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quinta-feira, 12 de abril de 2012

A história local e currículos de história (2007/2011)


Capela da Avenida do Cruzeiro. Icó-CE.

Colegas da URCA, boa noite.
É com prazer que volto a esta instituição para tratar mais uma vez dos usos do conhecimento histórico em ambiente escolar. Agradeço o convite do Núcleo de Apoio Pedagógico e Pesquisa em Ensino de História – NUAPEH, coordenado pelo professor Egberto Melo, e ao Laboratório de Imagem História e Memória e História – LABIHM, coordenado pelas professoras Sônia Menezes e Jane Semeão. Reitero que estarei à disposição da URCA sempre que o assunto estiver relacionado ao ensino de história, como é o caso deste lançamento do livro do professor Joaquim Santos, que trata da memória da cidade de Porteiras-CE.
Hoje, tratarei do lugar da história local nas prescrições curriculares para o ensino fundamental. A base das minhas considerações está numa pesquisa de maior fôlego empreendida com a professora Margarida Oliveira (UFRN) a partir de 18 propostas curriculares estaduais brasileiras produzidas entre 2007 e 2012. Tentarei responder sobre o espaço dedicado à matéria no conjunto das expectativas de aprendizagem, a natureza dessa matéria e a distribuição da mesma nos quatro anos finais do ensino fundamental. Além disso, tecerei considerações sobre o emprego dos jogos de escala, jogos de duração e das atividades metahistóricas nas expectativas de história local.
Memórias locais objetivadas e revitalizadas. O "Mateus" do
Reisado e o casarão-sede da Escola de Artes Violeta Arraes
Gervaiseau. Barbalha-CE.
A história nos anos finais do ensino fundamental
A fala de hoje aborda a relação história local e currículos para os anos finais do ensino fundamental. Mas, porque os anos finais do ensino fundamental? Penso que a maioria da audiência é constituída por alunos do curso de licenciatura em história. Então, para maior proveito no curso, optei por focar singularidades de uma instância na qual trabalharão boa parte dos que aqui completarem os seus estudos.
As razões principais, entretanto, são menos utilitárias. Considero os anos finais como o momento especificamente formador do sujeito aluno em termos de apropriação do conhecimento histórico produzido pela academia.
Seu público-alvo, em condições satisfatórias, são os adolescentes da faixa etária compreendida entre 10/11 e 15/16 anos. É uma fase identificada pela psicologia do desenvolvimento como pertencente ao estágio operatório, ou seja, é um público que já se encontra no estágio das operações formais – que é capaz de raciocinar por meio de hipóteses e deduções (Cf. Coll e Martí, 2004, p. 46). Como sabemos, sem a capacidade de formular hipóteses é praticamente impossível compreender o conhecimento histórico sobre o passado do modo que a maioria dos historiadores assim o entende: uma versão contestável, construída a partir de indícios.
Também destaco os anos finais pela diferença qualitativa em relação aos anos iniciais e o ensino médio. O ensino de história do primeiro ao quinto ano é dirigido a um público situado no estágio de inteligência representativa ou conceitual. O ensino, portanto, limita-se à construção das capacidades básicas que o habilitarão a interagir com o conhecimento produzido na academia.
Em outras palavras, o ensino de história nos anos iniciais destina-se ao desenvolvimento das noções de espaço e de tempo cronológico e, ainda, da capacidade de extrair informações e de interpretar fontes. Quanto ao ensino médio, este se apresenta, na maioria dos casos, como uma repetição de habilidades e de conhecimentos históricos ministrados nos anos finais, além de estar majoritariamente voltado aos exames nacionais de ingresso nas carreiras universitárias.
Memórias de um tempo distante. Cemitério do Crato-CE.


A importância da história local
Sobre a história local, é necessário inicialmente lhe indicar o sentido aqui empregado. Trata-se de escrita sobre a experiência local, ou seja, historiografia sobre o local. A esse respeito, posso afirmar que é um gênero tão antigo quanto as práticas historiadoras no Brasil. Basta observar a obra historiográfica de José Honório Rodrigues que inventariou e criticou a escrita histórica produzida no Brasil entre os séculos XVI e XX (Cf. Rodrigues, 1969, p. 149-153). Por meio dos seus trabalhos, constatamos que a história (sobre o) local predominou no período anterior à fundação do Estado-nação e depois dele foi bastante cultivada nos institutos históricos provinciais e estaduais. O que são as corografias e os memoriais provinciais, por exemplo, senão histórias político-administrativas locais? (Cf. Freitas, 2007, p. 23-34).
A história local pode, portanto, ser definida por oposição à história do nacional. São relatos que registram a experiência de grupos que se identificam por fronteiras espaciais e sócio-culturais – seja na dimensão de uma cidade, seja nos limites de um Estado ou de uma região do Brasil (Cf. Freitas, 2009). Assim, a história do Lameiro, a história do Crato, as histórias de Barbalha e Icó, a história da região do Cariri ou a história do Ceará são todos exemplos de história local.
Além da referência espacial, a história local pode ser entendida como uma redução da escala de observação (Cf. Freitas, 2010, p. 77-79). Pode, por exemplo, tratar de “referências sócio-culturais”, dando visibilidade aos “protagonistas anônimos da história”. Neste sentido, trata-se de uma abordagem caracterizada pelo esmero na exploração exaustiva das fontes, na descrição etnográfica e na exposição narrativa, como é caracterizada a micro-história, na palavra do historiador Ronaldo Vainfas (Cf. Vainfas, 2002).
Memórias de um tempo recente.Vista parcial do muro da sede da 
ONG "Beatos". Bairro Lameiro, Crato-CE, 2012. 
Seja como escala de observação (micro-análise), seja como recorte espacial em oposição ao nacional (rua, bairro, cidade, município, cidade, estado), a história local é canteiro da memória e instrumento para a formação de identidades. Como recorte espacial, ela fixa limites, marca referências acontecimentais (ações, atores e datas cronológicas). Como abordagem micro ela informa sobre a apropriação particular de processos e acontecimentos de caráter nacional ou global que podem não manter o mesmo sentido codificado pelas historiografias de sínteses produzidas em escalas mais abrangentes.
Assim, histórias locais servem como elemento de identificação, diferenciação, transformando-se em instrumentos de oposição e defesa. Esses atributos, portanto, são alguns dos principais argumentos para a manutenção das histórias locais como conhecimento obrigatório nos livros didáticos e nos currículos para a escolarização básica.
Em pesquisa anterior, examinei (com um grupo de 6 alunos do curso de licenciatura em história da Universidade Federal de Sergipe – UFS) 27 livros didáticos de história regional avaliados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático entre os anos 2006 e 2009. Esse trabalho também me estimulou a verificar a questão do lugar da história local no ensino de história em outra instância de apropriação: os currículos prescritos pelas secretarias de educação para as redes públicas de ensino.

O lugar ocupado pela história local nos currículos de 18 estados brasileiros
O primeiro indicador que nos permite visualizar a presença da história local nos currículos é o espaço que ela ocupa em termos de quantidade de expectativas. No Brasil (verificando a partir da totalidade de expectativas de todos os estados), podemos afirmar que é diminuta a sua participação quando comparada aos demais recortes encontrados nas propostas: nacional, continental, transcontinental e global. A história local ocupa módicos 6%.[1]

Gráfico n. 1 – Expectativas de aprendizagem por
recorte espacial: Brasil (2007/2012)


Observem que o grande apelo dos currículos concentra-se no exame do nacional e do transcontinental, respectivamente com 36% e 33% do total de expectativas de aprendizagem.
Outro número a considerar é a participação residual do município nesse conjunto. Apenas três expectativas são a ele destinadas, enquanto nove outras abordam o regional.
O segundo indicador diz respeito à distribuição da história local por ano. Pelo gráfico n. 2 é possível concluir que o município, como instância de experiência, está localizado nos anos 6º e 7º, enquanto o estadual e o regional são distribuídos por todos os anos finais. É importante registrar a presença de progressão por quantidade de expectativas no que diz respeito à distribuição da história local referente ao estado.

