Mostrando postagens com marcador Ensino médio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ensino médio. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Base Nacional Comum do Currículo em debate

Detalhe do cartaz do evento.
Hoje pela manhã (25/11/2014), quatro especialistas compuseram mesa redonda, no salão nobre da Faculdade de Educação da Unicamp, que pautou o assunto da hora: a formação da Base Nacional Comum do Currículo (BNCC). Só para rememorar, a BNCC é uma exigência do Plano Nacional da Educação (PNE), discutido pela sociedade civil e pelo Congresso e sancionado pela presidente Dilma em junho último, ou seja, é lei que deve ser posta em prática em 2017. E isso altera (imediatamente, durante ou após a implantação, ainda não o sabemos) a formação de professores e a produção de material didáticos para todas as áreas e níveis de ensino.
Carlos Artexes Simões
Ítalo Dutra
Na plateia, algo em torno de duzentas pessoas: doutorandos, professores universitários de diferentes áreas, gestores educacionais, sujeitos interessados na elaboração e avaliação de políticas públicas educacionais, inclusive docentes formadores de professores de história da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). 
Na mesa, Carlos Artexes Simões, ex-diretor de currículo da educação básica da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC, 2008/2011) e Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET/RJ), Monica Ribeiro da Silva, professora na Faculdade de Educação (FE) e Coordenadora do Observatório de Ensino Médio na Universidade Federal do Paraná (OEM/UFPR), Ítalo Dutra, professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CA/UFRGS), atual Coordenador Geral de Ensino Fundamental, da Diretoria de Currículos e Educação Integral, da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC) e a moderadora Nora Krawczyk, do Grupo de Políticas Públicas e Educação (GPPEU) e da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp).
Nora Rut Krawczyk
Monica Ribeiro da Silva
Vou resumir algumas das principais teses comunicadas pelos palestrantes, sem a intensão de ser fiel à quantidade e a ordem dos argumentos. Mesmo porque o debate foi transmitido ao vivo e deverá ser disponibilizado na rede mundial de computadores em poucos dias. A ideia aqui é somente registrar a discussão e estimular os colegas a acompanharem “o rumo da prosa”, que muito nos interessa.
A fala da professora Mônica eu não assisti. Para quem não mora em Campinas, participar de um debate na Unicamp, saindo de São Paulo no mesmo dia do evento, é uma  Odisseia (e tem gente que diz que Ceilândia é longe do Plano Piloto!). Em síntese: atrasei e o que sei é o que contou meu colega de plateia. Portanto, é mais sensato silenciar e acompanhar os originais quando a Unicamp os disponibilizar.
A fala do professor Simões, assisti de modo integral. Bastante irreverente, o palestrante cativou a plateia com o seu modo irônico de criticar a iniciativa do PNE e do MEC. Três frases resumem o seu discurso: 1. a BNCC é desnecessária e é impossível de ser efetivada, já que uma lei não constrói o real; 2. o Brasil é muitíssimo diverso e uma base pode se transformar em currículo único, o que seria um desastre; e 3. o debate (ou os debatedores) de uma base nacional comum vende(m) a ilusão de que os problemas educacionais brasileiros seriam todos equacionados a partir da construção do um documento.
No momento estendido à manifestação da plateia, questionei o professor sobre que fazer diante de um fato: a lei que institui o PNE prescreve a BNCC como uma de suas metas. A resposta dele foi simples e direta: “desobediência civil”. É mais uma lei que a gente faz e finge que cumpre, complementou.
Ilustração do Portal do PNE, criado pelo MEC.
A apresentação do professor Ítalo Dutra, que substituía a coordenadora de Currículos da SEB/MEC, foi um convite à ponderação. O palestrante tratou de informar que o debate é antigo e adiantou os poucos consensos do MEC a respeito da prescrição do PNE. Afirmou que o Ministério vivencia a transição conceitual e operatória das “expectativas de aprendizagem” para os “direitos de aprendizagem” – em curso no MEC nos últimos três anos. Isso significa sair da espera para chegar à responsabilização. Tema bom, que não foi explorado a contento por causa do tempo. Por fim, o que nos interessa de perto, Dutra informou que um grupo de aproximadamente 50 especialistas trabalha em um texto (uma espécie de carta que reúne os principais “direitos de aprendizagem e desenvolvimento”) e vai nortear a discussão, a ser conduzida por uma ampla rede de instituições que lidam com as políticas educacionais.
O professor Dutra foi claríssimo: o MEC não vai fazer a o texto da BNCC. O MEC vai coordenar a discussão e a construção do documento. O que é consenso na atual equipe da SEB (sobre a qual não se sabe o destino, após dois de janeiro) é que os objetivos educacionais devem ser elaborados, em última instância pelos operadores do sistema: os professores. Também é consenso que a BNCC excederá os conhecimentos conceituais e que a discussão sobre a mesma deve ser transformada em uma iniciativa de formação. Isso implica dizer que serão produzidos materiais que circularão em todas as escolas para envolver, viabilizar e estimular a participação de todos os docentes. 
Detalhe da capa de um dos Cadernos do Pacto Nacional
Pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Produção do
Observatório Nacional do Ensino Médioda UFPR,
um dos organizadores do evento.
