Estátua de Wilhelm von Humboldt e fachada da Universidade de Berlim, onde Jörn Rüsen lecionou Teoria da História.
Quem
se predispuser a examinar a obra do filósofo Jörn Rüsen, publicada em
português, em busca de sua idéia de ensino de história, por certo encontrará
algumas dificuldades: o caráter abstrato da discussão, ausência de comentadores
dedicados à propedêutica, o sutil distanciamento entre os conceitos, a exemplo
de cultura, cultura histórica, formação, aprendizado e consciência histórica
etc. Uma delas, entretanto, não está na própria obra, mas na expectativa que
criamos sobre o que ela poderia oferecer.
Claro
que há vários trechos da sua teoria da história dedicados à definição,
estrutura, forma e função de uma didática da história. O problema é que a
didática da historia, criticada e prescrita por Rüsen é um campo de
investigação, obviamente, alemão. Ele até esboça algumas definições bastante
familiares aos brasileiros, como neste exemplo: a didática histórica é uma
disciplina responsável pela formulação da “competência específica para a sala
de aula” (Rüsen, 2007, p. 90).[1]
Mas,
quando se debruça objetivamente sobre o tema, informa que o objeto da didática
da história é a “consciência histórica”. E, ainda, que “a didática da história
se volta para aqueles processos mentais ou atividades da consciência [...] que
geralmente encontram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam
velados ao aprendiz” (Schörken, 1972, p 84 apud. Rüsen, 2010, p. 42, grifos de
Schörken). Dizendo de um modo bem brasileiro: a didática da história de Rüsen ganha
o sentido de uma espécie de “psicologia do desenvolvimento”, que se preocupa primordialmente
com a natureza mental dos humanos e não, como esperávamos no início da leitura,
com o anúncio de estratégias para ensinar e aprender história em sala de aula.
E
agora? Como minimizar essa quebra de expectativas? Aqui vai a minha alternativa. EmJörn Rüsen e o ensino de história (Cf. capa ao lado), no texto que prescreve o livro de história didaticamente correto – um instrumento que tem a função de potencializar as
competências da percepção, interpretação e orientação históricas –, nosso
filósofo tece considerações gerais acerca da “utilidade [do livro didático]
para o ensino prático”. E é, exatamente, nessa exposição despretensiosa – sobre
as funções que o livro didático deve cumprir (para além da sua contribuição
como “canal” dos resultados da pesquisa histórica ou do “impulso” à
aprendizagem histórica) – que podemos encontrar de forma clara algumas
respostas relacionadas aos problemas-chave de uma didática da história à
brasileira (ou da teoria do currículo à americana).
Dito
de outra forma, aí, nesse fragmento produzido a partir da vulgada sobre a
didática da história na Alemanha, podemos colher as idéias de finalidades,
seleção e progressão de conteúdos, aprendizagem, estratégias de ensino e
avaliação.
Didática rüseniana à brasileira
Comecemos
com as finalidades. Já sabemos que a história como disciplina escolar tem a
função de desenvolver as competências de percepção, interpretação e orientação –
contribui para a formação da consciência histórica. Mas, no fragmento em
questão, Rüsen indica a necessidade de os alunos terem acesso aos objetivos, às
“intenções didáticas”, ao “conteúdo” e aos “conceitos metodológicos de ensino”
de forma clara.
Sobre
a escolha desses conteúdos, Rüsen afirma: tem que “guardar uma relação com as
experiências e expectativas dos alunos”. Em outras palavras, os materiais
apresentados aos alunos (documentação, narrativas) e as atividades a ele
destinados têm que ser significativos. É o interesse presente e futuro do aluno
quem comanda a seleção do material. Ele, no entanto, ressalva: há que contar
também com alguma matéria que contemple “as necessidades de orientação no
conjunto da sociedade”. Embora tais matérias sejam dispostas de forma fragmentada
nos conteúdos, a seleção destes, repetimos, deve resumir-se aos interesses
individuais-pessoais dos alunos.
Sobre
a aprendizagem Rüsen se esparrama por todos os volumes da sua teoria. Mas,
nesse trecho ele desce ao chão da escola quando defende a necessidade de
traduzir a matéria às peculiaridades cognitivas dos alunos. É preciso
distribuí-la “de acordo com a capacidade de compreensão” (Rüsen, 2010, p.