Gráfico n. 2 – Expectativas de aprendizagem
por ano : Brasil (2007/2012)


Se o emprego da história local como conhecimento prescrito é diminuto em relação ao nacional e ao transcontinental/global, podemos também afirmar que ele está desigualmente distribuído. Oito estados não prescrevem a história local em seus currículos, segundo os critérios aqui adotados.[2] Cabe esclarecer que computamos apenas os conhecimentos históricos explícitos, ou seja, aqueles substantivos que fazem referência direta ao município, estado ou região, mediante a nomeação do referente, como neste exemplo: “Identificar a situação atual dos quilombolas e dos indigenas no Estado de Mato Grosso do Sul” (MS, 7º ano, 2011). 

Gráfico n. 3 – Distribuição dos conhecimentos substantivos
sobre história local por estado: Brasil (2007/2012)


O gráfico n. 3 demonstra que o estado do Mato Grosso reserva maior espaço para esse tipo de conhecimento (50%), seguido de Goiás (25%), Tocantins (15%) e Mato Grosso do Sul (11%). Os demais disponibilizam entre 1% e 9% do total das suas expectativas de aprendizagem. É, por hora, uma coincidência que os estados da região Centro-Oeste sejam os mais generosos em relação à história local. Não encontramos ainda uma explicação para o fato, já que a ausência de conhecimentos explícitos sobre o local nas expectativas de aprendizagem é um fenômeno presente nas propostas curriculares de estados como São Paulo, Rio de Janeiro, centros de “poder nacional”, Paraíba e Alagoas, que nem de longe, sob o aspecto do poder, podem ser comparados aos dois primeiros.
Outro dado importante é a distribuição desse conhecimento por recorte espacial (ainda dentro da rubrica de história local). Apesar de reservarem significativo espaço para a história local, Tocantins e Mato Grosso optam pela história do Estado, Mato Grosso do Sul pelas histórias do estado e da região Centro-Oeste e Goiás abordam a experiência da região, do estado e do município.

O conhecimento explorado sobre o local
Conhecidos os espaços ocupados pela história local, vejamos, por fim, a natureza desses conhecimentos. O que se explora sobre o local? Os acontecimentos no todo, os constituintes dos acontecimentos, os conceitos/generalizações e modelos?
Do mesmo modo que ocorre na maioria das propostas curriculares brasileiras, em termos de história local também estão presentes os conhecimentos que configuram os acontecimentos. Considerados no todo, são explorados as conquistas da Amazônia, do Sul do Brasil e a formação de fronteiras e limites (AM), a degradação do meio ambiente, descobertas arqueológicas, migração e urbanização (GO) e a formação da identidade local (SE, MG).
No entanto, são procedimentos analíticos os mais empregados na construção das expectativas da aprendizagem, gerando possibilidades várias de explorar, por exemplo, esses mesmos acontecimentos referenciados acima. Assim, as propostas curriculares requerem o conhecimento e/ou a compreensão, sobretudo, dos alunos, no que diz respeito às características da Questão do Acre (AC), do coronelismo, posse da terra (GO), ciclo da erva-mate (MS), colonização (MG), industrialização, migrações e urbanização (RS) e da experiência pré-histórica (TO).
O mesmo procedimento analítico resulta na expectativa de que os alunos conheçam e identifiquem as consequências do golpe militar de 1964 para Goiás, da experiência goiana para a ocupação do Centro-Oeste, da oligarquia, do processo de ruralização, do evento da conquista sobre os territórios indígenas (GO). Também são esperados a identificação das consequências do iluminismo sobre a sociedade mato-grossese (MS), da chegada da família real para o cotidiano e a formação de grupos de interesse no Rio de Janeiro (MG), do crescimento das cidades do Sudeste para o mundo rural de outras regiões (PE).
Os sujeitos individuais pessoais e coletivos não estão ausentes das propostas. Mas, como podemos observar, são numericamente inferiores às consequências e características dos acontecimentos. Foram incluídos os indígenas (GO, MS, MG, RS) quilombolas (MS), africanos, famílias tradicionais e tribos urbanas – Hip-hop, carismáticos e Country (GO).
Outras iniciativas analíticas residuais complementam o leque de possibilidades para explorar os acontecimentos relacionados à experiência local. São requeridos o conhecimento e a compreensão das causas da criação do Mato Grosso do Sul (MS), do fim do domínio holandês no Nordeste (PE), a origem das cidades goianas (GO), da região Centro-Oeste e do estado do Tocantins (TO), o alcance da Guerrilha do Araguaia, dos movimentos Trombas e Formoso (GO) e da urbanização do Nordeste (MS), e o significado da construção de Belo Horizonte para a modernidade republicana.

Os usos dos conhecimentos em termos de escalas, durações e procedimentos metahistóricos
O último indicador que exploramos refere-se aos usos que os elaboradores de currículo fazem da experiência local no que diz respeito a algumas das novas abordagens professadas pela historiografia acadêmica: durações, escalas e procedimentos de pesquisa e escrita da história.
Em relação aos jogos de duração, são exíguas as iniciativas desse tipo – a exemplo dessa expectativa que pode estar relacionando as durações conjuntural e breve: “Conceituar os ideais iluministas, identificando as transformações ocorridas na sociedade local...” (MS, 8º ano, 2011). Geralmente, quando postos em comparação numa mesma expectativa, os conhecimentos sugerem relacionamento entre durações do mesmo tipo, como nesse exemplo que explora a duração breve. “Identificar as consequências políticas do golpe militar (1964) em Goiás” (GO, 9º ano, 2007).
Em termos de escala, no entanto, as relações são invertidas. Raro é o confronto de conhecimentos referidos ao mesmo recorte espacial, como nesse exemplo: “Estabelecer relações entre a decadência da mineração e a ruralização de Goiás” (GO, 8º ano, 2007) [3]. Em geral, dominam as vinculações entre local e nacional, ainda que algumas propostas vinculem a história do município à experiência extra-continental – “Identificar a origem dos diferentes grupos africanos que foram escravizados na América portuguesa e, particularmente, em Goiás” (GO, 7º ano, 2007).
Por fim, além de prescrever acontecimentos no todo ou em parte, de os explorarem (ou não) em termos de jogos de escalas e durações, as propostas também empregam, ainda que raramente, o local como campo para o desenvolvimento de habilidades relacionadas às operações processuais do ofício do historiador. Dizendo de outro modo, a história local não é somente campo para conhecer. Ela é também campo para o saber fazer, exploradas mediante o desenvolvimento de habilidades preditivas, como nesses dois únicos exemplos extraídos da proposta de Goiás: “ Elaborar hipóteses sobre a ocupação do sertão goiano e o surgimento dos primeiros arraiais”; “Elaborar hipóteses sobre as consequências econômicas e sociais da descoberta de ouro no território goiano” (GO, 7º ano, 2007).
Alunos do curso de Licenciatura em História. Mesa redonda:
"Ensino, Memória e História". URCA, Crato-CE, 12 abr. 2012.
Professores Sônia Menezes, Itamar Freitas e Joaquim dos Santos. Mesa redonda:
"Ensino, memória e História". URCA, Crato-CE, 12 abr. 2012.