Terminadas as falas, a plateia foi convidada a questionar e posicionar-se. O interesse foi grande e a seção se estendeu até as 13h, aproximadamente. Entre as principais temáticas, destaco: a denúncia de que já existe uma base nacional e ela é construída pelos livros didáticos e a reiteração de antigo pleito do Unicef: uma base ou qualquer outro documento que assegure juridicamente o direito de aprender (dos alunos afrodescendentes e indígenas, por exemplo). 
Os palestrantes também foram questionados: sobre a limitação das contribuições dos professores da educação básica, dada a precariedade da sua formação; sobre o possível esgotamento da BNCC já que o MEC reserva ao ambiente escolar a elaboração dos objetivos educacionais; sobre as razões para o MEC não definir a referida BASE, já que é função do órgão produzir e implantar políticas para o setor (questão da professora Nora Krawczyk, a moderadora do debate); sobre a semelhança entre base nacional comum e as diretrizes curriculares para o ensino fundamental em vigor; acerca da razão do não uso do termo parâmetros curriculares; o motivo de o MEC coordenar um documento pouco prescritivo, pois objetivos gerais induzem a interpretações variadas, transformando a provável base em um instrumento inócuo.
Ao final do debate, penso que ampliei as minhas convicções acerca do tema em discussão. Em primeiro lugar, sobre a frase mais repetida da seção: “ter um texto de base” não é ter uma base nacional comum”. A sentença é óbvia (lembra aquele tipo de questão de epistemologia que os nossos calouros de história odeiam: "o real existe por si mesmo ou é construído pela nossa retina?). Contudo não ter “um texto base” não significa "não ter uma base nacional comum". Ela já existe. O poder não admite vácuo. Professores demandam sobre fins, estratégias de ensino, valores e habilidades a desenvolver e conhecimentos conceituais-factuais a comunicar. Na ausência da orientação na formação inicial (e mesmo na existência dela), professores seguem a Matriz do Enem ou (e) os materiais didáticos distribuídos pelo MEC, mas não construído por ele (o MEC).
Detalhe da capa da brochura
Núcleo comum dos conhecimentos e
das competências
na França
Se depois da ressaca da globalização as nações (bem reais) não sucumbiram, como apocalipticamente pensavam alguns colegas meus, no início da década de 90 do século passado (sou velho), se depois dos tão criticados exames transnacionais como o PISA, Espanha, França, Estados Unidos – países tão diferentes em termos de formação étnica, sistema político, contingente populacional, poder de intervenção no concerto das nações estão às voltas com os seus Common Core Curriculum, Socle Commun etc. porque o Brasil seria, exatamente, na relação Estado-sociedade-educação escolar uma espécie de planta exótica? Porque aqui não se pode sequer discutir a possibilidade de uma base nacional comum para a educação escolar básica – um instrumento existente, de certo modo, até mesmo, no caso de História, nos desenhos curriculares das universidades públicas? (Alguém classifica como sério um curso que não possua em sua grade as disciplinas de teoria da história, metodologia da história, história da historiografia, introdução à história, por exemplo? Essas matérias não constituem parte de uma espécie de BNCC do ensino superior?).
Outra convicção reforçada, e aqui já vou encerrando este texto, tem a ver com o papel do MEC nessa iniciativa. Penso que cabe, sim, ao Ministério a produção de um texto comunicando uma base nacional comum de finalidades e conteúdos para todas as áreas e todos os níveis de ensino. A presidente, o ministro da educação, o secretário da educação básica e o coordenador de currículos da SEB têm legitimidade para isso. É uma legitimidade concedida pelas urnas, ou seja, pelos movimentos sociais ou pela sociedade civil, como queiram. Não foi essa a prática democrática que muitos de nós defenderam nos últimos 30 anos, a apresentação de programas políticos em disputa e a eleição direta de um gestor para implantar o projeto vencedor?
É claro que as consultas são necessárias, mas o MEC não pode ficar refém de uma discussão interminável que envolverá mais de cerca de 2,5 milhões de professores, com interesses os mais diversos, reservas de emprego (não se pode falar em mercado), sensibilidades afloradas por medo de perder esse ou aquele espaço nos títulos das prescrições e nas plaquetas que identificam os edifícios e salas das instituições, na distribuição do tempo (cronológico) escolar, além das lutas que envolvem as singularidades dos níveis de ensino, ideologias e dos diferentes graus de engajamento em relação à extensão do direito de o aluno aprender algo, entre outros. Qual a sua posição?
Uma síntese da experiência estadunidense mais recente de
construção de uma base nacional comum
Na saída da seção, um colega da matemática (professor universitário) me confidenciou: “saio dessa sala com a impressão de que o pessoal das humanas e sociais odeia tudo que cheire a resultado. Qualquer coisa que remeta a objetivos, avaliação, cobrança etc. é visto como autoritarismo. Autoritarismo (de esquerda) é o que tentam fazer aqui: impedir que os professores da escola básica sejam informados claramente sobre o que o aluno deve aprender, partindo a obtusa ideia de que ninguém tem autoridade para dizer o que é ou não minimamente indicado a ser ensinado na escola (para que servem esses títulos de doutorado, então?). A postura de dizer que não há diferença entre a ignorância e o saber é tão autoritária quanto a denunciada intensão de querer prescrever conteúdos para a maioria da população brasileira. Nesse ambiente surreal, quem sai ganhando, mais uma vez, são os empresários, que parecem ter descoberto, há algum tempo, a necessidade de planejar, observar o que está dando certo e não ter medo de corrigir e prescrever novos rumos”.

