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domingo, 25 de março de 2012

O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática para a história


Estátua de Wilhelm von Humboldt e fachada da Universidade de Berlim, onde Jörn Rüsen lecionou Teoria da História.

Quem se predispuser a examinar a obra do filósofo Jörn Rüsen, publicada em português, em busca de sua idéia de ensino de história, por certo encontrará algumas dificuldades: o caráter abstrato da discussão, ausência de comentadores dedicados à propedêutica, o sutil distanciamento entre os conceitos, a exemplo de cultura, cultura histórica, formação, aprendizado e consciência histórica etc. Uma delas, entretanto, não está na própria obra, mas na expectativa que criamos sobre o que ela poderia oferecer.
Claro que há vários trechos da sua teoria da história dedicados à definição, estrutura, forma e função de uma didática da história. O problema é que a didática da historia, criticada e prescrita por Rüsen é um campo de investigação, obviamente, alemão. Ele até esboça algumas definições bastante familiares aos brasileiros, como neste exemplo: a didática histórica é uma disciplina responsável pela formulação da “competência específica para a sala de aula” (Rüsen, 2007, p. 90).[1]
Mas, quando se debruça objetivamente sobre o tema, informa que o objeto da didática da história é a “consciência histórica”. E, ainda, que “a didática da história se volta para aqueles processos mentais ou atividades da consciência [...] que geralmente encontram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam velados ao aprendiz” (Schörken, 1972, p 84 apud. Rüsen, 2010, p. 42, grifos de Schörken). Dizendo de um modo bem brasileiro: a didática da história de Rüsen ganha o sentido de uma espécie de “psicologia do desenvolvimento”, que se preocupa primordialmente com a natureza mental dos humanos e não, como esperávamos no início da leitura, com o anúncio de estratégias para ensinar e aprender história em sala de aula.
E agora? Como minimizar essa quebra de expectativas? Aqui vai a minha alternativa. Em Jörn Rüsen e o ensino de história (Cf. capa ao lado), no texto que prescreve o livro de história didaticamente correto – um instrumento que tem a função de potencializar as competências da percepção, interpretação e orientação históricas –, nosso filósofo tece considerações gerais acerca da “utilidade [do livro didático] para o ensino prático”. E é, exatamente, nessa exposição despretensiosa – sobre as funções que o livro didático deve cumprir (para além da sua contribuição como “canal” dos resultados da pesquisa histórica ou do “impulso” à aprendizagem histórica) – que podemos encontrar de forma clara algumas respostas relacionadas aos problemas-chave de uma didática da história à brasileira (ou da teoria do currículo à americana).
Dito de outra forma, aí, nesse fragmento produzido a partir da vulgada sobre a didática da história na Alemanha, podemos colher as idéias de finalidades, seleção e progressão de conteúdos, aprendizagem, estratégias de ensino e avaliação.