Conclusões
Vimos, então, que é bastante reduzido o espaço que a história local ocupa nas expectativas de aprendizagem (6%) destinadas aos alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. Além disso, a história local é desigualmente distribuída, seja no conjunto dos estados analisados (oito das dezoito propostas não a incluem), seja no percurso dos anos finais (o local concentra-se nos dois primeiros anos). Chama a atenção, nesse sentido, o fato de os estados da região Centro-Oeste reservarem maior espaço para a experiência local, quando comparados aos estados das demais regiões do país.
Acerca da natureza da história local disseminada, constatamos que as propostas exploram acontecimentos vinculados aos diferentes níveis da experiência humana. Abordam o político, o econômico, o plano simbólico, ideias, conflitos sociais, entre outros, estando, por isso, bastante distanciados da combatida história política de breve duração centrada nos sujeitos individuais pessoais mandatários do local (Algumas dessas histórias estão presentes nos livros didáticos de história regional). Tais acontecimentos são explorados em seus elementos constituintes – causas, consequências, características, significados – e não apenas ao exercício de sequenciação característico das cronologias.
Por outro lado, não localizamos significativo emprego dos jogos de duração. Em termos de jogos de escala, preocupa a reprodução de uma prática costumeira em vigor durante o século XX: a leitura do local como caixa de ressonância dos acontecimentos de abrangência nacional/global. As singularidades da experiência de municípios, estados e regiões não é enfatizada, como também as relações com os seus próximos, curiosamente omitida (ou pouco lembrada). As propostas também não empregam a história local como campo para o desenvolvimento de atividades metahistóricas, aliás, um problema que abrange também as outras rubricas contempladas, a exemplo da história do nacional.
Por fim, resta lamentar e convidar os elaboradores de currículo à reflexão (sorrateiramente sugerida no início dessa fala): se os anos finais do ensino fundamental podem ser considerados um momento de formação por excelência, e se a maioria das propostas e dos manuais de ensino e livros didáticos defende que o ensino de história considerar as memórias individuais e coletivas para a formação das identidades e, por fim, se tais identidades são consolidadas na experiência cotidiana e nas relações entre o global e o local, por que, então, não contemplar todo o currículo dos anos finais com a experiência do local? Por que segregar a história local aos anos iniciais, quando a maioria dos alunos ainda desenvolvem as competências básicas para a compreensão da escrita da história, e, em muitos casos, não dominam o código da escrita? Devemos continuar permitindo que o ensino da história local seja confundido, majoritariamente, com a memória do aluno ou dos pais dos alunos? Não seria o ensino de história local o canal de divulgação dos resultados da maioria das pesquisas produzidas nos cursos de licenciatura do Brasil?
Muito obrigado!

Para citar este texto

FREITAS, Itamar. História local e currículos de história (2007/2011). Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/04/historia-local-e-os-curriculos-de.html>.

Outra postagem sobre esse tema

FREITAS, Itamar. História regional para a escolarização básica no Brasil (2006/2009)

Confiram o filme
"Imagens da cidade", produzido por Maria Thereza (1998), é um bom exemplo de projeto interdisciplinar aplicado ao ensino de história local.


Imagens
Acervo de Itamar Freitas. 2012.

Referências
COLL, César; MARTÍ, Eduardo. Aprendizagem e desenvolvimento: a concepção genético-cognitiva da aprendizagem. In: COLL, César; MARCHESI, Álvaro; PALACIOS, Jesús (org). Desenvolvimento psicológico e educação. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004. pp. 45-59.
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. In: Historiografia sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. pp. 23-34.
FREITAS, Itamar. Fundamentos teórico-metodológicos para o ensino de História (Anos iniciais). São Cristóvão: Editora da UFS, 2010.
RODRIGUES, José Honório. História geral e história local. In: Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. pp. 149-153.
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.



[1] O exame foi efetuado sobre 1340 expectativas de aprendizagem (sentença que reúne habilidade(s) e conhecimento(s) requeridos aos alunos dos estados do Acre, Alagoas, Amazonas, Bahia (proposta de Feira de Santana), Ceará (proposta de Fortaleza), Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
[2] Neste caso, o exame não toma a expectativa de aprendizagem como base de cálculo. São os conhecimentos a matéria da estatística, uma vez que as expectativas apresentam variação não apenas na quantidade de verbos (habilidades), mas também na quantidade de conhecimentos (acontecimento tomado no todo, acontecimento tomado em parte, conceitos/generalizações/modelos, e procedimentos/técnicas).
[3] É claro que o exemplo só serve ser a “mineração” tiver ocorrência no território goiano.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Memória do Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