116).
Jörn Rüsen
Além
de por o aluno no centro do ensino-aprendizado, nosso teórico também se
preocupa em tornar o processo mais prazeroso. Aí alerta aos profissionais: não
há que fazer malabarismos. “A experiência histórica tem um potencial próprio de
encantamento que se pode aproveitar com oportunidade de aprendizagem” (Rüsen,
2010, p. 117). Dizendo de outra forma, a matéria veiculada nas aulas de
história é, em si mesma, um reforçador natural. Não é necessário muito esforço
para fazer com que os alunos estudem história confortavelmente.
Por
fim, a estratégia de ensino. É fundamental “estabelecer uma boa relação com o
aluno”. A ação é simples. Deve o mestre “dirigir-se a ele explicitamente”. Não
esqueçamos que Rüsen está a tratar de livro didático. Mas, pensem na sala de
aula e verão que o conselho se encaixa (apesar da indiferença de muitos mestres
com os seus pupilos). A honestidade e a clareza na exposição dos temas, no
anúncio da perspectiva teórica de interpretação e a referência direta (estou
falando com você) são valores e estratégias que podem convencer o aluno de que ele
é realmente o sujeito da aprendizagem, que o professor não está fingindo e,
ainda, de que o processo de didatização significa idiotização. Em termos bem
brasileiros, Rüsen propõe uma relação dialógica com o aluno.
Alunos, professora, livro didático e preleção. Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neumann. 2010.
Conclusões
Evidentemente,
Rüsen não é um teórico da didática histórica, de metodologia, do ensino, da
pedagogia histórica etc. Em recente encontro com a professora Maria Auxiliadora
Smith (UFPR), ele fez questão de ressaltar que não pesquisa sobre ensino de
história. “Quem quiser se inteirar desse assunto deve procurar o Borris”. [2] (Referia-se
ao Bodo Von Borries que há mais de 35 anos dedica-se à pesquisa sobre ensino de
história na Alemanha).
No
entanto, e apesar de Rüsen não ser um especialista na nossa área, e dos
entraves encontrados na sua teoria da história, é possível encontrar os
princípios de uma didática da história que corresponda aos interesses de
professores brasileiros, acostumados ao esquema quádruplo: finalidades da
disciplina, seleção e progressão dos conteúdos, aprendizagem e ensino e
aprendizagem. Basta que não busquemos o que queiramos do modo que costumamos
encontrá-lo nos manuais brasileiros de metodologia. Mesmo em texto no qual o
filósofo não se propôs, objetivamente, a fornecer diretrizes de
ensino-aprendizagem, podemos identificar uma vulgata didática (alemã ?), se não
elaborada, ao menos, aprovada por Rüsen.
E
mais: podemos até situar as suas considerações no curso das correntes
pedagógicas circulantes na Europa, EUA e Brasil do século XX. Com todas as
licenças pedagógicas que possamos conseguir, arrisco dizer que Rüsen, como
qualquer teórico sensato, nesse texto, utiliza-se de uma vulgata que inclui as
diretrizes de formatação dos objetivos educacionais de Ralph Tyller, a tradução
dos objetivos às peculiaridades cognitivas do aluno de Jerome Bruner, a seleção
de conteúdos significativos de David Ausubel, inclusão de conteúdos relativos à
satisfação de necessidades sociais de John Dewey e demais progressistas, a
idéia de reforço natural de Burrus Skinner e o dialogismo de Lev S. Vigotsky e
Paulo Freire. Numa palavra, como todo sensato, ele é um eclético. De dogmático,
apenas a sua idéia de mente humana fundada nas operações da consciência
histórica.
Assista ao vídeo
É um trecho do programa
"Espaço aberto" da Globo News" , exibido, provavelmente, em
[2009]. Como o texto de Rüsen aborda o livro didático de história e,
indiretamente, aquilo que ele considera fundamental em termos de conduta para
os professores de história, pensei ser oportuno o exame das posições de um
historiador brasileiro que circula entre o trabalho de erudição (a pesquisa na
pós-graduação) e a produção de livros didáticos de história para a
escolarização básica.
Que você pensa sobre a posição do
prof. Marco Antônio Villa?