Didática rüseniana à brasileira
Comecemos com as finalidades. Já sabemos que a história como disciplina escolar tem a função de desenvolver as competências de percepção, interpretação e orientação – contribui para a formação da consciência histórica. Mas, no fragmento em questão, Rüsen indica a necessidade de os alunos terem acesso aos objetivos, às “intenções didáticas”, ao “conteúdo” e aos “conceitos metodológicos de ensino” de forma clara.
Sobre a escolha desses conteúdos, Rüsen afirma: tem que “guardar uma relação com as experiências e expectativas dos alunos”. Em outras palavras, os materiais apresentados aos alunos (documentação, narrativas) e as atividades a ele destinados têm que ser significativos. É o interesse presente e futuro do aluno quem comanda a seleção do material. Ele, no entanto, ressalva: há que contar também com alguma matéria que contemple “as necessidades de orientação no conjunto da sociedade”. Embora tais matérias sejam dispostas de forma fragmentada nos conteúdos, a seleção destes, repetimos, deve resumir-se aos interesses individuais-pessoais dos alunos.
Sobre a aprendizagem Rüsen se esparrama por todos os volumes da sua teoria. Mas, nesse trecho ele desce ao chão da escola quando defende a necessidade de traduzir a matéria às peculiaridades cognitivas dos alunos. É preciso distribuí-la “de acordo com a capacidade de compreensão” (Rüsen, 2010, p. 116). 
Jörn Rüsen
Além de por o aluno no centro do ensino-aprendizado, nosso teórico também se preocupa em tornar o processo mais prazeroso. Aí alerta aos profissionais: não há que fazer malabarismos. “A experiência histórica tem um potencial próprio de encantamento que se pode aproveitar com oportunidade de aprendizagem” (Rüsen, 2010, p. 117). Dizendo de outra forma, a matéria veiculada nas aulas de história é, em si mesma, um reforçador natural. Não é necessário muito esforço para fazer com que os alunos estudem história confortavelmente.
Por fim, a estratégia de ensino. É fundamental “estabelecer uma boa relação com o aluno”. A ação é simples. Deve o mestre “dirigir-se a ele explicitamente”. Não esqueçamos que Rüsen está a tratar de livro didático. Mas, pensem na sala de aula e verão que o conselho se encaixa (apesar da indiferença de muitos mestres com os seus pupilos). A honestidade e a clareza na exposição dos temas, no anúncio da perspectiva teórica de interpretação e a referência direta (estou falando com você) são valores e estratégias que podem convencer o aluno de que ele é realmente o sujeito da aprendizagem, que o professor não está fingindo e, ainda, de que o processo de didatização significa idiotização. Em termos bem brasileiros, Rüsen propõe uma relação dialógica com o aluno.


Alunos, professora, livro didático e preleção. Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neumann. 2010.


Conclusões
Evidentemente, Rüsen não é um teórico da didática histórica, de metodologia, do ensino, da pedagogia histórica etc. Em recente encontro com a professora Maria Auxiliadora Smith (UFPR), ele fez questão de ressaltar que não pesquisa sobre ensino de história. “Quem quiser se inteirar desse assunto deve procurar o Borris”. [2] (Referia-se ao Bodo Von Borries que há mais de 35 anos dedica-se à pesquisa sobre ensino de história na Alemanha).
No entanto, e apesar de Rüsen não ser um especialista na nossa área, e dos entraves encontrados na sua teoria da história, é possível encontrar os princípios de uma didática da história que corresponda aos interesses de professores brasileiros, acostumados ao esquema quádruplo: finalidades da disciplina, seleção e progressão dos conteúdos, aprendizagem e ensino e aprendizagem. Basta que não busquemos o que queiramos do modo que costumamos encontrá-lo nos manuais brasileiros de metodologia. Mesmo em texto no qual o filósofo não se propôs, objetivamente, a fornecer diretrizes de ensino-aprendizagem, podemos identificar uma vulgata didática (alemã ?), se não elaborada, ao menos, aprovada por Rüsen.
E mais: podemos até situar as suas considerações no curso das correntes pedagógicas circulantes na Europa, EUA e Brasil do século XX. Com todas as licenças pedagógicas que possamos conseguir, arrisco dizer que Rüsen, como qualquer teórico sensato, nesse texto, utiliza-se de uma vulgata que inclui as diretrizes de formatação dos objetivos educacionais de Ralph Tyller, a tradução dos objetivos às peculiaridades cognitivas do aluno de Jerome Bruner, a seleção de conteúdos significativos de David Ausubel, inclusão de conteúdos relativos à satisfação de necessidades sociais de John Dewey e demais progressistas, a idéia de reforço natural de Burrus Skinner e o dialogismo de Lev S. Vigotsky e Paulo Freire. Numa palavra, como todo sensato, ele é um eclético. De dogmático, apenas a sua idéia de mente humana fundada nas operações da consciência histórica.

Assista ao vídeo
É um trecho do programa "Espaço aberto" da Globo News" , exibido, provavelmente, em [2009]. Como o texto  de Rüsen aborda o livro didático de história e, indiretamente, aquilo que ele considera fundamental em termos de conduta para os professores de história, pensei ser oportuno o exame das posições de um historiador brasileiro que circula entre o trabalho de erudição (a pesquisa na pós-graduação) e a produção de livros didáticos de história para a escolarização básica. 
Que você pensa sobre a posição do prof. Marco Antônio Villa?
 