Detalhe da capa de Guia do Arquivo do IHGSE. IHGSE (2009). Hermerson de Menezes.
A idéia de constituir um arquivo já estava presente na primeira configuração do IHGSE. Foi proposta pelos estatutos de 1912 e mantida nas demais formatações (1917, 1950, 1967 e 2004). Desde a fundação do grêmio, esse elemento da estrutura administrativa sofreu algumas alterações sob o ponto de vista da vinculação, subordinação e hierarquia no organograma da casa, mas a sua relevância não foi questionada. Do mesmo modo que a biblioteca e o museu, o arquivo auxiliava no cumprimento dos principais objetivos do IHGSE: reunir material para o estudo da história e da geografia de Sergipe.
Sobre a constituição do seu acervo, pouco se sabe além do que informam as atas e os relatórios dos presidentes e secretários do Instituto. Pode-se, entretanto, conjeturar que eram tênues as diferenças entre os conjuntos do museu, biblioteca e do arquivo. Tais setores funcionavam como repositório de fontes entendidas como históricas e lugar de culto à memória local. Eles recolhiam toda espécie de “troféus” e de relíquias que pudesse reforçar a legitimidade do IHGS como guardião e promotor do sentimento pátrio.
Por isso, não encontramos indícios de que a “bala do drestroier Sergipe”, um calendário de 1820, um diploma de bacharel, emitido por uma universidade francesa em 1842, uma fotografia de político renomado, um recorte de jornal etc. estivessem situados em compartimentos separados, pelo menos até a administração da professora Thetis Nunes. Ainda em 2004, encontramos fotografias, diplomas e cartas nas paredes do museu, do mesmo modo que há livros impressos e exemplares de jornais no conjunto documental denominado como arquivo.
Julgamos que essa frágil distinção esteve relacionada, tanto às práticas arquivísticas difundidas no Estado, quanto ao modelo de biblioteca em vigor no final do século XIX e no início do século XX - a Biblioteca Pública Estadual mantinha uma sessão de manuscritos (ou uma sessão de arquivo). O outro fator tem ligação estreita com as formas de composição do acervo. Os sócios doavam aquilo que se lhes parecia legítimo como fonte de lembrança e como monumento para a história de Sergipe. Eram peças avulsas, de suporte vário e temáticas as mais distantes umas das outras, que por expedientes diversos estavam sob a guarda deste ou daquele membro do grêmio: documentação da vida pessoal do sócio, documentação de famílias consideradas tradicionais em Sergipe, documentação exarada por órgãos públicos – câmaras municipais, executivo provincial e de cartórios.
A essa prática colecionista – do sócio e, em segunda ordem, do Instituto – pode-se juntar um outro tipo de aquisição: a produção documental gerada pela atividade do próprio Instituto, notadamente da sua diretoria e das comissões permanentes. Quanto ao acervo da diretoria, observa-se uma certa organicidade, uma vez que o funcionamento da casa exigia a manutenção de algumas rotinas, tais como: lavratura de atas, organização da correspondência, pagamento de despesas e elaboração de relatórios.
Sobre a produção das comissões, entretanto, não há muita informação, nem dossiês identificados. Além dos originais remetidos à Revista – o que faz supor terem pertencido às comissões da Revista ou de Divulgação –, há centenas de peças entre inventários, testamentos, correspondência oficial, artigos, recortes de jornal, das quais não se tem como identificar a forma de entrada no acervo a que chamamos hoje arquivo. Podem ter pertencido á comissão de manuscritos, à de história, à de geografia, remetidos como doação ou transferidos informalmente da seção de manuscritos da Biblioteca Pública, hoje, Biblioteca Estadual Epifânio Dória, para o IHGSE. Sabemos que Epifânio Dória, secretário perpétuo do Instituto, exerceu concomitantemente e por muitas décadas as funções de Diretor da Biblioteca Pública e da Biblioteca/Arquivo do IHGSE.
Uma terceira e última possível forma de entrada são os conjuntos documentais produzidos ou acumulados por alguns sócios ao longo de suas vidas. Nesse formato se enquadram Armindo Guaraná, Fernando Porto, Ivo do Prado,  João Reis, José Calazans, José Figueiredo Lobo, Manuel dos Passos de Oliveira Telles, Padre Aurélio, Urbano Neto e o próprio secretário Epifânio Dória. O perfil de todos esses fundos também é plural. Há correspondência ativa e passiva, documentação pública empregada como fonte histórica, manuscritos, autógrafos e livros, folhetos impressos, recortes de jornal e fotografias.
Ainda não conhecemos as práticas arquivísticas de Epifânio Dória, mas da administração da Professora Thetis Nunes, há o relato de Luis Fernando Ribeiro Soutello que tentou dar uma lógica a essa massa documental. O seu trabalho consistiu na identificação de todas as peças, contidas em todas pacotilhas e caixas (do nº 1 ao nº 38) e no agrupamento de determinadas unidades documentais – uma, duas, cinco caixas – sob determinados títulos, por exemplo: “Coleção José Calazans”, “Assembléia Provincial”, “Testamentos”,  “Manuscritos” e “Diversos”.
Assim, com esse arranjo primário de documentação privada, pública, espécie documental etc., o acervo arquivístico do IHGSE tem sido consultado há dezoito anos aproximadamente, contando com um instrumento de pesquisa rudimentar, embora bastante eficiente – uma pasta classificadora com listagens do conteúdo das caixas. A documentação está enumerada e as peças estão encartadas em papel almaço. São 38 unidades documentais que somam, aproximadamente, 7m lineares. Registre-se também a existência de dois catálogos que descrevem a documentação organizada por iniciativas particulares, como a de Padre Aurélio de Almeida e as fotografias dos intelectuais sergipanos, organizados respectivamente, pelos professores José Ibarê da Costa Dantas e Jackson da Silva Lima,
Em maio de 2004, a graduanda de Licenciatura em História (UFS), Fernanda Cordeiro de Almeida, orientada pelo Professor Francisco José Alves (DHI/UFS), encerrou um trabalho de revisão do instrumento de pesquisa elaborado pelo Professor Soutello. Fez correções, aprimorou a formatação do texto, acrescentou índice onomástico e traçou um perfil do acervo sob o ponto de vista dos temas enfocados, espécies e suportes documentais. O trabalho excluiu a lista identificadora das caixas e deixou numeradas as 3.099 peças das 38 caixas em seqüência contínua.
Com a posse da nova Diretoria, o serviço de desmontagem de depósitos foi providenciado. Nessas realocações de acervo – iconografia, livros, objetos de museu, manuscritos, etc – muita documentação arquivística foi localizada e tombada. Também o acervo referente à administração da casa foi contabilizado (de caráter permanente) e reagrupado. Foram ainda incorporados ao acervo geral, os conjuntos doados por Armindo Guaraná e por Fernando Porto, que estavam armazenados em armários de madeira e pastas suspensas no museu e sala da presidência, respectivamente. A documentação do General Lobo, acondicionada originalmente em 3 baús, foi transferida para caixas-arquivo, bem como algumas peças encontradas durante a desmontagem dos depósitos, identificadas posteriormente como originais de Manoel dos Passos de Oliveira Telles e de Epifânio Dória. Essas providências fizeram com que o conjunto até então conhecido de trinta e oito unidades de arquivamento saltasse para 421 caixas.
A brusca ampliação do acervo arquivístico e a intenção de organizá-lo segundo as orientações da arquivística moderna – o respect des fonds (ou princípio da proveniência) – obrigaram-nos a tomar as seguintes providências nos últimos quatro anos: identificação de fundos e elaboração de um plano de classificação; ordenação dos conjuntos documentais (arranjo); intervenção nas formas de acondicionamento do acervo, tanto o já conhecido (as 38 caixas) como aquele que estava em processo de identificação (383 caixas); descrição dos dados contidos nas séries, sessões e fundos; e a elaboração de instrumentos de pesquisa. As duas últimas etapas – descrição e elaboração de instrumentos de pesquisa – ainda estão em curso e se demorarão por aproximadamente quatro anos, com os atuais recursos materiais e de pessoal do IHGSE.
O Guia que agora se publica, é o resultado do trabalho de dezenas de pessoas, entre bolsistas do curso de licenciatura em história da UFS, estudantes voluntários que lá fizeram suas monografias de conclusão de curso e dos profissionais que atuam há duas décadas nos serviços de difusão da casa. Nossos agradecimentos, portanto, às instituições que financiaram parte dos trabalhos – Prefeitura Municipal de Aracaju e Universidade Federal de Sergipe –, aos sócios João Fontes de Faria, Luis de Eduardo Magalhães, João Gomes Cardoso Barreto e aos trabalhadores responsáveis pela empreitada: Verônica Maria Meneses Nunes, Gustavo Paulo Bomfim, Ângela Nickaulis Aragão, Valdenir Silva Santos, Fernando dos Anjos Renovato, José Carlos de Jesus, Polyanna Aragão, Amanda Steinbach, Sayonara Rodrigues Nascimento, Ana Maria Pinto Neta, Maria Fernanda dos Santos,  Hermeson Alves de Menezes, Analice Alves Marinho, José Alberto Caldas Júnior, Maurício dos Reis Santos, Isabela Costa Chizolini, Ana Cláudia Rosa Nunes, Rita Leila Cardoso, Marcela Menezes, Lívia Santana Guimarães e Bárbara  Barros de Olim.
Este instrumento de pesquisa é destinado aos pesquisadores, aos nossos colaboradores e à comunidade sergipana em geral. Ele fornece uma visão geral da documentação custodiada pelo IHGSE, as formas de melhor acessá-la e de auxiliar à instituição na sua manutenção. O Guia é também uma amostra bastante representativa do acervo da instituição e do esforço empreendido  pela diretoria da casa, nos últimos quatro anos, para bem cumprir os objetivos fundamentais do grêmio: preservar a memória e viabilizar a elaboração de estudos históricos e geográficos sobre o Estado de Sergipe. 
Aracaju/Se, junho de 2007.
Itamar Freitas
Diretor da Biblioteca e do Arquivo do IHGSE

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. FREITAS, Itamar, MENEZES, Hermeson, ALVES, Marinho, CALDAS JÚNIOR, José Alberto, NUNES, Ana Cláudia, CHIZOLINI, Isabela, SANTOS, Maurício, NASCIMENTO, Sayonara. Guia do Arquivo do IHGSE. Aracaju: IHGS, 2009. pp. 9-13.

