mais antiga instituição musical do Brasil: a Filarmônica Nossa Senhora da Conceição (de Itabaiana, é óbvio).
Da proeminência factual, diante da História do Brasil, passa Sebrão à natureza do sergipano que, por sua vez é lapidada pela ação do professor: “o sergipano tem a bondade do baiano e a sizânia do alagoano de Pernambuco. Reparte-se entre o riso, a gargalhada inteligente e o esgar sanguinário, medeiando-os com qualidades congênitas, mesológicas, habilmente cultivadas pelo mestre-escola, representado pelo padre secular, pelo tabelião público ou por outro letrado qualquer, licenciado em letras forenses como advogado e, fora da rabulice, professor” (p. 53).
Essa “bondade do baiano” é apenas uma rápida concessão do sergipanismo desse autor. A Bahia é mesmo o nosso outro, um diferente ameaçador. Para se ter idéia dos limites da inventividade (freudiana?) de Sebrão, observemos essa passagem onde ele narra o processo de redução progressiva – de Itapoã ao rio Real – do território sergipano, um dos maiores crimes cometidos pela velha mulata: “Cara madre, madre incestuosa, não tendo valor para impor medo a Sergipe, rebelde a todo açaimo, saberia estonteá-lo em suas carícias fesceninas e, em danças nos rios, comeria todas as terras. Iniciara a [geofagia] das latifundiárias terras do filho e amante nos banhos do rio limítrofe entre a Mãe e o Filho, entre a Mulata Velha e o Índio, o Itapoã. Dali, ela o levaria num pisa-pisa de cateretê ao Subauma. Levando-o pela mão, ao chegar ao Itapicuru, o garoto saltou na corrente e a Mãe pulou nas costas. Seguiram para o rio Real, onde ela lhe deu formidável rasteira que quase o galaceava, afogando-o, mas ele conseguiu desvencilhar-se-lhe, que o queria todo devorado. Mais terra degluteria de Sergipe a Bahia, se não tomasse o feliz alvitre de esconder-se dela”. (p. 275).
Essa semana, Sebrão virou notícia. Pelas mãos do historiador Vladimir de Souza Carvalho, veio à lume mais uma parte da sua obra dispersa em vários jornais sergipanos. Fragmentos de histórias municipais e outras histórias (Aracaju: Instituto Luciano Barreto Júnior, 2003) trata da experiência sergipana circunscrita aos municípios de Itaporanga, Rosário do Catete, Carmópolis, Simão Dias, Lagarto, Estância, Itabaiana, Ribeirópolis, Frei Paulo e Neópolis. São mais de quatrocentas páginas, contendo os originais de Sebrão, anotados por Vladimir, produzidos a partir da década de 1940. O livro traz fotografias do historiador itabaianense em vários momentos da vida. Apresenta, inclusive, um flagrante do seu sepultamento em 1973. Observando essa imagem, penso que Sebrão, sobrinho jamais imaginaria que os grandes intelectuais da terra estariam reunidos no Instituto Luciano Barreto Júnior, trinta e um anos depois de lançados os Fragmentos da História de Sergipe, para adquirir um exemplar dos Fragmentos da História dos municípios. Quem ainda não adquiriu o livro e perdeu o prestigiado lançamento da quinta-feira, pode ainda contar com o autógrafo do organizador no próximo dia 27, quando o livro será lançado em Itabaiana. Da minha parte, vou prosseguindo com a leitura da obra que, certamente rendará mais tintas sobre as – por enquanto – curiosas teses defendidas na primeira metade do século passado.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O sergipanismo do historiador Sebrão Sobrinho. A Semana em Foco, Aracaju, p. 8 B-8 B, 24 ago. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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quarta-feira, 22 de novembro de 2000

A Aracaju que eu não vivi

A Aracaju que eu não vivi despertava todos os dias com o toque de corneta do Quartel da Polícia Militar. Ainda pela manhã, era invadida por imigrantes (com seus verdadeiros armarinhos ambulantes), por vendedores de verduras, de biscoitos, de cocada-pucha, de bolachões de canela e somente se recolhia por volta das vinte e uma horas, após as retretas na praça Fausto Cardoso. A cidade não era muito extensa. Trinta minutos bastavam para atravessá-la de um extremo a outro, do Iate Clube ao Mercado Municipal. Não era muito verticalizada, o primeiro "imponente" arranha-céu, de quatro andares, só começou e ser erguido no início dos anos 1950 na esquina dos atuais calçadões de João Pessoa e Laranjeiras. A Aracaju que eu não conheci também não era muito movimentada. Andava-se muito a pé e as vezes de bonde elétrico. Poucos "carros de praça" circulavam e o número de automóveis particulares era tão irrisório que a população sabia associar as "chapas" dos veículos aos seus respectivos proprietários.