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Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen. Disponível em: <http:www.itamarfo.blogspot.combr/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>. 

Fontes das imagens
Estátua de Wilhelm von Humboldt e detalhe da fachada da Universidade de Berlim. Disponível em: <http://www.dw.de>. Capturada em 25 mar. 2012.
Capa de Jörn Rüsen e o ensino de história. Disponível em: <http://www.relativa.com.br>. Capturado em 25 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://www.joern-ruesen>. Capturada em 2 abr. 2011.
Detalhe de Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neuman. Aracaju: Tecned, 2010. Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/aracaju-uma-historia-em-quadrinhos.html>.

Referências
RÜSEN, Jörn.História viva– Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
______.Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática para a história. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/o-livro-didatico-ideal-de-jorn-rusen-e.html>.

Notas
[1] Diferenciando-a da teoria da história, que é a “didática da ciência da história”, isto é, a disciplina responsável pela formação da competência profissional (pesquisa histórica e historiografia).
[2] Informação fornecida durante palestra proferida no III Seminário de História e Cultura Histórica, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 28 de set. 2011.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen


Entrada principal da Universidade de Bochum, onde Jörn Rüsen leciona História Moderna.

Colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer ao Departamento de História da UFRN, na pessoa da professora Margarida Oliveira, pelo convite e pela acolhida. Gostaria, antecipadamente, de agradecer a presença de todos vocês, que reservam um tempo nas suas vidas para estudar  uma relação aparentemente irracional: o ensino de história e a teoria da história.
Jörn Rüsen
Nesta fala, darei uma noção do lugar de Rüsen nos debates sobre teoria da história, apontando algumas das suas filiações teóricas, questões e motivações da sua escrita sobre teoria, metodologia e didática da história. Para tanto, farei uso de segmentos dos escritos de cinco comentadores autorizados pela intimidade com a obra e proximidade com o autor.
Dessa forma, o texto que lerei está dividido em duas partes: 1) a teoria da história de Rüsen frente às mutações da história na Alemanha; 2) as tríades rüsenianas como chaves de leitura da sua teoria. Encerro a fala relacionando duas das principais teses da sua trilogia às possibilidades de entendimento sobre a aprendizagem e o ensino de história.

Contextualizando contextos
Contexto é palavra odiada por grande parte dos historiadores e empregada pela maioria dos professores da escolarização básica. Alerto, de início, que farei uso do sentido mais comum (o uso nas escolas): “circunstâncias que acompanham um fato ou uma situação” (Houaiss, 2010). No entanto, consciente de que todo contexto é também um texto, ou seja, em lugar de um solo pretensamente estável é também uma construção/invenção, penso ser importante informar sobre algumas das circunstâncias que moveram os cinco historiadores aqui citados a situarem/classificarem a obra de Jörn Rüsen.
Estevão Martins (2007) fez trabalho de síntese – “Historiografia alemã no século 20: encontros e desencontros”. Horst Blanke (2006) segue o mesmo itinerário de modo ainda mais específico – “Para uma nova história da historiografia”. Ele constrói um painel sobre as novas formas de historiar a escrita da história. O terceiro autor, Arthur Assis [2010], também faz síntese. Mas o seu objeto é a trilogia do próprio Rüsen, parte mais substantiva da sua dissertação de Mestrado em História na Universidade de Brasília (orientada por Estevão Martins em 2004) – A teoria da história de Jörn Rüsen: uma introdução. Pedro Spinola Pereira Caldas (2008) faz análise e síntese ao resenhar “o complemento da trilogia de Jörn Rüsen” (volumes dois e três). E Martin Wilkund (2008), por fim, procede de forma analítica. Seu interesse é examinar os sentidos de “sentido histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen”. O texto, provavelmente, faz parte do seu estágio pós-doutoral na Universidade de Göteborg.
Temos então cinco visões de cinco conhecedores da obra de Rüsen, resultantes de diferentes interesses e circunstâncias que incluem, com pesos diferenciados, os debates sobre epistemologia da história e as conflituosas relações da sociedade alemã com o seu passado recente (nazismo, holocausto, por exemplo). É com tais ressalvas que apresento as informações que se seguem, deixando também claro a minha atração pela vulgata sobre o Rüsen, principalmente, no que diz respeito ao lugar do filósofo no debate acerca da epistemologia da história na Alemanha.