Estátua
de Wilhelm von Humboldt e detalhe da fachada da Universidade de Berlim.
Disponível em: <http://www.dw.de>. Capturada em 25 mar. 2012.
Capa
de Jörn Rüsen e o ensino de história. Disponível em:
<http://www.relativa.com.br>. Capturado em 25 mar. 2012.
Jörn
Rüsen. Disponível em: <http://www.joern-ruesen>. Capturada em 2 abr.
2011.
Detalhe
de Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago
Neuman. Aracaju: Tecned, 2010. Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/aracaju-uma-historia-em-quadrinhos.html>.
Referências
RÜSEN,
Jörn.História viva– Teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
______.Jörn
Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização
de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins).
Para citar este texto
FREITAS,
Itamar. O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática
para a história. Disponível em:
<http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/o-livro-didatico-ideal-de-jorn-rusen-e.html>.
Notas
[1] Diferenciando-a
da teoria da história, que é a “didática da ciência da história”, isto é, a
disciplina responsável pela formação da competência profissional (pesquisa
histórica e historiografia).
[2]
Informação fornecida durante palestra proferida no III Seminário de História e
Cultura Histórica, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 28 de set. 2011.
Entrada principal da Universidade de Bochum, onde Jörn Rüsen leciona História Moderna.
Colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer ao Departamento de História da UFRN, na
pessoa da professora Margarida Oliveira, pelo convite e pela acolhida.
Gostaria, antecipadamente, de agradecer a presença de todos vocês, que reservam
um tempo nas suas vidas para estudar uma relação aparentemente
irracional: o ensino de história e a teoria da história.
Jörn Rüsen
Nesta fala, darei uma noção do lugar de Rüsen nos debates sobre
teoria da história, apontando algumas das suas filiações teóricas, questões e
motivações da sua escrita sobre teoria, metodologia e didática da história.
Para tanto, farei uso de segmentos dos escritos de cinco comentadores
autorizados pela intimidade com a obra e proximidade com o autor.
Dessa forma, o texto que lerei está dividido em duas partes: 1) a
teoria da história de Rüsen frente às mutações da história na Alemanha; 2) as
tríades rüsenianas como chaves de leitura da sua teoria. Encerro a fala
relacionando duas das principais teses da sua trilogia às possibilidades de entendimento
sobre a aprendizagem e o ensino de história.
Contextualizando contextos
Contexto é palavra odiada por grande parte dos historiadores e
empregada pela maioria dos professores da escolarização básica. Alerto, de
início, que farei uso do sentido mais comum (o uso nas escolas):
“circunstâncias que acompanham um fato ou uma situação” (Houaiss, 2010). No
entanto, consciente de que todo contexto é também um texto, ou seja, em lugar
de um solo pretensamente estável é também uma construção/invenção, penso ser
importante informar sobre algumas das circunstâncias que moveram os cinco
historiadores aqui citados a situarem/classificarem a obra de Jörn Rüsen.
Estevão Martins (2007) fez trabalho de síntese – “Historiografia
alemã no século 20: encontros e desencontros”. Horst Blanke (2006) segue o
mesmo itinerário de modo ainda mais específico – “Para uma nova história da
historiografia”. Ele constrói um painel sobre as novas formas de historiar a escrita
da história. O terceiro autor, Arthur Assis [2010], também faz síntese. Mas o
seu objeto é a trilogia do próprio Rüsen, parte mais substantiva da sua
dissertação de Mestrado em História na Universidade de Brasília (orientada por
Estevão Martins em 2004) – A teoria da
história de Jörn Rüsen: uma introdução. Pedro Spinola Pereira Caldas (2008)
faz análise e síntese ao resenhar “o complemento da trilogia de Jörn Rüsen”
(volumes dois e três). E Martin Wilkund (2008), por fim, procede de forma analítica.
Seu interesse é examinar os sentidos de “sentido histórico e racionalidade na
teoria da história de Jörn Rüsen”. O texto, provavelmente, faz parte do seu
estágio pós-doutoral na Universidade de Göteborg.