Acho que chega, por hoje! 
Na próxima, tratarei, novamente, de alfabetização e ensino de história. Dessa vez, dialogando com algumas posições da professora Margarida Oliveira.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Política pública para o livro didático no Brasil

Goiânia-GO. Locus da pesquisa sobre o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio - PNLEM.
Em Política do livro didático para o ensino médio: fundamentos e práticas, Fernando de Garcez de Melo, orientado por Maria Abádia da Silva (UnB), avalia o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio a partir da experiência local, ou seja, da escolha, distribuição e uso dos livros de História nas escolas de Goiânia, entre 2007 e 2011. No entanto, como vício ou virtude – proveniente, talvez, do quadro teórico adotado (Gramsci, Thompson, Coutinho, entre outros) –, ele ensaia uma história das políticas públicas brasileiras que têm o livro didático como foco, entre 1938 e 1994.
Por que vício? Porque não era necessário voltar à década de 1930 do século passado para avaliar uma política (ou um programa?) inaugurada na primeira década do século XXI. O início da história depende da pergunta central e esta me pareceu muito clara: “Como a política do livro didático possibilitou o acesso ao conhecimento escolar de história para os estudantes do ensino médio público diurno no município de Goiânia, de 2007 a 2011” (Melo, 2012, p. 3). A volta ao período Vargas – ou ao tempo do estado interventor, supostamente pioneiro na criação de políticas para o livro didático – talvez se justifique pela necessidade de demonstrar o papel das estruturas, daí o privilégio do exame num tempo conjuntural. Como desdobramento desta justificativa, o presente não seria bastante significativo como história (?).
Fernando Garcez de Melo
No entanto, o recuo no tempo aparece também como uma virtude. Isso porque, há mais de uma década, os pesquisadores que se debruçam sobre os livros didáticos de história ensaiam uma história do PNLD, não se distanciando, geralmente, das afirmações fornecidas nos sites do Ministério da Educação – MEC e do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação – FNDE.
Assim, orientado pelos conceitos de Estado, sociedade política, sociedade civil, regulação e contradição, Fernando Garcez de Melo afirma que a instituição da Comissão nacional do Livro Didático – CNLD (1938) foi “a primeira preocupação oficial com o livro didático no Brasil” (Melo, 2012, p. 15). A iniciativa de avaliar, certificar e disciplinar, enfim, de regular a circulação de livros didáticos no Brasil justificou-se a partir do interesse de disseminar da “ideologia dominante” (Melo, 2012, p. 17), mas enfrentou problemas na sua efetivação, dada a “imensa burocracia e a incapacidade de executar e materializar a política do livro didático” (Melo, 2012, p. 18). Tais regras foram modificadas com a emergência da ditadura militar de 1964, que manteve a tendência centralizadora, difusora de ideologia, embora sob a ótica do tríptico tecnicista originário dos Estados Unidos: racionalidade, eficiência e produtividade.
Com o fim da ditadura militar, as políticas públicas educacionais são elaboradas no solo social do conflito entre dois “projetos de reestruturação do poder e de representação de interesses”: o liberal-corporativo (neoliberalismo) e o da democracia de massas. (Cf. Melo, 2012, p. 40). Sob a predominante visão neoliberal, o Estado brasileiro efetiva a regulação da educação pública em três dimensões (mediante seus respectivos instrumentos): 1. regulação transnacional – conferência de Jomtiem (Para lembrar ao leitor, é aquele evento do qual saiu o relatório Delors que disseminou as competências básicas da educação escolar no globo: saber, fazer, conviver e ser); 2. regulação nacional – Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB e Programa Nacional do Livro Didático - PNLD; e 3. regulação local – estratégias de sobrevivência dos profissionais docentes (apropriação das normas nacionais) diante das estratégias de regulação nacional.
Mais recente Guia do Livro didático
para o ensino médio.
Para o autor, portanto, o PNLD e, obviamente, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio – PNLEM são iniciativas de regulação neoliberal. O primeiro é reformulado em 1995, desencadeando a criação de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), instâncias de avaliação do livro didático (FAE), divulgação dos resultados da avaliação (Guias do PNLD) e incentivo às empresas editoras. O segundo, o PNLEM, é instituído por obra do poder executivo em 2003 e (dadas as exigências dos organismos internacionais e o pauperismo da população brasileira) “atende a uma dupla função: propiciar o acesso ao livro e livro didático e incentivar a cadeia produtiva do setor empresarial de livro” (Melo, 2012, p. 68).