A teoria da história de Rüsen frente às mutações da história na Alemanha
A primeira tese, consensual entre os comentadores, refere-se o fato de o historicismo ter resistido até meados do século XX como paradigma fundamentador da história (apesar dos vários ataques sofridos, desde o final do século XIX) e, ainda, de a teoria da história de Rüsen ter participação significativa no desmonte dessa tradição.
Reinhart Koselleck (1923/2006)
Para Estevão Martins (2007), na Alemanha Federal, em fins dos anos 1950, a tentativa Vitoriosa de superar o historicismo ganhou a forma de um grupo de trabalho sobre história moderna alemã que prescrevia a “história social como ciência integradora [...] buscando superar as diferenças entre História e Sociologia” (Martins, 2007, p. 53). O “chefe de fila desse movimento”, que inclui Werner Conze e Otto Brunner é Reinhart Koselleck (Martins, 2007, p. 58).
Martins não deixa claro se Rüsen dá continuidade ao trabalho de Koselleck, que se torna protagonista, sobretudo em 1972, com a publicação de Conceitos históricos fundamentais: léxico histórico da linguagem político-social na Alemanha. Mas apresenta o nosso autor com o mesmo destaque (talvez até maior), quando afirma que “Rüsen apresenta um sistema moderno, abrangente e coerente de teoria da história”, desenvolvido junto a um grupo de “historiadores, filósofos, sociólogos e politólogos” que se reuniram entre 1973 e 1988. As preocupações deste grupo – constituídas e constituidoras da teoria de Rüsen – excedem a questão da objetividade, derramando-se pelos “processos históricos, “teoria e narrativa da história”, “formas da historiografia” e “método histórico” (Martins, 2007, p. 59).
É dessas circunstâncias que Martins extrai a contribuição do filósofo para o debate contemporâneo sobre a razão histórica. Rüsen articula o aparentemente (para o historicismo?) inarticulável: o aparato de cognição (metodologia da pesquisa histórica) com as formas de escrita e as funções sociais da ciência histórica. “Na abordagem sistêmica contemporânea [de Rüsen], a função do presente, por conseguinte dos interesses ativos atuais, é indispensável para a elaboração de qualquer saber reconhecidamente válido” (Martins, 2007, p. 59).
Vista aérea da Universidade Witten-Herdecke, onde Jörn Rüsen leciona História Geral e Teoria da História.
A segunda tese em torno do lugar da teoria de Rüsen na historiografia alemã é um desdobramento do seu papel na crítica ao historicismo. Discutindo as perspectivas de escrita da história da historiografia, Walter Blanke (2006) apresenta a proposta de Rüsen, explícita no seu ensaio sobre o historiador Gervinus, como “uma tentativa de resolver a tensão fundamental entre objetividade acadêmica e predisposições políticas” (Blanke, 2006, p. 35). Observem o sugestivo conceito inserto no título do ensaio de Rüsen: “O historiador como partidário do destino: Georg Gottfried Gervinus e o conceito de parcialidade objetiva no historicismo alemão” (1977) (grifos meus).
Da mesma forma que Martins, Blanke enfatiza o papel das conferências patrocinadas pela Fundação Reimers, ocorridas entre 1975 e 1988, que se ocuparam da “relação entre parcialidade e objetividade e o significado dos processos históricos” na transformação da historiografia alemã da tradição historicista para a ciência social histórica (Blanke, 2006, p. 35-36).
O proeminente lugar de Rüsen neste debate é justificado por Blanke: Rüsen sugere uma “modificação contemporânea do historicismo”. Ele fornece à nova ciência social histórica alemã um “suporte teórico” que “modifica, expande e critica o historicismo. Assim, a velha oposição entre explicação e compreensão, um dos axiomas do historicismo, é dissolvida, e agora são interpretadas como estratégias de pesquisa complementares” (Blanke, 2006, p. 38).
Para a história da historiografia (objeto do artigo de Blanke) são duas as contribuições de Rüsen. A primeira, ligada ao projeto “Teorias da história: contribuições para a teoria da história” (Fundação Reimers, em Bad Homburg), é expressa na forma de uma “tipologia sistemática da narrativa histórica”. A segunda, ligada ao projeto “Discurso histórico” (Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld), consiste no delineamento dos conceitos de “estruturas”, “formas” e “funções”.
Assim, uma nova história da historiografia poderia se constituir, incorporando a “sequência lógica” de pretensa “validade universal” dos tipos tradicional, exemplar, crítico e genético na análise da narrativa histórica e/ou articulando os conceitos de estruturas, formas e funções que integram os cinco elementos da matriz disciplinar.
Arthur Assis
O estudo sintético de Arthur Assis [2010], terceiro comentador, expande as circunstâncias de criação da teoria de Rüsen para além dos muros da Alemanha (anterior e posterior à Segunda Guerra, Federal e Oriental). Inspirado na síntese instituidora da história como ciência, produzida por Gustav Droysen em meados do século XIX, Rüsen teria escrito os seus Fundamentos de uma teoria da história como resposta a dois desafios enfrentados pelo campo na segunda metade do século XX, resultantes da dispersão de objetos e métodos do conhecimento histórico e da suposta indiferenciação entre narrativa histórica e narrativa ficcional.
Ao primeiro desafio, suposta ausência de teoria e método histórico, Rüsen responde com a criação de um conceito: matriz disciplinar. Assim, “pretende permitir a assimilação das diferenças existentes entre as correntes historiográficas contemporâneas e favorecer a percepção da identidade que lhes é comum” (Assis, [2010], p. 11). Sobre o segundo desafio, a crítica à objetividade histórica, “Rüsen enfatiza que as narrativas históricas estabelecem com a realidade histórica, de que pretendem dar conta, uma relação de referência diversa daquela observada em outros tipos de narrativa”: a representação de continuidade temporal (Assis, [2010], p. 13).
Na resenha aos segundo e terceiro volumes da trilogia, a resposta de Rüsen à ideia de narrativa histórica como ficção já fora anunciada por Pedro Caldas (2008). Este amplia ainda mais o leque de motivações anunciadas até aqui. Caldas sugere circunstâncias do século XIX na construção da teoria da história do filósofo alemão ao indagar se “estaria Rüsen respondendo ao apelo de Nietzche, ao procurar um uso da história para a vida” (Caldas, 2008, p. 6). Ainda no mesmo texto, Caldas faz coro com os demais comentadores a respeito do lugar de Rüsen na transformação do historicismo alemão: “Rüsen procura mostrar a insuficiência de dois dos modelos principais de explicação histórica”, o “nomológico e o hermenêutico” (Caldas, 2008, p. 2).
O último comentador exposto nesta fala, Martin Wiklund (2008), situa Jörn Rüsen entre duas correntes de pensamento político e filosófico da Alemanha: a escola de Joachim Ritter (leitora de Aristóteles e Hegel) e a Escola de Frankfurt (Kant, Marx, Freud e Nietzsche). A primeira tendia ao “conservadorismo cético” e a segunda ao socialismo. A primeira produzia “análises sociológicas” e a segunda, orientada pela “hermenêutica”, ocupava-se da “história dos conceitos”.
Martin Willund
Rüsen “defendia a gesellschaftsgeschichte como resposta sensata para os desafios da situação histórica da Alemanha Ocidental nos anos 70” (Wiklund, 2008, p. 24). A história social também seria o melhor caminho, segundo Rüsen, para enfrentar os problemas epistemológicos colocados pelas novas abordagens, a exemplo da micro-história, história do cotidiano e da descrição densa. Porém, “ao confrontar tais desafios, o método de Rüsen sempre procedeu dialeticamente: com o fito de atingir uma síntese que mantenha insights de ambos os oponentes, ele procura articular as tendências opostas e discernir de que modo específico eles se contradizem” (Wiklund, 2008, p. 24). Em outras palavras, Rüsen criou um paradigma que associa abordagens da sociologia histórica e teoria crítica e do historicismo. (Cf. Wiklund, 2008, p. 23).
O que podemos perceber – pelos recortes que fiz e, ainda, através das lentes desses cinco comentadores – é que Jörn Rüsen situa-se no debate sobre a epistemologia histórica na Alemanha como um conciliador dialético de diferentes tradições políticas, filosóficas e metodológicas apresentadas sob as mais diversas dicotomias: historicismo/história social, sociologia histórica e teoria crítica/historicismo, objetividade/política, subjetividade/validade científica, explicação/compreensão, modelo nomológico/modelo hermenêutico.
A conciliação dialética, que responde aos diferentes desafios (o acerto de contas dos alemães com o seu passado, a fragmentação dos objetos e abordagens e as críticas à objetividade historicista, por exemplo) configura-se mediante novos conceitos (matriz disciplinar, estruturas, formas e funções) e tipologias (tradicional, exemplar, crítica e genética).
Tais contribuições sugerem novas formas de justificar a racionalidade da ciência da história e, consequentemente, apontam novos caminhos para se pensar a pesquisa, a escrita e o ensino da história. Mas, como conhecer essas e outras ideias fundadoras de um novo paradigma? Uma saída é visitar os comentadores aqui apresentados. Outra é partir para a leitura da própria obra e voltar aos comentadores somente depois de esgotadas as primeiras iniciativas confortáveis de compreensão. Outra, um pouco inusitada, talvez, seria considerar o Rüsen como um filósofo da história no sentido mais odiado do termo no Brasil. Aquele que pensa a natureza humana e, indiretamente, aponta o sentido para a vida (que desemboca numa utopia). Essa foi a minha primeira escolha e vou relatar rapidamente um dos seus resultados: as tríades como chave de leitura.
Esquema da matriz disciplinar da ciência da história (Rüsen, 2001, p. 35). 