Temos então cinco visões de
cinco conhecedores da obra de Rüsen, resultantes de diferentes interesses e circunstâncias
que incluem, com pesos diferenciados, os debates sobre epistemologia da história
e as conflituosas relações da sociedade alemã com o seu passado recente
(nazismo, holocausto, por exemplo). É com tais ressalvas que apresento as
informações que se seguem, deixando também claro a minha atração pela vulgata
sobre o Rüsen, principalmente, no que diz respeito ao lugar do filósofo no
debate acerca da epistemologia da história na Alemanha.
A teoria da história de Rüsen frente às
mutações da história na Alemanha
A primeira tese, consensual entre os comentadores, refere-se o
fato de o historicismo ter resistido até meados do século XX como paradigma
fundamentador da história (apesar dos vários ataques sofridos, desde o final do
século XIX) e, ainda, de a teoria da história de Rüsen ter participação
significativa no desmonte dessa tradição.
Reinhart Koselleck (1923/2006)
Para Estevão Martins (2007), na Alemanha Federal, em fins dos anos
1950, a tentativa Vitoriosa de superar o historicismo ganhou a forma de um
grupo de trabalho sobre história moderna alemã que prescrevia a “história
social como ciência integradora [...] buscando superar as diferenças entre
História e Sociologia” (Martins, 2007, p. 53). O “chefe de fila desse
movimento”, que inclui Werner Conze e Otto Brunner é Reinhart Koselleck (Martins,
2007, p. 58).
Martins não deixa claro se Rüsen dá continuidade ao trabalho de
Koselleck, que se torna protagonista, sobretudo em 1972, com a publicação de Conceitos históricos fundamentais:
léxico histórico da linguagem político-social na Alemanha. Mas apresenta o
nosso autor com o mesmo destaque (talvez até maior), quando afirma que “Rüsen
apresenta um sistema moderno, abrangente e coerente de teoria da história”,
desenvolvido junto a um grupo de “historiadores, filósofos, sociólogos e politólogos”
que se reuniram entre 1973 e 1988. As preocupações deste grupo – constituídas e
constituidoras da teoria de Rüsen – excedem a questão da objetividade,
derramando-se pelos “processos históricos, “teoria e narrativa da história”,
“formas da historiografia” e “método histórico” (Martins, 2007, p. 59).
É dessas circunstâncias que Martins extrai a contribuição do filósofo
para o debate contemporâneo sobre a razão histórica. Rüsen articula o
aparentemente (para o historicismo?) inarticulável: o aparato de cognição
(metodologia da pesquisa histórica) com as formas de escrita e as funções
sociais da ciência histórica. “Na abordagem sistêmica contemporânea [de Rüsen],
a função do presente, por conseguinte dos interesses ativos atuais, é
indispensável para a elaboração de qualquer saber reconhecidamente válido” (Martins,
2007, p. 59).
Vista aérea da Universidade Witten-Herdecke, onde Jörn Rüsen leciona História Geral e Teoria da História.
A segunda tese em torno do lugar da teoria de Rüsen na
historiografia alemã é um desdobramento do seu papel na crítica ao
historicismo. Discutindo as perspectivas de escrita da história da
historiografia, Walter Blanke (2006) apresenta a proposta de Rüsen, explícita
no seu ensaio sobre o historiador Gervinus, como “uma tentativa de resolver a
tensão fundamental entre objetividade acadêmica e predisposições políticas”
(Blanke, 2006, p. 35). Observem o sugestivo conceito inserto no título do
ensaio de Rüsen: “O historiador como partidário do destino: Georg Gottfried
Gervinus e o conceito de parcialidade objetiva no historicismo alemão”
(1977) (grifos meus).
Da mesma forma que Martins, Blanke enfatiza o papel das
conferências patrocinadas pela Fundação Reimers, ocorridas entre 1975 e 1988,
que se ocuparam da “relação entre parcialidade e objetividade e o significado
dos processos históricos” na transformação da historiografia alemã da tradição
historicista para a ciência social histórica (Blanke, 2006, p. 35-36).
O proeminente lugar de Rüsen neste debate é justificado por Blanke:
Rüsen sugere uma “modificação contemporânea do historicismo”. Ele fornece à
nova ciência social histórica alemã um “suporte teórico” que “modifica, expande
e critica o historicismo. Assim, a velha oposição entre explicação e
compreensão, um dos axiomas do historicismo, é dissolvida, e agora são
interpretadas como estratégias de pesquisa complementares” (Blanke, 2006, p.