Os resultados relacionados diretamente à questão central são apresentados nos capítulos III e IV da dissertação, que trata da percepção dos alunos e dos professores sobre o programa, do detalhamento das diferentes formas de regulação, do conflito entre as prescrições do Estado e as ações dos professores. Fernando afirma que a implantação do Programa atende aos interesses da indústria editorial e é também fruto das demandas dos professores e alunos a respeito do livro didático de história.
A efetivação da política, entretanto, não se faz sem percalços. Professores, por exemplo, reclamam da ausência das obras no ato da escolha, do escasso tempo destinado pelo MEC para a seleção, do dispositivo da lista fechada (títulos restritos aos apresentados no Catálogo do PNLD), do não atendimento das suas opções de título, e da ausência da história local nas obras que chegam até a escola.
Ainda assim, alunos e professores (não obstante as mais variadas formas de uso desse artefato) convergem na opinião de que a política do livro didático favorece o acesso ao conhecimento e representa a conquista de um direito. Partindo do depoimento de 11 docentes e 146 alunos, Fernando também reconhece que o PNLD para o ensino médio é um instrumento de regulação do Estado. Entretanto, tal regulação se manifesta, no caso de Goiânia, como “microrregulação e autorregulação ético-política”. Em outras palavras, professores criam e ajustam os livros “conforme as características, em especial, didáticas dos estudantes, incluindo as temáticas regionais” (Melo, 2012, p. 142).
Por este resumo, não é difícil reconhecer o valor do texto de Fernando. Ele fornece uma narrativa clara sobre a história das políticas com foco no livro didático, orienta-se por um quadro teórico, sustenta seus argumentos com fontes autorizadas, e, por fim, avalia o mais robusto programa educacional desenvolvido pelo MEC e, talvez, o maior, em termos de livro didático, em vigor no mundo.
Aspecto do prédio principal da Faculdade de Educação da UnB
Voos largos, entretanto, significam maiores possibilidades de equívocos. Para o regozijo do autor, boa parte deles reside nas teses da bibliografia referenciada e estão localizados na primeira parte, ou seja, nos capítulos I e II, que narram a experiência do estado brasileiro com as políticas para o livro didático.
Facilmente reparáveis, os excessos referem-se, principalmente, às generalizações pouco refletidas a respeito do papel centralizador e autoritário do governo Vargas, por exemplo, do caráter pioneiro da Comissão Nacional do Livro Didático em termos de políticas oficiais para o livro didático no Brasil, do rótulo de “liberal-escolanovista” para os PCN de História, o denuncismo “ingênuo” sobre interesses e práticas estatais para a difusão de determinada ideologia, e a condenação dos termos "racionalidade", "eficiência" e "produtividade" como inerentes à uma suposta teoria educacional de corte "tecnicista".
Os senões, corrigidos nos próximos 30 dias (quando a dissertação será disponibilizada em definitivo ao público), não maculam as suas virtudes. O trabalho apresenta coerência entre enunciado da questão, objetivos e o seu autor demonstra compreender bastante o “objeto realidade”, atributo raro em profissionais que não estão na “linha de frente” das políticas públicas. Bons exemplos dessa compreensão são o reconhecimento da impossibilidade de o livro didático responder a todas as demandas legais e pedagógicas, seja do Estado, seja de professores e alunos e, principalmente, a conclusão ponderada e politicamente madura sobre relação sociedade política/sociedade civil, não recaindo no ceticismo imobilista, que é fatal para quem estuda e atua em políticas públicas educacionais.
A dissertação de Fernando de Melo, por fim, ainda que de forma indireta (não era a sua intenção), propicia aos estudiosos um bom exemplo de como a objetividade das verdades nas ciências humanas são produzidas a partir da intersubjetividade resultante do cruzamento de vários trabalhos produzidos sob regras do ambiente acadêmico. Quem se der ao trabalho de examinar outros textos sobre apropriação dos livros didáticos de história em estados como o Ceará e Minas Gerais poderá surpreender-se com a semelhança nos resultados, apesar de as pesquisas realizadas fora de Goiás/Brasília estarem orientadas por autores bem distantes de Gramsci, a exemplo de Michel de Certeau e Roger Chartier.
Célio da Cunha (examinador), Fernando Garcez de Melo,  Maria Abádia da Silva (orientadora) e Itamar Freitas (examinador).
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, 24 abr. 2012.