As tríades rüsenianas como chaves de leitura da sua teoria
Como ler a trilogia? Nas minhas idas e vindas a resposta surgiu como um insigt: identificando suas tríades. Assim, concebi três formas de conhecer sistemicamente a teoria da história de Rüsen. A primeira é seguir os passos da sua introdução e entender a trilogia como obra que toca em três objetos (disciplinas em nossos cursos de formação inicial): [1] metodologia (as regras da pesquisa), historiografia (regras de escrita) e didática [2] (regras de aprendizagem).
A segunda estratégia é fazer a leitura buscando identificar os conceitos-chave anunciados no projeto “Estudos históricos modernos: estruturas, formas e funções em uma perspectiva histórica”, empreendido por Rüsen junto ao “Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld”. Os termos foram extraídos da matriz disciplinar (Cf. Blanke, 2006, p. 41): “estrutura” (“ideias” ou “teorias” e “métodos”), “forma” (de representação dos resultados da pesquisa) e “função” (função e usos da história na vida cotidiana).
A última estratégia procura seguir a concepção de homem esboçada por Rüsen. Aqui também a tríade impera. É o homem detentor de intelecto, vontade e sensibilidade. Dizendo de outro modo, é homem aquele ser capaz de conhecer racionalmente (cognição), de orientar-se no tempo e construir identidades (política) e de convencer mediante estratégias linguísticas, por exemplo (estética).
(1) estratégia política da memória coletiva
(2) estratégia cognitiva da produção do saber histórico
(3) estratégia estética da poética e da retórica da representação histórica
Esquema da matriz disciplinar da ciência da história (Rüsen, 2001, p. 164).
Se vocês observarem as figuras que representam os princípios de ciência da história, anunciados no primeiro volume da trilogia (Cf. Rüsen, 2001, p. 35, 164), constatarão que as três tríades de que tratei acima estão presentes na matriz disciplinar. Elas integram os cinco elementos da matriz (carências, ideias, métodos, formas de expressão e funções de orientação) e, simultaneamente, podem ser integradas entre si.
Assim, ideias/teorias e métodos correspondem à disciplina metodologia da história, ao conceito de estrutura e à dimensão cognitiva do homem. “Formas de representação” correspondem à disciplina historiografia, ao conceito de forma e à dimensão estética humana. Por fim, as funções de orientação e de construção identitária correspondem à disciplina didática, ao conceito de função e à dimensão política do homem.