38).
Para a história da historiografia (objeto do artigo de Blanke) são
duas as contribuições de Rüsen. A primeira, ligada ao projeto “Teorias da
história: contribuições para a teoria da história” (Fundação Reimers, em Bad
Homburg), é expressa na forma de uma “tipologia sistemática da narrativa
histórica”. A segunda, ligada ao projeto “Discurso histórico” (Centro de
Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld), consiste no delineamento dos conceitos
de “estruturas”, “formas” e “funções”.
Assim, uma nova história da historiografia poderia se constituir,
incorporando a “sequência lógica” de pretensa “validade universal” dos tipos
tradicional, exemplar, crítico e genético na análise da narrativa histórica
e/ou articulando os conceitos de estruturas, formas e funções que integram os
cinco elementos da matriz disciplinar.
Arthur Assis
O estudo sintético de Arthur Assis [2010], terceiro comentador,
expande as circunstâncias de criação da teoria de Rüsen para além dos muros da
Alemanha (anterior e posterior à Segunda Guerra, Federal e Oriental). Inspirado
na síntese instituidora da história como ciência, produzida por Gustav Droysen
em meados do século XIX, Rüsen teria escrito os seus Fundamentos de uma teoria da história como resposta a dois desafios
enfrentados pelo campo na segunda metade do século XX, resultantes da dispersão
de objetos e métodos do conhecimento histórico e da suposta indiferenciação
entre narrativa histórica e narrativa ficcional.
Ao primeiro desafio, suposta ausência de teoria e método
histórico, Rüsen responde com a criação de um conceito: matriz disciplinar.
Assim, “pretende permitir a assimilação das diferenças existentes entre as
correntes historiográficas contemporâneas e favorecer a percepção da identidade
que lhes é comum” (Assis, [2010], p. 11). Sobre o segundo desafio, a crítica à
objetividade histórica, “Rüsen enfatiza que as narrativas históricas
estabelecem com a realidade histórica, de que pretendem dar conta, uma relação
de referência diversa daquela observada em outros tipos de narrativa”: a
representação de continuidade temporal (Assis, [2010], p. 13).
Na resenha aos segundo e terceiro volumes da trilogia, a resposta
de Rüsen à ideia de narrativa histórica como ficção já fora anunciada por Pedro
Caldas (2008). Este amplia ainda mais o leque de motivações anunciadas até
aqui. Caldas sugere circunstâncias do século XIX na construção da teoria da
história do filósofo alemão ao indagar se “estaria Rüsen respondendo ao apelo
de Nietzche, ao procurar um uso da história para a vida” (Caldas, 2008, p. 6).
Ainda no mesmo texto, Caldas faz coro com os demais comentadores a respeito do
lugar de Rüsen na transformação do historicismo alemão: “Rüsen procura mostrar
a insuficiência de dois dos modelos principais de explicação histórica”, o
“nomológico e o hermenêutico” (Caldas, 2008, p. 2).
O último comentador exposto nesta fala, Martin Wiklund (2008),
situa Jörn Rüsen entre duas correntes de pensamento político e filosófico da
Alemanha: a escola de Joachim Ritter (leitora de Aristóteles e Hegel) e a
Escola de Frankfurt (Kant, Marx, Freud e Nietzsche). A primeira tendia ao “conservadorismo
cético” e a segunda ao socialismo. A primeira produzia “análises sociológicas”
e a segunda, orientada pela “hermenêutica”, ocupava-se da “história dos
conceitos”.
Martin Willund
Rüsen “defendia a gesellschaftsgeschichte como resposta sensata
para os desafios da situação histórica da Alemanha Ocidental nos anos 70” (Wiklund,
2008, p. 24). A história social também seria o melhor caminho, segundo Rüsen,
para enfrentar os problemas epistemológicos colocados pelas novas abordagens, a
exemplo da micro-história, história do cotidiano e da descrição densa. Porém, “ao
confrontar tais desafios, o método de Rüsen sempre procedeu dialeticamente: com
o fito de atingir uma síntese que mantenha insights
de ambos os oponentes, ele procura articular as tendências opostas e discernir
de que modo específico eles se contradizem” (Wiklund, 2008, p. 24). Em outras
palavras, Rüsen criou um paradigma que associa abordagens da sociologia
histórica e teoria crítica e do historicismo. (Cf. Wiklund, 2008, p. 23).