Para entrar em contato com o autor
Fernando Garcez de Melo <garcezgyn@hotmail.com>.
Conheça outra publicação de Fernando Garcez de Melo sobre livros didáticos

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Política pública para o livro didático de história no Brasil (1938/2011). Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/04/politica-publica-para-o-livro-didatico.html>.

Fontes das imagens
Goiânia. Disponível em: <www.brasil.com.br>. Capturado em: 25 abr 2012.
Guia do livro didático do ensino médio - história. Disponível em: <www.fnde.gov.br>. Capturado em: 25 abr. 2012.
Fernando Garcez de Melo. Foto de Rodrigo Garcez. Aparecida de Goiânia-GO, abr. 2012.
Célio da Cunha, Fernando Melo, Maria Abádia da Silva e Itamar Freitas. Foto de Rodrigo Garcez. Brasília, Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. 25, abr. 2012.

Outras postagens sobre esse tema
A ação do PNLD em Sergipe e a escolha do livro didático de história (2005/2007). Disponível em: < http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/12/acao-do-pnld-em-sergipe-e-escolha-do.html>.
Currículos e programas de outros tempos: a experiência dos estudos médios no Brasil (1820/2004). Disponível em: < http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/10/curriculos-e-programas-de-outros-tempos.html>.

Referências
MELO, Fernando Garcez de. Política do livro didático para o ensino médio: fundamentos e práticas. Brasília, 2012, 158 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Currículos e programas de outros tempos: a experiência dos estudos médios no Brasil (1890/2004)

Colégio Pedro II (Rio de Janeiro-RJ). Primeiro 
estabelecimento de ensino secundário no Brasil.
Caríssimos colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer a presença de todos e cumprimentar a presença da professora Lúcia Elena Lodi, nossa convidada do MEC. Gostaria de parabenizar Secretaria de Estado da Educação pela iniciativa de discutir os novos rumos para o ensino médio. E também quero agradecer às professoras do setor de Ensino Médio da SEED, em particular às professoras Claudina e Clotildes e, por fim, agradecer à professora Isabel Ladeira pelo convite para participar deste evento.
Nesta manhã dará ênfase à palavra identidade, como está no título da nossa mesa redonda. A fala está distribuída em quatro tempos. No primeiro, tratarei do sentido da palavra identidade. No segundo, aplicarei a definição de identidade com a intenção de abarcar a experiência dos estudos médio no Brasil no século XX. Em seguida, apresentarei alguns sentidos colhidos pelos historiadores dos estudos médios no Brasil. E, finalmente, apresentarei outras situações onde a idéia de identidade será necessária no processo de implantação do ensino médio integrado em Sergipe.
Composta dessa forma, espero que a minha fala possa demonstrar a importância da discussão sobre o conceito de identidade na implantação de qualquer projeto educacional, como o caso do ensino médio integrado.

Essa tal de identidade
O que é a identidade? Em que consiste a identidade? Essa não é uma pergunta fácil de responder entre os homens de ação. Não é uma questão do universo da prática docente, não habita o cotidiano do professor. Nós sabemos bem exemplificar, mas quase nunca definir. Então segue uma definição trazida no bolso: identidade é “entidade abstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência.” (Lévi-Strauss, 1977). Agora vamos ao exemplo mais conhecido de todos que envolve a idéia de identidade cultural. Ser sergipano. Esse é um exemplo de identidade. Ser sergipano não se compra, não se vende, não se destitui, ou seja, ser sergipano não têm existência real. Mas, nós nos rotulamos assim para nos diferenciarmos de outros seres, os alagoanos, por exemplo. Como é que identificamos o ser sergipano? Alguns dirão que é pela comida: ele gosta de carangueijo. Outros dirão que é pelo falar: o sergipano fala arrastado. Outros ainda apontarão o habito de dançar – sergipano adora o forró – ou o espírito pacato, entre outros. Sabemos muito bem que nem todos os sergipanos gostam são pacatos, gostam de forró, ou de comer carangueijo. Mesmo assim, insistimos nesses atributos, adoramos cantar o “meu papagaio das asas douradas” e ficamos bastante chateados quando alguém nos chama de baianos ou de paraibanos lá fora. Essa raiva, esse estigma demonstrado em relação aos baianos ou paraibanos é a manifestação da tal identidade de que estamos falando. Votemos agora à definição de identidade: é uma entidade abstrata, mas indispensável como ponto de referência” e que se torna visível quando a pessoa, o grupo, a instituição está em perigo”, quando se sente ameaçada – como os sergipanos que foram chamados de baianos há pouco.
Pois bem, identidade existe não somente para as pessoas, os grupos, as comunidades, os gêneros – identidade de Itamar, feminina, identidade negra, identidade sergipana. Ela também tem função referencial para instituições, projetos, disciplinas, cursos, modalidades de ensino como é o caso do ensino médio. Vejam mais um exemplo. Eu milito pela disciplina história. História é um rótulo apenas. Se eu não souber defender seu objeto, método, função social, conteúdos etc. ou seja, se eu não conhecer e defender seus atributos, com certeza a sua identidade se fragilizará e é bem provável que na próxima reforma pedagógica a minha carga horária seja diminuída, simplesmente porque o professor de matemática soube melhor que eu defender a identidade da sua disciplina de formação. Por esse exemplo espero ter convencido aqueles que ainda pensam na inadequação do termo identidade do ensino médio.
Mas, ensino médio não é uma pessoa. É coisa. E como é construída a identidade dessas coisas? Quem constrói são, principalmente, aqueles que dependem dessa coisa que é o ensino médio, ou seja, os profissionais da educação. Lembrem das disputas entre os professores dos cursinhos pré-vestibulares e os do ensino médio; entre os professores do primeiro e do segundo ciclos com os do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Uns colocando a responsabilidade do fracasso nos outros, uns defendendo mais recursos para a sua modalidade por ser a mais importante que a outra etc. Em todos esses casos a mesma operação pode ser observada: quem não consegue defender a razão de ser da sua modalidade não se estabelece. Quem não consegue fortalecer a identidade da sua modalidade – apresentar a razão da sua existência – está fadado ao desemprego.
Com esses exemplos quero dizer que também os estudos médios no Brasil tiveram direito a uma identidade. A existência de cursos médios no Brasil é contemporânea de calorosos debates sobre a sua identidade. E cada notícia sobre debate acerca de identidade dos estudos médios é também sinal de uma crise de identidade do ensino médio. Sim, porque identidade não existe desde sempre e para sempre. Ela sempre está e está em construção. Talvez isso cause incômodo nos professores. É bem mais confortável ser aprovado num concurso, receber a lei que diz: o ensino médio é isso e ver esse atributo de identidade ser mantido até o dia da sua aposentadoria. Em outras palavras, é bastante cômodo, para alguns profissionais, passar trinta e cinco anos sabendo o que se vai ensinar, o que se deve aprender e como se deve aprender. É mais os homens mudam, a história muda e o professor, mais cedo ou mais tarde terá que enfrentar uma crise de identidade no seu ofício – de professor do ensino médio. E esse momento chegou. Para a nossa sorte, a a identidade do novo ensino médio será construída com a participação de todos, com o nosso voto e as nossas vontades e aptidões.