domingo, 14 de novembro de 2004

Bibliografia historiográfica do século XIX

Definindo a expressão: esse é um exercício de bibliografia antiga sobre as obras de história produzidas em Sergipe durante o século XIX. É bibliografia porque relaciona e  enreda os textos segundo os elementos de referência bibliográfica – autor, título, ano de publicação etc. É bibliografia antiga porque, além de limitar-se aos dados clássicos, não leva em conta a materialidade dos trabalhos, ou seja, não “envolve o estudo rigoroso dos livros como objetos físicos” – assinaturas, vinhetas, tipos, tinta, papel etc. – como se vem realizando em outros cantos do mundo. (cf. Darnton, 2004; Andrade, 2002).
Qual o valor de um estudo dessa natureza? A resposta aqui já foi anunciada: o oitocentos é o século da invenção de Sergipe. É o tempo da autonomia política, que faz par com independência, separação, identidade, concentração e controle local. Para fabricar essa formação social, as literaturas ficcional e historiográfica tiveram lá o seu papel. (A Semana em Foco, 31/10/2004). Assim, reunir os escritos que inventam um passado para Sergipe é também uma forma de estudar, concomitantemente, a construção desse próprio Sergipe e da atividade historiadora local.
Comecemos, então, pelos títulos. Eles são curiosos, alguns rabelaisianos. Observem o gênero expresso, o objeto tematizado e o emprego da história como adjetivo: Descrição geográfica da capitania de Sergipe d’el Rey (?, 1802); Memória sobre a capitania de Sergipe, sua fundação, população, produção e melhoramentos de que é capaz (Marco Antonio Souza, 1808); Descrição abreviada da Cidade de Sergipe d’El Rei, povoações, Vilas, Freguesias e suas denominações pertencentes a mesma cidade, e sua Comarca (José Teixeira da Mata Bacelar, 1817); Informação sobre a província de Sergipe em 1821 (José Antônio Fernandes, 1821); Memória histórica e documentada dos sucessos acontecidos em Sergipe de El Rei, sendo governador daquela Província Carlos Cezar Burlamaque que a foi criar, em independente, e separada totalmente da Bahia por decreto de sua Majestade fidelíssima de 8 de julho de 1820, e carta patente de 25 do mesmo mês e ano (Carlos Cezar Burlamaque, 1821a); Breve notícia sobre a Revolução do Brasil em 1821 nas províncias da Bahia, Sergipe e Alagoas, por serem estes lugares os que tenho viajado desde a época da Constituição; sobre o que descrevo o que tenho observado e ouvido dizer, etc. (sic.) (Antonio Moniz de Souza, [1823]); Notícia topográfica da Província de Sergipe, redigida no ano de 1826 (Inácio Antônio Dormundo, 1826); e Notícias geográficas e históricas desta Província ([Miguel Arcanjo Galvão], 1845/1847).
Claro que aí estão apenas os escritos produzidos até 1847. São poucos. São os que nos sobraram no momento. Também misturam geografia, etnografia, escrito de viagem e biografia sob a forma de relato administrativo. Mas, lembrem-se que estamos na primeira metade do século XIX. Nada de saberes especializados, fossem eles eruditos ou escolares. De “ciência”, exageremos, só uma: a ciência do Estado, a estatística – mensuração e controle das terras, águas, minas, plantas, animais, edificações e gentes.
Pelos temas, também sabemos das demandas. É o Estado um grande curioso dos seus domínios e potencialidades. Em princípio, essa imagem da Província é construída sob a política realenga ilustrada de D. Rodrigo Coutinho (1808). Depois, busca-se cumprir o preceito nacionalista integrador da Constituição de 1823 – a estatística provincial (cf. Leis do Império, 1887). Nos textos de 1802 e 1821,  estão as marcas do controle exercido, respectivamente, pelo governo da Bahia e pelo primeiro burocrata provincial – Carlos César Burlamaque. Nos dois últimos, não obstante as razões pessoais, o interlocutor (a ser construído ou corrigido) é o Estado.
O que há nesse desenho? Em primeiro plano, a natureza. Os homens são números. As povoações são quase comunidades religiosas. Nas páginas, comparando-se com a expectativa de futuro, o apelo ao passado é diminuto. As individualidades, por sua vez, ganham a cena nos fragmentos autobiográficos, onde a política é experiência hegemônica. As distinções brasileiros/portugueses, livres/escravos predominam. Mas já se nota um esforço em caracterizar o “sergipense” e em forjar para ele uma memória anterior a 1820.
Esse desenho tem o homem livre e letrado como autor, é óbvio: os secretários de governo, o brigadeiro português, o padre latinista aposentado, o tesoureiro, e somente um homem de primeiras letras – Antônio Moniz de Souza – (ainda que se recolhesse por anos ao convento franciscano do Rio de Janeiro).
Esse esboço é caracteristicamente descritivo, ganha a forma de relação, descrição, memória, breve notícia e notícia topográfica. Ele frequenta o imaginário de poucos leitores, além daqueles que governaram até meados dos anos 1840 e de alguns ciosos funcionários. Excetuando-se as denúncias de Burlamaque e de Moniz de Souza, publicadas na Bahia e no Rio de Janeiro, os demais escritos foram se abrigar nos arquivos das cortes lisboeta e carioca.
Por esse motivo, o último texto do período – Notícia topográfica [1845/1847] – merece atenção especial. [Galvão] teve acesso, provavelmente, à “estatística” de 1826. Efetuou pesquisas nos moldes pregados pelo IHGB dos anos 1830 – os questionários por carta –, divulgou os verbetes em periódico local e quis corrigir a imagem de Sergipe, impressa no Dicionário descritivo do Império do Brasil, do francês Milliet de Saint Adolphe (1845). Galvão ligou-se, portanto, a Dormundo (1826) e também a Travassos (1860), o autor da primeira narrativa global sobre a vida dos sergipanos.
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O segundo tempo dessa bibliografia pode ser iniciado com os trabalhos de Antônio José da Silva Travassos – Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe (1860) e Memorial histórico da Província de Sergipe (1866). Nada muito especial com essas primeiras narrativas gerais. Não são purezas de estilo, mas indicam outra mudança significativa nesse tipo de texto: a demanda por história – além da história de síntese –, é interna. É o empreendedor local quem também está preocupado com o desenvolvimento econômico e político da Província. Nas duas obras, Travassos transforma-se em conselheiro do Imperador e conselheiro do Presidente da Província, respectivamente. Tudo pelo bem comum dos sergipanos. Após Travassos, Sergipe ganharia um passado inscrito em papel, e o mito de origem – a conquista de Cristóvão de Barros sobre os índios (1590) – já poderia ser cultuado por todos.
A iniciativa particular, contudo, não inibe a ação do Estado. Ele ainda está interessado no desenho da Província. Em tempos de “conciliação”, e baseado em Aracaju, o governo autoriza os estudos sobre os limites entre Sergipe e Bahia. É preciso recuperar os vários quintos de território apropriados indevidamente pela “mulata faceira”. Dessa política, têm origem os trabalhos de Martinho de Freitas Garcez (1859) – Descrição sinóptica da Província de Sergipe (1859) –, de José Zacarias de Carvalho (1861) e a Memória de Joaquim José de Oliveira (1863).
De passagem pelos cartórios – arquivos disponíveis para poucos à época –, tendo os autos como testemunho das propriedades sergipanas, o pesquisador já não é mais um curioso que sabe compor. Ele estudou direito ou medicina e ensaiou os primeiros passos na literatura, as primeiras iniciativas da ficção em Sergipe. Assim ocorre com Joaquim José de Oliveira que produziu a partir de fontes cartorárias, não apenas sobre limites de Sergipe, mas também acerca de Simão Dias, o homem e a povoação. Esses foram os objetos das suas Histórias perdidas, publicadas em 1864.
O Estado interessado nos limites também motiva a produção da primeira monografia sobre uma das nossas ilhas de prosperidade em meados do século XIX. Por ordem de Manuel da Cunha Galvão, foi escrita a Memória sobre a Vila de Propriá, desde a sua origem até hoje. Esse trabalho, ainda inédito, fora remetido ao então Ministério do Império por seu autor, Antônio José Pereira Guimarães. O mesmo Cunha Galvão (1860), foi o responsável por inscrever nos anais da memória local a narração dos preparativos, festejos e felicitações que tiveram lugar por ocasião da visita que fizeram à mesma sua majestades imperiais em janeiro de 1860.