O que podemos perceber – pelos recortes que fiz e, ainda, através
das lentes desses cinco comentadores – é que Jörn Rüsen situa-se no debate
sobre a epistemologia histórica na Alemanha como um conciliador dialético de
diferentes tradições políticas, filosóficas e metodológicas apresentadas sob as
mais diversas dicotomias: historicismo/história social, sociologia histórica e
teoria crítica/historicismo, objetividade/política, subjetividade/validade
científica, explicação/compreensão, modelo nomológico/modelo hermenêutico.
A conciliação dialética, que responde aos diferentes desafios (o
acerto de contas dos alemães com o seu passado, a fragmentação dos objetos e
abordagens e as críticas à objetividade historicista, por exemplo) configura-se
mediante novos conceitos (matriz disciplinar, estruturas, formas e funções) e
tipologias (tradicional, exemplar, crítica e genética).
Tais contribuições sugerem novas formas de justificar a
racionalidade da ciência da história e, consequentemente, apontam novos
caminhos para se pensar a pesquisa, a escrita e o ensino da história. Mas, como
conhecer essas e outras ideias fundadoras de um novo paradigma? Uma saída é
visitar os comentadores aqui apresentados. Outra é partir para a leitura da
própria obra e voltar aos comentadores somente depois de esgotadas as primeiras
iniciativas confortáveis de compreensão. Outra, um pouco inusitada, talvez,
seria considerar o Rüsen como um filósofo da história no sentido mais odiado do
termo no Brasil. Aquele que pensa a natureza humana e, indiretamente, aponta o
sentido para a vida (que desemboca numa utopia). Essa foi a minha primeira
escolha e vou relatar rapidamente um dos seus resultados: as tríades como chave
de leitura.
Esquema da matriz disciplinar da ciência da história (Rüsen, 2001, p. 35).
As tríades rüsenianas como chaves de
leitura da sua teoria
Como ler a trilogia? Nas minhas idas e vindas a resposta surgiu
como um insigt: identificando suas
tríades. Assim, concebi três formas de conhecer sistemicamente a teoria da
história de Rüsen. A primeira é seguir os passos da sua introdução e entender a
trilogia como obra que toca em três objetos (disciplinas em nossos cursos de
formação inicial): [1] metodologia (as regras da pesquisa), historiografia (regras de escrita) e
didática [2] (regras de aprendizagem).
A segunda estratégia é fazer a leitura buscando identificar os
conceitos-chave anunciados no projeto “Estudos históricos modernos: estruturas,
formas e funções em uma perspectiva histórica”, empreendido por Rüsen junto ao “Centro
de Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld”. Os termos foram extraídos da matriz
disciplinar (Cf. Blanke, 2006, p. 41): “estrutura” (“ideias” ou “teorias” e
“métodos”), “forma” (de representação dos resultados da pesquisa) e “função” (função
e usos da história na vida cotidiana).
A última estratégia procura seguir a concepção de homem esboçada
por Rüsen. Aqui também a tríade impera. É o homem detentor de intelecto,
vontade e sensibilidade. Dizendo de outro modo, é homem aquele ser capaz de
conhecer racionalmente (cognição), de orientar-se no tempo e construir
identidades (política) e de convencer mediante estratégias linguísticas, por
exemplo (estética).
(1) estratégia política da memória coletiva
(2) estratégia cognitiva da produção do saber histórico
(3) estratégia estética da poética e da retórica da representação histórica Esquema da matriz disciplinar da ciência da história (Rüsen, 2001, p. 164).
Se vocês observarem as figuras que representam os princípios de
ciência da história, anunciados no primeiro volume da trilogia (Cf. Rüsen,
2001, p. 35, 164), constatarão que as três tríades de que tratei acima estão
presentes na matriz disciplinar. Elas integram os cinco elementos da matriz
(carências, ideias, métodos, formas de expressão e funções de orientação) e,
simultaneamente, podem ser integradas entre si.
Assim, ideias/teorias e métodos correspondem à disciplina
metodologia da história, ao conceito de estrutura e à dimensão cognitiva do
homem. “Formas de representação” correspondem à disciplina historiografia, ao
conceito de forma e à dimensão estética humana. Por fim, as funções de
orientação e de construção identitária correspondem à disciplina didática, ao
conceito de função e à dimensão política do homem.