A identidade dos estudos médios e a legislação específica no século XX
Agora, vamos sair do reino das abstrações e rever um pouco o quadro apresentado na última palestra que proferi sobre o ensino médio. Vejamos no quadro abaixo o que os dispositivos legais pregaram sobre a identidade dos estudos médios. Fiquemos apenas no núcleo definidor: as finalidades. Observem que não nos referimos a ensino médio. Ele não existe ao longo do século XX. Tratamos aqui de um seu equivalente: os estudos médios, ou seja, a modalidade de ensino destinada àquele indivíduo que já desenvolveu suas faculdades básicas (a memória), que já conhece as principais ferramentas para viver em sociedade e começa a desenvolver as principais potencialidades de conhecer, como por exemplo, a razão, o juízo (como diriam os jesuítas), ou aquela modalidade destinada ao adolescente – o aluno inserido numa faixa etária bem elástica que vai dos 10 ou 11 aos 18 ou 19 anos, como se fala modernamente.
Saindo da Idade Moderna e tratando de temas do século XX, podemos dizer que o grande alvo dos ensinos médios é o adolescente ou mesmo o aluno inserido numa faixa etária bem elástica que vai dos 10 ou 11 aos 18 ou 19 anos. Vejamos na transparência alguns momentos desses estudos médios no Brasil. Observemos as prescrições quanto às finalidades no período de um século (entre as décadas de 1890 e 1990).

Quadro n. 1
Currículos prescritos para os estudos médios no Brasil - 1890/2004
Quem faz o currículo?
Quais os preceitos legais?
O que os alunos devem ser?
Catedráticos das escolas secundárias
1890 - B. Constant
Preparar para o ensino superior e formar o cidadão para a vida social
Catedráticos das escolas secundárias
1892 - F. Lobo
Preparar para o ensino superior e formar o cidadão para a vida social
Catedráticos das escolas secundárias
1897 - A. Cavalcante
Formar o cidadão, fornecer o grau de bacharel e ciências e letras
Catedráticos das escolas secundárias
1901 - E. Pessoa
Proporcionar cultura intelectual para o ensino superior e fornecer o grau de bacharel e ciências e letras
Catedráticos das escolas secundárias
1911 - R. Correia
Proporcionar Cultura geral de caráter prático e difundir o ensino das ciências e das letras
Catedráticos das escolas secundárias
1915 - C. Maximiliana
Preparar para o exame vestibular
Catedráticos das escolas secundárias
1925 - J. L. Alves (Rocha Vaz)
Preparar para a vida e fornecer a cultura média geral do país
Comissões do Ministério da Educação
1931 - F. Campos
Formar o homem para todos os setores da atividade nacional
Comissões do Ministério da Educação
1942 - G. Capanema
Formar uma sólida cultura geral Elevar a consciência patriótica e a consciência humanística Preparar as individualidades condutoras
Congresso nacional (LDB-1961), Diretoria do Ensino Médio do Ministério da Educação (?), Câmara do Ensino Primário e Médio do Conselho Federal de Educação (1962) - disciplinas e práticas obrigatórias, e Conselhos Estaduais de Educação (?).
A “educação e grau médio, em prosseguimento à educação ministrada na escola primária, destina-se à formação do adolescente” (p.165). Constitui-se do ciclo ginasial e do ciclo colegial.
1971 - Lei 5.692
Ensino de 1º e 2º graus deve desenvolver potencialidades do educando “como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (p. 515). Entende-se por 1º grau (formação da criança e do pré-adolescente) o até então ensino primário e por 2º grau (formação integral do adolescente) o até então chamado ensino médio.
1996 - LDB (Lei 9.394)
Consolidar e aprofundar conhecimentos do ensino fundamental, preparar para o trabalho e a cidadania, aprimorar o educando como pessoa humana (ética, intelecto e crítica), compreender fundamentos cientifico-tecnológicos do processo produtivo.
2004 - Decreto 5.154
1996 - LDB (Lei 9.394)
Dentro das prescrições do Decreto 5.154 / 2004, essas finalidades podem ser cumprida em articulação com a educação profissional técnica de nível médio, ou seja, integrando componentes curriculares de ambas as modalidades de ensino médio.
1996 - LDB (Lei 9.394)
Novo ensino médio
Fonte: Leis e Decretos da União e regimentos do Colégio Pedro II – 1890/1931; LDB – Lei 4024/1961; 
Lei 5692/1971; LDB - Lei 9394/1996; Freitas, 2006.
PARECER n. 61, de 1971 da Comissão Mista do Congresso Nacional sobre a redação final do Projeto de Lei n. 9, de 1971, que “fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Relator: Deputado Aderbal Jurema, em 27 de julho de 1971.
FONTOURA, Amaral. Diretrizes e bases da educação nacional. 2ed. Rio de Janeiro: Aurora, 1968. (Coleção Legislação Brasileira de Educação, v. 2).