Conclusão: dicotomias, tríades, teses, teoria e ensino de história.
Vimos o caráter abrangente e dialético da teoria de Rüsen por meio dos seus comentadores. Essas características fazem de Rüsen um autor “ecumênico”. Para as nossas pesquisas, no entanto, a importância da sua teoria da história está nas possibilidades que ela abre para a discussão do ensino de história dentro da teoria da história.
Essas possibilidades vocês conhecerão ao longo do curso coordenado pela professora Margarida Oliveira. Da minha parte, gostaria apenas de demonstrar como essa integração das três possibilidades de leitura sistêmica da teoria da história de Rüsen pode facilitar a compreensão de algumas das suas teses que remetem diretamente ao ensino de história tal e qual o concebemos no Brasil: 1. a ciência da história está enraizada na vida humana concreta (onde se localizam os seus fundamentos e critérios de racionalidade) e a essa deve voltar (Cf. Rüsen, 2001, p. 22; 2007, p. 16); 2. é através da forma e da função que o trabalho do historiador se completa e que o saber histórico ganha vida (Cf. Rüsen, 2007b, p. 10).
Essas duas teses autorizam-nos a afirmar que, para Rüsen, comunicar os resultados da pesquisa histórica às crianças e adolescentes, auxiliando-os a orientarem-se no tempo e a construírem suas identidades é trabalho do profissional de história. E, por fim, se o profissional de história quiser executar essas tarefas com racionalidade (e honestidade intelectual) deve explorar de forma equilibrada todas as potencialidades do humano. Dizendo de outro modo, deve também o professor levar em conta as estratégias: “política da memória coletiva [...], cognitiva da produção do saber histórico [...] estética da poética e da retórica da representação histórica” (Cf. Rüsen, 2001, p. 164).
Muito obrigado!                   