Na administração seguinte – de Tomás Alves Júnior –, talvez embalada pela contenda dos limites com a Bahia, a Assembléia Legislativa Provincial (1860) autoriza ao governo da Província a “dar 4000$000 a quem apresentar no prazo de 10 anos a mais completa história da província de Sergipe”, obra que seria julgada pelo “Instituto Histórico do Rio de Janeiro”. (Franco, 1879, p. 664-665). Registre-se ainda que, nessa mesma década (1854), os ensinos de história e de geografia são instituídos oficialmente no secundário local.
Na imprensa diária e nas casas editoras da Bahia, as histórias de vida de sergipanos, como os que combateram nas campanhas de Cisplatina e do Paraguai, por exemplo, dão um sopro no gênero de Plutarco. Surgem os escritos de Etelvino de Barros (1867), Severiano Cardoso (1867) e Justiniano de Melo e Silva (1872). É possível que os Apontamentos sobre alguns atos da vida pública do cidadão brasileiro José Pinto de Carvalho, publicado à época (1867), tenham sido o primeiro impresso autobiográfico do século.
Chegamos, finalmente, ao início dos anos 1870. Nenhum nativo habilitou-se a escrever a tal história solicitada pela Assembléia em 1860. Onde estariam os nossos cronistas? E os nossos românticos literatos? É exatamente nesse período que discursa em Aracaju um jovem egresso da Faculdade de Direito do Recife, com frescas leituras de Comte e de Darwin. Para o noviço Silvio Ramos, a resolução legislativa de 1860 significava um grande avanço em termos políticos. Mesmo que se desconte a investida retórica – da formação e da ocasião – o parlamentar deve ter inflado o ego dos presentes com esse juízo: “foi um exemplo sem antecedente nesse país, o de um intuito puramente literário e científico votado numa Assembléia. Isso exalta o espírito inteligente dos sergipanos”. (Ramos, 1874, p. 93). Depois do exórdio, é claro, vieram as críticas ao projeto e as novas orientações para a elaboração de uma síntese de história de Sergipe. Deveria ser uma obra cientificista, distante dos modelos apresentados no Brasil por “homens de cultura acanhadíssima, como um Pereira da Silva e um Adolfo Varnhagem”. Para o Silvio Ramos, os historiadores Brasileiros – cronistas – sequer copiavam “a concepção estreita” de gente como Guizot e Michelet, quanto mais conceber a história em moldes atualizados. Quanta arrogância! Nosso romantismo literário nem bem aflorava e já estava aquele frangote a jogá-lo no lixo, tudo por conta de um positivismo absorvido às pressas.
O que interessa concluir desse tempo é que o projeto foi aprovado em primeira discussão com as mudanças sugeridas. Mas, ninguém se atreveu a escrever a história local nos moldes indicados pelo bacharel Silvio Ramos, que também não se interessou pela história da acanhada Província. Preferiu, ele mesmo, esboçar a sua teoria sobre a história como ciência em 1880 e, mais adiante, numa obra que lhe traria muita fama: a História da literatura brasileira. Aí, em 1888, o deputado Silvio Ramos já se tornara o poderoso crítico Silvio Romero.
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A síntese histórica sobre a Província, como dito acima, não chegou a ser concluída. Ninguém ganhou o prêmio oferecido pela Assembléia Legislativa. Sabe-se da existência de dois manuscritos inéditos e não localizados que poderiam configurar iniciativas nesse sentido: o texto de Joaquim José de Oliveira, Apontamentos para a história de Sergipe, e o de Manoel J. de Oliveira [Campos], a Conquista de Sergipe. (cf. Guaraná, 1924; Freire, 1977). A tão esperada História de Sergipe seria publicada apenas em 1891, por Felisbelo Freire, médico e primeiro presidente republicano da terra.
A obra nascera cientificista – ao gosto de Silvio Romero – anti-romântica e anti-metafísica (?) – “Freire foi seguidor de Spencer do começo ao fim”. Mas, a forma expositiva não se distancia do modo clássico celebrado por Varnhagen como desejaria Romero. “Para Felisbelo Freire, como para os demais historiadores do seu tempo, historiar é narrar uma sucessão de eventos na ordem temporal que aconteceram. História é a epopéia da narrativa, verdadeira, de um reino, uma dinastia, um povo ou uma sociedade (...). Da tradição historiográfica do século XIX, o modo de segmentar o tempo também se mantém: “[e]m muitos estudos, o pesquisador manifesta sua opção por parâmetros de cunho político-administrativo para periodizar (...). Freire reparte a história do estado consoante os governos que o administraram desde a conquista até a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju”. (Alves, 2000, p. 15, 18).
Antes dessa síntese, algumas monografias foram ensaiadas, ganhando a forma de apontamentos históricos ou de corografias: Corografia do município de Lagarto, de Eutíquio de Novais Lins; Notícia histórica sobre o município de Divina Pastora, Alfredo Acioli do Prado; Apontamentos históricos e topográficos da vila de Campos, Joaquim Honório dos Santos; e Descrição de Itabaiana, de Armindo Guaraná (1886). Dessas iniciativas, lamentavelmente, pouco se sabe além dos títulos e autores. São trabalhos depositados em arquivos privados ou de institutos históricos, esperando pela curiosidade dos passantes. Desses quatro textos, apenas o de Armindo Guaraná encontra-se à disposição dos sergipanos no acervo do IHGS.
A biografia é outro gênero cultivado, nesse tempo que vai do discurso de Silvio Romero (1874) à primeira síntese científica, a História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891). A intenção biográfica era idêntica aos objetivos de Freire: tornar Sergipe conhecido no país e no estrangeiro; destacar os momentos em que a experiência local “influenciou” na trajetória da experiência nacional, entre outros (registre-se que o itaporanguense também iniciou-se nas histórias de vida com trabalhos sobre Gaspar Dias Ferreira e o Padre Antônio Vieira).
Além de Freire, nessa seara, também produziram: Apulcro Mota (1889), Gumercindo de Araújo Bessa (1889), Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior (1879/...), Manuel Curvello de Mendonça (1890) e Armindo Guaraná (1890/...). Bittencourt Sampaio, Horácio Hora e Tobias Barreto foram os objetos eleitos para figurarem no panteão do lugar – o grande poeta e primeiro republicano, o primeiro artista plástico e o primeiro filósofo. A morte dessas grandes “genialidades” nativas significou, paradoxalmente, a vida e o enriquecimento do passado sergipano.
Vários desses autores destacar-se-ão nas duas décadas iniciais do novo regime. Releve-se, entretanto, a grande fertilidade da escrita de Armindo Guaraná e de Carvalho Lima Júnior.
Guaraná é celebrado como o homem do Dicionário biobibliográfico sergipano (1925), obra volumosa – quase seiscentos verbetes – gestada com a experiência da transição monarquia/república. Experiência empregada, principalmente, na correção de outro monumento sobre vidas nacionais, o Dicionário bibliográfico brasileiro, de Sacramento Blake (1883/1902). Esta intervenção lhe causou muita dor de cabeça. Seus méritos foram empanados pelos baianos – alguns jornalistas de Salvador e o próprio Blake – o que gerou uma disputa identitária entre intelectuais daqui e de lá, veiculada na imprensa do Rio de Janeiro. A obra biográfica de Guaraná é tão possante que deixa na obscuridade a citada Descrição de Itabaiana (1886), seguramente, a primeira obra de corografia publicada em Sergipe.
 Quanto ao itabaianense Lima Júnior, militante republicano, jornalista, político engajado e cultor da polêmica, este é, talvez, o escritor que mais produziu no período e com objetivos não estritamente propagandísticos. Entre os nomes do século XIX, Carvalho Lima Júnior é, certamente, o único a rivalizar com Felisbelo Freire em termos de empenho na pesquisa documental, abrangência de períodos e temas. Pode-se dizer que ele permaneceu por mais tempo em contato com a documentação manuscrita em suporte papel e deu muita voz à tradição (oralidade).
Não é improvável que estivesse preparando uma versão concorrente à História de Sergipe de Felisbelo e seria, certamente, mais rica, dado o seu interesse por educação, economia, arte e literatura e os exercícios nos campos da biografia e da síntese sobre municípios. Por não beber do cientificismo dos bacharéis, talvez, fora mais presentista e explicitou o emprego de alguns princípios do método crítico.