O que podemos perceber pelo Quadro nº 1? Observemos os verbos empregados na legislação de cada ano. Nota-se o conflito entre as funções preparatória (ao vestibular), formativas (personalidade do adolescente), especializadora (mundo do trabalho) e, agora, de forma integrada (componentes curriculares do ensino médio convencional e do ensino técnico de nível médio), ou seja, notam-se as várias identidades em conflito. Uma identidade produzida pelos legisladores para os estudos médios no Brasil
Vejamos agora a noção de identidade extraída por intelectuais brasileiros a partir desses conflitos e crises de finalidades das funções legais. O que dizem os pesquisadores?

A identidade dos estudos médios na cabeça dos historiadores
Alguém já disse, e com muita propriedade, (penso que foi Jaques Le Goff) que os historiadores resolvem primeiro os seus problemas para depois pensarem no coletivo. A pergunta, o problema de pesquisa proposto pelo historiador é, em grande medida, um problema seu, a priori. Assim ocorre no geral e também na questão específica sobre a história dos estudos médios no Brasil. Três momentos dessa discussão que ocorre com maior vigor a partir dos anos 1970.

Tomemos como exemplo os trabalhos de Geraldo Bastos Silva, um dos mais abonados pela historiografia sobre o secundário. Para esse autor, a utopia (paixão, projeto etc.) disseminada no debate político e presente em A educação secundária são as “funções essenciais” desse tipo de ensino: preparar as novas elites – propedêutica do ensino superior – e formar a personalidade do adolescente. Assim, os conceitos de arrimo, presentes no citado livro – alienação, transplante e antecipação – ajudam a explicar o fracasso de todas as tentativas de emprego de idéias e de instituições educacionais européias, haja vista a situação colonial e periférica da experiência histórica brasileira até os anos 1930. (Cf. Silva, 1969, p. 32, 33, 232, 285). Sua utopia e o seu entendimento sobre a ciência histórica resultam na idéia de que o ensino secundário brasileiro seguiu uma trajetória evolutiva linear de reiterados fracassos na tentativa de eliminar, tanto o caráter propedêutico do ensino, quanto o perfil ornamental e enciclopédico do currículo – com ênfase, ora nas ciências físico-naturais e nas matemáticas, ora nos estudos das humanidades.
Maria Thétis Nunes, nossa grande sergipana, e Maria de Lourdes Mariotto Haidar mantêm essas mesmas chaves de leitura sobre o ensino secundário. Para Thétis, a educação secundária era um “reflexo dos interesses de classe”, e a classe proletária não fora contemplada em suas aspirações na década de 1960 – um secundário de qualidade que lhe possibilitasse a mobilidade social em tempos capitalistas. Movida por essa utopia e baseada numa teoria mecanicista da história (onde a superestrutura - lugar da educação - estava a reboque da infraestrutura, e a esperada revolução burguesa não poderia queimar etapas), a autora chega à conclusão de que o ensino secundário no Brasil esteve sempre em “desconexão...com as condições sócio-econômicas do momento” (Nunes, 1999, p. 112).[1] Quando as reformas eram avançadas (Leôncio de Carvalho), a sociedade não estava preparada para recebê-las. Quando a sociedade e a economia estavam aptas para os melhoramentos da educação, as reformas retrocediam aos objetivos e currículos de ensino livresco, ornamental, conservador (Gustavo Capanema). Por essa equação bastante crítica (para não dizer, pessimista), o ensino secundário no Brasil nasceu (1550) e desapareceu (1971) sem ter cumprido a evolução de que se esperava: migrar de uma proposta elitista para uma proposta democrática, ou como se diz atualmente, para uma proposta inclusiva.
O caso de Haidar não destoa do anterior. Ela conclui o seu livro Ensino secundário no Império brasileiro com o clássico argumento da história como pedagogia para o presente: é preciso não deixar que os erros do velho ensino secundário se repitam. Eles estão batendo à nossa porta (isso ocorria em 1972). Não podemos tolerar a volta de exames parcelados disfarçados de exames de madureza e nem a freqüência livre que mutilam a qualidade do ensino secundário. Não é difícil perceber que esse alerta (propiciado por um conhecimento histórico que “liberta”, operando uma “verdadeira catarse”) está relacionado aos resultados obtidos a partir do exame de algumas formas do ensino secundário até a penúltima década do século XIX: a pobreza do currículo (desinteressado) e a aristocrática finalidade do ensino secundário. A utopia de Haidar é, portanto, a construção de um ensino secundário como canal democrático de mobilidade social – o que não foi permitido no regime monárquico ante às sucessivas protelações da extinção do sistema de exames parcelados, da não implantação da regularidade e da simultaneidade dos estudos disciplinares, da ausência do bacharelado como único acesso aos cursos superiores e da inoperância do Colégio Pedro II como “padrão real” para o secundário nas províncias. (Cf. Haidar, 1972, p. 136-137, 262).
A partir dos anos 1980, outra utopia se configura, ainda inserida na idéia de transformação radical das relações sociais de produção. Aí, novamente, os estudos médios em vigor nos séculos XIX e XX são os vilões. Nada deu certo. O dualismo trabalho/formação cultural (oriundo da idéia de educação numa sociedade capitalista) atravessou décadas. É necessário, então, exterminá-lo e colocar em seu lugar o ensino médio integrado que, senão reproduz as diretrizes básicas, pelo menos introduz noções fundamentais da escola unitária pregada por Gramsci.
O que vimos, então, com essas quatro posições? Vimos, portanto, que a cada utopia corresponde uma proposta inovadora de estudos médios. Cada uma dessas propostas representa uma nova identidade para o ensino médio. Da mesma forma, a cada uma dessas novas identidades corresponde uma identidade que deve ser defenestrada. E são os agentes do presente quem vão indicar os atributos dessa nova identidade e vão decretar o fim de uma forma escolar considerada inadequada aos padrões do seu tempo ou de sua utopia, mesmo que para isso tenha que cometer alguns anacronismos; mesmo que para isso, sob o manto de um método materialista, tenha que utilizar argumentos idealistas. Exemplificando melhor: anacronismo - quem põe defeito nos estudos médios do seu tempo costuma tropeçar nas singularidades de cada época (ex: ensino médio é uma invenção recente. Não existiu no século XIX e por todo o século XX); idealismo – o caráter dual dos estudos médios não pode ser considerado como essência do ensino médio, pois a identidade não tem essência – não existe desde sempre e para sempre; ela é uma construção relacional e por isso muda.