Essas e outras centenas de pitorescas informações fazem parte do inventário de lembranças do senhor Murilo Melins, um fiscal de tributos aposentado que registrou em Aracaju romântica que vi e vivi (UNIT, 2000) flagrantes do cotidiano da capital durante as décadas de 1940 e 1950. Decerto, não é o cotidiano conceitual, tematizado pelos historiadores europeus da década de 1980. O livro está mais para o "dia-a-dia" senso comum, o dia-a-dia "terrantês" de Sebrão Sobrinho, o habitual, o costumeiro que, de tão repetitivo, dispensa a datação cronológica durante a narrativa. Nesse cotidiano - da cidade, não necessariamente do autor - há espaço para o trabalho (comércio, serviços) e para o lazer (bares, cinemas, clubes, cassinos, boates); para os dias comuns e para as quebras de rotina como a chegada de um circo na praça da catinga (atual praça da Bandeira) ou as comemorações ritualizadas e com calendário fixo (carnaval, São João e Natal). Tudo é contado através de textos leves e sintéticos, onde, as vezes, o autor cede à minúcia descrevendo, por exemplo, o funcionamento do "carrossel do Tobias", dos bondes elétricos ou mesmo tratando das regras de um jogo de "busca".
Pouquíssimos leitores com menos de trinta anos saberiam jogar "busca" (uma brincadeira com bolas de "gude") nem mesmo sei da possibilidade de se recuperar  o significado dessa palavra nos dicionários. Mas é exatamente a partir do resgate do sentido de algumas expressões típicas do período que o livro do senhor Melins começa a ganhar relevo entre os historiadores (cast, footing, cabaret, soiré e os menos nobres papone, busca, ponga etc.). A contribuição dessa obra para uma história social, cultural ou mesmo do cotidiano de Aracaju (em versões marxistas ou foucaultiana),  avança do vocabulário à diferenciação  entre os pobres e os bem nascidos. Essa distinção é expressa no livro através da descrição dos espaços de moradia, trabalho e lazer, dos produtos consumidos (roupas, comidas, perfumes) e até mesmo das parceiras escolhidas para o sexo. De forma genérica, devem os historiadores anotar e explorar algumas fontes apontadas no livro como o senhor Caio Francisco de Matos que há setenta e um anos assiste da sua cadeira de engraxate às transformações fisicas e humanas do centro de Aracaju, como também, as mais de quarenta fotografias (de época em sua maioria), retratando pessoas, eventos e fachadas (cinema Guarany, hotel Marozzi, rua João Pessoa etc.). O historiador também deverá atentar para a variedade de temas de pesquisa sugeridos pelas crônicas entre os quais merecem destaques as histórias do transporte coletivo urbano, da publicidade e da saúde pública. Sobre esse último, o autor informa a existência de um gueto de tuberculosos  e sifilíticos localizado nas imediações da rua Siriri com a avenida Pedro Calazans que conservara, até então, o sugestivo nome de "curral".
Antes de passar a usufruir de Aracaju romântica, os leitores deverão enfrentar as insuficiências que caracterizam a maioria das produções locais. Os problemas estão na revisão ortográfica, na identificação das fotografias e na   colagem do corpo textual. Seria interessante rever esses pontos antes de uma segunda edição (penso que a primeira deverá esgotar-se em breve). Entretanto, quem comprar o livro deverá superar tais obstáculos, principalmente quando constatar que eu não cheguei a comentar sobre 30% das crônicas reunidas pelo autor. Eu que não vivi a Aracaju de cinqüenta anos atrás me senti gratificado com a leitura. Para aqueles que experimentaram o cotidiano da cidade nas décadas de 1940 e 1950, além de compartilharem das imagens selecionadas, não será difícil imaginar estar ouvindo "Moonlight serenade", "Alguém me disse", "Perfídia" ou  sentindo, durante a leitura, "uma mistura de fragrância dos bons perfumes Chanel n.º 5, Five o'clock, Je revien ou Ma griffe". Aracaju romântica que eu vi e vivi é um estimulante para os sentidos de todos os barbosopolitanos.
Para citar este texto:
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Aracaju que eu não vivi. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 6-6, 22 nov. 2000.