Conclusão: dicotomias, tríades, teses,
teoria e ensino de história.
Vimos o caráter abrangente e dialético da teoria de Rüsen por meio
dos seus comentadores. Essas características fazem de Rüsen um autor
“ecumênico”. Para as nossas pesquisas, no entanto, a importância da sua teoria
da história está nas possibilidades que ela abre para a discussão do ensino de
história dentro da teoria da história.
Essas possibilidades vocês conhecerão ao longo do curso coordenado
pela professora Margarida Oliveira. Da minha parte, gostaria apenas de
demonstrar como essa integração das três possibilidades de leitura sistêmica da
teoria da história de Rüsen pode facilitar a compreensão de algumas das suas
teses que remetem diretamente ao ensino de história tal e qual o concebemos no
Brasil: 1. a ciência da história está enraizada na vida humana concreta (onde
se localizam os seus fundamentos e critérios de racionalidade) e a essa deve
voltar (Cf. Rüsen, 2001, p. 22; 2007, p. 16); 2. é através da forma e da função
que o trabalho do historiador se completa e que o saber histórico ganha vida
(Cf. Rüsen, 2007b, p. 10).
Essas duas teses autorizam-nos a afirmar que, para Rüsen,
comunicar os resultados da pesquisa histórica às crianças e adolescentes,
auxiliando-os a orientarem-se no tempo e a construírem suas identidades é
trabalho do profissional de história. E, por fim, se o profissional de história
quiser executar essas tarefas com racionalidade (e honestidade intelectual)
deve explorar de forma equilibrada todas as potencialidades do humano. Dizendo
de outro modo, deve também o professor levar em conta as estratégias: “política
da memória coletiva [...], cognitiva da produção do saber histórico [...]
estética da poética e da retórica da representação histórica” (Cf. Rüsen, 2001,
p. 164).
Muito obrigado!
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen.
Palestra proferida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte por ocasião
da abertura do curso de extensão Curso de extensão “Teoria, pesquisa e ensino de História: para o
conhecer o pensamento de Jörn Rüsen”. Natal, 4 out. 2011. Disponível em:
<http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>.
Universidade de Bochum. Disponível em: <http://www.alemanhaporquenao>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://idw-online.de>. Capturado em: 21 mar. 2012. Capas da trilogia (Teoria da história) de Jörn Rüsen. Foto de Itamar Freitas. 21 mar. 2012. Arthur Assis. Disponível em: <http://www.kwi-humanismus.de>. Capturado
em: 21 mar. 2012. Universidade de Witten-Herdecke. Disponível em: <http://www.regiobild.de>. Capturado em: 21 mar. 2012. Reinhart Koselleck. Disponível em: http://www.fotomarburg.de. Capturado em: 21 mar. 2012. Martin Wiklund. Disponível em: <http://www.humanioradagarna.se>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Referências
ASSIS,
Arthur. A teoría da história de Jörn
Rüsen: uma introdução. Goiânia: Editora da UFG, [2010].
BLANKE, Hors
Walter. Para uma história da historiografía. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoría e história da
historiografía. São Paulo: Contexto, 2006.
pp. 26-54.
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A arquitetura da teoria: o
complemento da trilogia de Jörn Rüsen. Fênix
- Revista de História e Estudos Culturais. [sdt.], v. 5, n. 1.
MARTINS,
Estevão de Resende. Historiografia alemã no século 20: encontros e
desencontros. In: MALERBA Jurandir, ROJAS, Carlos Aguirre (Org.). Historiografia contemporânea em perspectiva
crítica. Bauru: Edusc, 2007. pp. 45-67.
RÜSSEN,
Jörn. Razão histórica: Teorias da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.
______. História viva – Teoria da história III:
formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
WILKUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido
histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen. História e Historiografia. [Ouro Preto],
n. 1, p. 19-44, ago. 2008.
Notas
[1] Na verdade, são quatro, mas o primeiro, o da
aquisição da competência profissional está diluído, principalmente, no volume 1
mas não ganha título específico.
[2] No
volume 1 ganha destaque o conceito de “formação”, embora a didática seja
comentada.