Curiosamente, sua obra de maior fôlego ganha o público, apenas, no século XX, após a morte de Felisbelo e a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Mas, aí já é tarde para a fama de historiador. Nos rastros da queda do antigo regime e das primeiras críticas à inoperância da República, Sergipe já presenteara o centro do Brasil (Rio de Janeiro) com os nomes de Sílvio Romero, João Ribeiro e Manoel Bomfim, embora estes nativos pouco tenham contribuído para esclarecer questões sobre  o passado local, como bem fizera o itabaianense.
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Muitos homens talentosos construíram sua base humanística em Sergipe. Os professores locais e o ensino da gramática, história, grego, latim, nos estabelecimentos públicos e privados da Província e do novo Estado, provavelmente, têm seus méritos na trajetória intelectual de jovens, como João Ribeiro, Manoel Bonfim, Fausto Cardoso e até o próprio Silvio Romero. Os cruzamentos históricos, entretanto, não permitiram que o pequeno Sergipe se transformasse, repito, em objeto de suas obras historiográficas. Eles teorizaram sobre a história – pragmática, monística, evolucionista de vários matizes etc. – e construíram sínteses sobre a experiência brasileira, algumas das quais figuram como obras modelares, a exemplo de História do Brasil para o curso superior, de João Ribeiro (1900). Os que ficaram ou, pelo menos, os que partiram e voltaram a residir em Sergipe, não descuraram da experiência local, motivados por outras demandas que, por sua vez, geraram novas histórias sobre o Estado.
A primeira dessas demandas tem origem nas políticas públicas para a instrução primária. É com a República que os primeiros livros didáticos de história e de corografia são editadas por estímulo e até patrocínio do governo. O Regime é federado. Há espaço para Sergipe. É necessário, portanto, incutir nos escolares a idéia e a defesa dessa autonomia, o que é feito por meio da edição de: História de Sergipe, de Laudelino Freire (1898); Corografia do Estado de Sergipe, Luiz Carlos da Silva Lisboa (1897); e Quadro corográfico de Sergipe, Laudelino Freire (1898). Some-se a tais esforços o manuscrito inconcluso de Severiano Cardoso – [Corografia de Sergipe] e os estudos esparsos de Manoel dos Passos de Oliveira Telles, tratando do mesmo gênero corográfico.
A construção do passado local permaneceu como motivo importante para a produção historiográfica – experiência individual e legado coletivo – e independente, até, da ação do Estado. Esse pecúlio é disperso, fragmentário, sinóptico, ganha forma de artigo ou capítulo de obra nunca editada. Nesse sentido, devem ser considerados, principalmente, os trabalhos de Severiano Cardoso – Lagarto: história e costumes (1899); Pastor Sergipano – Estância (1899); Oliveira Telles – Ensaio sobre a música popular em Sergipe (1899) e Discurso [sobre a história política de São Cristóvão] (1900); Annibal Freire da Fonseca – Movimento literário [de 1890 a 1900] (1900), Sergipe intelectual (1900) e Tobias Barreto (1900); Balthazar Góis – Biografia de Francisco Hora de Magalhães (1900); Ovídio Alves Manaya – Tobias Barreto (1900); e de Carvalho Lima Júnior – Constantino José Gomes de Souza (1892). (cf. Almanaque Sergipano, 1892/1914; Guaraná, 1925; Almeida, 2004).
O discurso auto-referenciado de sergipanos também ganha reforço nesse tempo de biografias e de esboços sobre a produção intelectual. É provável que três histórias de vida, ainda parcamente conhecidas, tenham sido rascunhadas por seus próprios, digamos, personagens, ainda no século XIX. São os casos da Autobiografia de uma escritora – Emília Rosa Marsilac Fontes; das Recordações de uma vida..., representante da aristocracia local – Aurélia Dias Rollemberg; e de A vida de um pintor, que fundou a Escola de Belas Artes da Bahia – Oséias santos.
As três demandas já citadas – a celebração da própria memória, da experiência de notabilidades locais e da vida intelectual sergipense (dizia-se, à época, vida espiritual) estão juntas em duas obras monográficas que tratam a passagem do regime monárquico ao republicano. A República em Sergipe: apontamentos para a sua história (1891) e Sergipe: estudo crítico e histórico (1896) têm grandes méritos em relação aos demais. Eles tematizam o presente imediato e discutem sobre os lugares da crônica e da história – sobre os lugares do cronista e do historiador. Seus autores, respectivamente, Balthazar Góis e Manuel Curvello de Mendonça, apresentam diferentes visões sobre a chegada da República. A disputa, porém, não se resume aos conflitos de memória desses dois ativistas da propaganda, tampouco às teses sobre a recepção ao movimento republicano. São também um debate acerca do modo de se escrever a história: entre a justaposição de biografias e o exame das idéias em suas origens, causas e conseqüências. A discussão em torno do tema também gerará dois outros trabalhos, somente publicados no século seguinte: A década republicana em Sergipe, de Francisco Carneiro Nobre de Lacerda (1906) e A propaganda republicana em Sergipe, de Carvalho Lima Júnior (1917).
Esse último tempo da bibliografia historiográfica do século XIX bem poderia contemplar a fundação de gabinetes de leitura e a revitalização da biblioteca pública (no governo Felisbelo Freire) como demarcadores institucionais da escrita da história (notem que a idéia de Biblioteca Provincial, em 1848, já incorporava funções dos institutos históricos). Mas, as pesquisas ainda não permitem afirmá-lo. Se se quiser apontar alguma instituição aglutinadora de intelectuais que escreviam história, pode-se incluir o Almanaque Sergipano. Toda a geração uma nascida a partir da década de 1850 será acolhida pelas páginas do Almanaque, principalmente. Seus redatores eram historiadores. Por essa espécie de primeira vitrine coletiva, entretanto, pode-se também perceber que o trabalho é individual, as fontes constituem acervos privativos de cada historiador, e a escrita da história é, ainda, uma habilidade entre várias requisitadas ao homem das letras desse tempo.
Mudanças nesse quadro só teremos no século XX, quando a maioria dos citados fundará o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1912), cuja principal tarefa é a de reunir as fontes e ensaiar a escrita sistemática sobre as notabilidades individuais e sobre os municípios sergipanos. É um grêmio ecumênico, atrelado ao Estado e avesso à polêmicas. O IHGS congrega os interessados em servir à Clio, trata a história como ciência. Mas conserva práticas do ofício dos historiadores do século XIX, obviamente. Essas características serão abaladas a partir da morte da geração fundadora (décadas de 1920 e 1930) e com a introdução de matérias teórico-metodológicas no curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe, nos anos 1970. Aí principia o ensino sistemático do ofício do historiador. Ensina-se a escrever a história segundo normas da filologia, paleografia e diplomática alemãs e/ou francesas – regras codificadas na Sorbonne, à mesma época (fins do século XIX) em que os fundadores do IHGS solicitavam os instrumentos da biologia para praticar a história como ciência.
Nos anos 1990, a experiência com os projetos heurísticos e os grandes congressos realizados na década anterior, as pesquisas de pós-graduação dos professores do Departamento de Filosofia e de História da UFS e as primeiras orientações de bacharelandos vão fornecer uma base para que seja adotado o trabalho obrigatório de pesquisa e composição históricas no curso de licenciatura. Essa iniciativa já resultou em centenas de monografias e pode ser considerada como um dos principais traços institucionais que têm vincado a trajetória do ofício do historiador em quase dois séculos de escrita em Sergipe. A instituição do trabalho monográfico, pela mudança de hábitos na pesquisa, pela abrangência temática, topográfica e teórico-metodológica, pela quantidade de pesquisadores que tem revelado nos últimos dez anos e pela autonomia em relação às demandas do Estado merece exame particularizado que delimite com precisão a sua relevância para a historiografia sergipana. Mas, isso já é tratar da bibliografia historiográfica do século XX, objeto que extrapola as metas desse curso que agora se encerra.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 nov. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver o sumário desta obra, acesse:
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 11 de julho de 2004