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen. Palestra proferida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte por ocasião da abertura do curso de extensão Curso de extensão “Teoria, pesquisa e ensino de História: para o conhecer o pensamento de Jörn Rüsen”. Natal, 4 out. 2011. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>.

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Fontes das imagens
Universidade de Bochum. Disponível em: <http://www.alemanhaporquenao>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://idw-online.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Capas da trilogia (Teoria da história) de Jörn Rüsen. Foto de Itamar Freitas. 21 mar. 2012.
Arthur Assis. Disponível em: <http://www.kwi-humanismus.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Universidade de Witten-Herdecke. Disponível em: <http://www.regiobild.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Reinhart Koselleck. Disponível em: http://www.fotomarburg.de. Capturado em: 21 mar. 2012.
Martin Wiklund. Disponível em: <http://www.humanioradagarna.se>. Capturado em: 21 mar. 2012.

Referências
ASSIS, Arthur. A teoría da história de Jörn Rüsen: uma introdução. Goiânia: Editora da UFG, [2010].
BLANKE, Hors Walter. Para uma história da historiografía. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoría e história da historiografía. São Paulo: Contexto, 2006.  pp. 26-54.
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A arquitetura da teoria: o complemento da trilogia de Jörn Rüsen. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. [sdt.], v. 5, n. 1.
MARTINS, Estevão de Resende. Historiografia alemã no século 20: encontros e desencontros. In: MALERBA Jurandir, ROJAS, Carlos Aguirre (Org.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007. pp. 45-67.
RÜSSEN, Jörn. Razão histórica: Teorias da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.
______. História viva – Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
WILKUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen. História e Historiografia. [Ouro Preto], n. 1, p. 19-44, ago. 2008.

Notas

[1] Na verdade, são quatro, mas o primeiro, o da aquisição da competência profissional está diluído, principalmente, no volume 1 mas não ganha título específico.
[2] No volume 1 ganha destaque o conceito de “formação”, embora a didática seja comentada.