Considerações finais ou outras identidades no debate para a implantação do ensino médio integrado
No início desta fala, me propus a examinar o tema da identidade e a implantação do ensino médio integrado. Anunciei uma definição para a identidade: uma entidade abstrata, mas fundamental para a sobrevivência de qualquer pessoa, grupo ou instituição. Disse que identidade não tem essência, é mutável, manifesta-se nos momentos em que o grupo/instituição sente-se ameaçado em seus domínios, e que é produzida não raro por intelectuais, entre os quais os professores. Em relação ao ensino médio, ou melhor, aos estudos médios, disse que os historiadores têm construído o seu discurso sobre o que acham que eles deveriam ser, segundo suas próprias concepções, atropelando até mesmo as peculiaridades dos estudos médios em diferentes tempos e espaços do Brasil. É hora de anunciar também outras preocupações. Sou simpático à tentativa de promover estudos integrados no atual ensino médio. Não somente porque os historiadores de hoje assim o querem: porque Gramsci teria razão, porque o dualismo tem que ser defenestrado etc. A proposta de integração deve ser implantada, simplesmente, porque no real, vários estabelecimentos do ensino médio enfrentam forte crise com o atual modelo disciplinarizado e de costas viradas para os interesses dos alunos (e esses interesses são o mercado)..
Assim, um novo ensino médio deve começar sair dessas discussões. Mas os professores, grandes agentes intelectuais na construção da identidade do ensino médio, os professores, repito, não necessitam ancorar-se na denúncia acerca do dualismo secular dos estudos médios. Não precisam ancorar-se na tábua de salvação da escola unitária. Outras configurações podem ser buscadas e necessariamente passarão pela discussão sobre identidades em outros menos passíveis à reduções simplistas. Dou como exemplo as discussões sobre identidade regional, identidade local, identidade subalterna (à outras nações), identidade de classe (pobres, trabalhadores etc.), identidade de trabalho, de escola (o respeito à escola), de gestores e professores (das concepções de cada um sobre cursos e escolas), do sistema de ensino entre outros. Somente assim, discutida em diferentes níveis, é que se poderá falar em fim de propostas de novas identidades para a formação integrada nos estudos do ensino médio em Sergipe. Só assim teremos tantos ensinos médios integrados, quantas forem as instituições envolvidas nesse processo.
Muito obrigado.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Currículos e programas de outros tempos: a experiência dos estudos médios. Palestra proferida no Seminário “Ensino Médio Integrado: Identidade, Legislação, Iniciativas e Perspectivas”, promovido pela Secretaria de Estado da Educação. Auditório da Biblioteca Pública Epifânio Dória, Aracaju, 17 abr. 2007.

Referências
BICUDO, Joaquim de Campos. O ensino secundário no Brasil e sua atual legislação (de 1931 a 1941 inclusive). São Paulo, 1942.
__________. O ensino secundário no Brasil e sua atual legislação (de Janeiro a setembro de 1942) com a reforma Capanema e seus regulamentos. São Paulo, 1949.
FREITAS, Itamar. A pedagogia da história de Jonathas Serrano para o ensino secundário brasileiro (1913/1935). São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em História da Educação) – Programa de Estudos Pós-Graduados – História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
LÉVI-STRAUSS, Claude. (dir.) L’identité: Seminaire. Paris: Bernard Gasset, 1977.
SENADO FEDERAL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
__________. Diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. Brasília : Diretoria de Divulgação do Senado Federal, 1971.
SILVA, Geraldo Bastos. A educação secundária: perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
NUNES, Maria Thétis. Ensino secundário e sociedade brasileira. 2 ed. Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira; São Cristóvão: Editora da UFS, 1999. [A primeira edição é de 1962].
VECHIA, Ariclê e CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora (orgs.). A escola secundária: modelos e planos (Brasil, séculos XIX e XX). São Paulo: Anablume, 2003. P. 27-35.


Fonte da imagem
Colégio Pedro II.<www.cp2centro.net>. Acesso em: 26 nov. 2010.

Nota
[1] Fizemos uso da segunda edição, que traz um posfácio autógrafo bastante esclarecedor sobre o pensamento da autora.