As memórias de Antônio Travassos

Rememorar e fazer reviver o mito, historiar é constrangê-lo. Esse clichê faz parte do cotidiano dos historiadores e o livro lançado em junho último oferece boa oportunidade para refletirmos sobre o lugar comum.
A obra reúne dois trabalhos do comendador Antônio José da Silva Travassos (1804/1872): Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe e Memorial histórico da Província de Sergipe. Ambos foram produzidos no terceiro quartel do século XIX e narram a experiência sergipana desde a colônia ao tempo de Pedro II.
Muito feliz a iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura de reuni-los e divulgá-los para um conjunto de leitores mais amplo, justamente no ano em que se comemora o bicentenário do nascimento do autor. Talvez seja sintomático que, após a “Nota do organizador” – Luiz Antônio Barreto –, o texto introdutório – de Maria Izabel Ladeira da Silva – tenha recebido o título de “Elogio ao comendador”.
O “Elogio” fornece dados biográficos do autor, caracteriza-o como empreendedor e benemerente. Também comenta a importância dos textos como fonte histórica e historiográfica e alguns dos principais fatos estabelecidos. Quanto à “Nota”, lá estão os objetivos dos trabalhos de Travassos, o registro das sucessivas edições dos Apontamentos (1875, 1907, 1912, 1916) e do seu uso. O organizador também chama a atenção para a necessidade de serem localizadas as cartas topográfica e hidrográfica anexadas aos originais.
A “Nota”, o “Elogio” e, ainda, a “Fortuna critica” – produzida por Luiz Antônio Barreto, João José do Monte (neto do autor) e Maria Thétis Nunes –, são suficientes para o sucesso dessa tarefa de entronizar o Antônio Travassos na “galeria dos principais historiadores sergipanos”. Assim, uma típica operação de memória – a memória da cultura intelectual, da historiografia sergipana – foi realizada. Operação esta que possibilita, por outro lado, o exercício da crítica ao trabalho memorialístico do autor.
Óbvio que o depuramento já está presente na publicação em foco, quando o transcritor corrige sistematicamente, em notas de pé de página, as datas de nomeação e de posse dos presidentes da Província de Sergipe, presentes nos Apontamentos.
O constrangimento das memórias de Travassos – e memória em triplo sentido: gênero literário, método de acessar o passado e a própria lembrança – já se havia efetuado por José Calazans, na sua “Introdução à historiografia sergipana” (1973). O mestre apontou alguns equívocos do santamarense como, por exemplo, “a afirmação de que os holandeses edificaram, em São Cristóvão, a igreja matriz, os conventos do Carmo e São Francisco, bem como a igreja e a casa da Misericórdia, acrescentando que no frontispício da matriz achavam-se as armas dos holandeses, raspadas por ocasião da independência do Brasil”. (Calazans, 1992, p. 13).
Não sei por que José Calazans encerrou por aí os seus comentários. Ele poderia dizer que os holandeses nunca transferiram a capital São Cristóvão, que havia erros de datação sobre a origem de vilas e freguesias, que a narrativa da rendição dos índios era digna do anedotário dos cursinhos de pré-vestibular. Quem seria o grande protetor da memória de Travassos nos anos 1970? Talvez as “regras do bem viver em Sergipe” tenham pesado sobre Calazans no ato de ajuizar a obra do comendador.
Outra deficiência verificada pelos historiadores que tem consultado os Apontamentos – referida também no “Elogio” de Isabel Ladeira – é o descompromisso de Travassos com a indicação das fontes. De onde o autor colhera as informações sobre os nomes, os domínios e destinos dos grupos e dos chefes indígenas do século XVI? Seria a versão corrente entre os populares? Beatriz Góis Dantas (1991), fiel aos princípios da Escola Metódica francesa – “pas de document, pas d’histoire” –, não utilizou no livro didático a divisão geopolítica das tribos indígenas prescrita por Travassos.
Felisbelo Freire, que produziu há cento e dez anos antes de Beatriz Góis, não arriscou afirmar em sua História de Sergipe (1891) que o território sergipano estava exatamente dividido entre “seis departamentos, sendo comandantes ou caciques dessas divisões” as figuras de Muribeca (entre o rio Itapicuru e Vasa-barris), Sergipe (Vasa-barris/Sergipe), Siriri (Sergipe/Siriri), Japaratuba (Siriri/Poxim do Norte), Pacatuba (Poxim do Norte/serra da Tabanga)  e Pindaíba (serra da Tabanga/riacho Tamanduá).
Hoje, qualquer cidadão de letramento mediano não aceitará como verossímil a conquista de Sergipe narrada por Travassos: Cristóvão de Barros excursionava com “duas embarcações de pequena lotação... algumas praças, armamentos e munições.” Após uma tempestade, saltou em terra e tentou comunicar-se com os índios. De nada adiantaram “os meios brandos e suasórios” do português. Os caciques Sergipe e Siriri resistiram e “romperam as hostilidades. Nos ataques havidos, morreram não só Siriri, como muitos dos seus companheiros, e sendo prisioneiros outros” (p. 27-29).
Essas notas não devem desbotar a iniciativa da publicação porque mais importante que a história em si (irrecuperável) é a forma como ela foi narrada; é saber como Travassos corrigiu os trabalhos anteriores; é ter notícias sobre a consciência de historicidade que possuíam os homens do século XIX e sobre o quantum de conhecimento que os “fazendeiros rústicos” acumulavam do seu passado tricentenário; é também compreender (se), como e por que os Apontamentos foram depurados nos sucessivos originais localizados até o momento. Com o livro em foco tais questões já podem ser investigadas.
Na edição da semana passada, comentei sobre as possibilidades de pesquisa que foram abertas com a publicação dos Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe de José Antônio Travassos. O livro foi organizado e anotado por Luiz Antônio Barreto e comentado por Maria Izabel Ladeira Silva, numa meritória iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura (Aracaju, 2004). Hoje, teço considerações sobre segundo e último texto dessa obra intitulado Memorial histórico da política da Província de Sergipe.
Já tive oportunidade de escrever em outro periódico – e aqui apenas resumo os tópicos principais – que os Apontamentos fazem a síntese da experiência sergipana, e o Memorial retrata somente uma faceta, a vivência política. Enquanto nos Apontamentos, o autor procura “seduzir o Imperador para o seu projeto, do qual se beneficiará como fazendeiro e potencial contratante” (Dantas, 1995, p. 6), no Memorialestá implícita a idéia de “guiar” o novo presidente de Sergipe para o projeto político pessoal do santamarense Travassos (cf. Freitas, 2002, p. 61). Isso faz desse segundo texto, além de fonte sobre a escrita da história, um representativo testemunho das formas de se pensar e praticar a política numa Província de “quarta classe”, como era o nosso caso na década de 1850. (cf. Almeida, 1984, p. 251).
Para avaliar a exposição desses projetos, basta observar as intrusões do narrador – bem comportado e organizado. Um nome, uma data, uma contribuição ao progresso de Sergipe, o clima de disputa entre facções dominantes e está pronta a “história” de determinado período de governo. Mas, a situação altera-se quando entra em cena um personagem chamado Comendador Travassos. Nesses momentos, como a visita do Imperador Pedro II a Sergipe, o narrador permite-se uma longa digressão, um tanto “excêntrica da história”.
É um narrador “isento” quando se refere ao personagem Comendador Travassos, citado uma dezena de vezes. Mas, é, abertamente, um liberal – mesmo partido do Comendador Travassos – quando relaciona a ação dos conservadores – partido das famílias Dias Coelho, e Boto – à rapinagem, prisões ilegais, fraudes eleitorais e assassinatos.
Outra forma de acompanhar o movimento político e a intenção monumentalista de Travassos é examinar a questão dos tempos. No Memorial, o tempo histórico acompanha, não raro, com bastante proporcionalidade, o tempo da narrativa que só é quebrada, quando entram na trama os fatos que conformaram a Revolução de Santo Amaro, a Guerra do Relógio, o momento da “conciliação”, além da citada visita do Imperador. Nesses instantes, o cronômetro pára, e o narrador tem espaço livre para descrever os acontecimentos.
Não se diga, porém, que tal coincidência está relacionada à proximidade de Travassos com os referidos episódios. O Comendador também foi partícipe da transferência da Capital, fato dos mais rumorosos entre os grupos políticos do período. Entretanto, nem por isso é explorada a questão. A mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju é assunto que ocupa duas linhas do Memorial. Para os novos historiadores, essa hipotética omissão do narrador poderá render páginas e páginas sobre a relação entre escrita da história e atividade política do período em foco.
Entre as intrusões e afrouxamento do tempo narrativo, o leitor poderá questionar se os “conselhos ao príncipe” foram seguidos ao pé da letra, se o conhecimento do passado foi determinante na ação política de Silva Moraes, Presidente de Sergipe. Certamente, ficará impressionado com as sugestões do Comendador para o progresso da Província no que diz respeito à produção açucareira: a modernização da atividade – separando as esferas do cultivo e da indústria – e a extinção do sistema escravocrata. Ocorre que a modernização da atividade açucareira e a reorganização do trabalho já encontraram seus explicadores no século XX (cf. Almeida, 1993; Passos Sobrinho, 2000) e mais surpreso ficará o leitor de Travassos quando conhecer o número de variáveis incorporadas ao processo histórico local que acabaram por condenar Sergipe à submissão político-econômica da Bahia, apesar de sua clarividência.
Fará melhor proveito, portanto, o leitor que, não priorizando o exame das capacidades preditivas do Travassos, puder centrar seus estudos na apreciação das várias “intrusões” do narrador relativas, por exemplo, não só à mentalidade das elites políticas do período, mas também ao grau de civilidade da população sergipana, ao poder de coerção exercido pela Bahia, ao nível de organização dos proprietários rurais, ao caráter antidespótico do Partido Liberal, entre outras.
Com esses esparsos comentários gostaria apenas de reiterar a importância da iniciativa da publicação das memórias do Comendador. Conservar peças e facilitar o acesso aos textos representa um substancioso estímulo aos pesquisadores do século XXI a preencherem com alguma interpretação essa verdadeira “tábua de pirulitos” que é a historiografia sobre o século XIX sergipano. É a partir da divulgação e da crítica sistemática à memorialística produzida no século XIX que se poderá pensar nas possibilidades de uma síntese sobre a experiência local desse período. É também do exame de obras com tais características que se poderá compreender a suposta transição da narrativa histórica local do seu status de crônica para o caráter de ciência.
Em tal sentido, faço minhas as palavras de Izabel Ladeira: “Nós que lidamos com o ensino e a pesquisa histórica em nosso dia a dia nos sentimos premiados com esta nova edição” dos Apontamentos e do Memorial.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Memórias de  Antônio Travassos (Final). A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 jul. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.