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domingo, 14 de novembro de 2004

Bibliografia historiográfica do século XIX

Definindo a expressão: esse é um exercício de bibliografia antiga sobre as obras de história produzidas em Sergipe durante o século XIX. É bibliografia porque relaciona e  enreda os textos segundo os elementos de referência bibliográfica – autor, título, ano de publicação etc. É bibliografia antiga porque, além de limitar-se aos dados clássicos, não leva em conta a materialidade dos trabalhos, ou seja, não “envolve o estudo rigoroso dos livros como objetos físicos” – assinaturas, vinhetas, tipos, tinta, papel etc. – como se vem realizando em outros cantos do mundo. (cf. Darnton, 2004; Andrade, 2002).
Qual o valor de um estudo dessa natureza? A resposta aqui já foi anunciada: o oitocentos é o século da invenção de Sergipe. É o tempo da autonomia política, que faz par com independência, separação, identidade, concentração e controle local. Para fabricar essa formação social, as literaturas ficcional e historiográfica tiveram lá o seu papel. (A Semana em Foco, 31/10/2004). Assim, reunir os escritos que inventam um passado para Sergipe é também uma forma de estudar, concomitantemente, a construção desse próprio Sergipe e da atividade historiadora local.
Comecemos, então, pelos títulos. Eles são curiosos, alguns rabelaisianos. Observem o gênero expresso, o objeto tematizado e o emprego da história como adjetivo: Descrição geográfica da capitania de Sergipe d’el Rey (?, 1802); Memória sobre a capitania de Sergipe, sua fundação, população, produção e melhoramentos de que é capaz (Marco Antonio Souza, 1808); Descrição abreviada da Cidade de Sergipe d’El Rei, povoações, Vilas, Freguesias e suas denominações pertencentes a mesma cidade, e sua Comarca (José Teixeira da Mata Bacelar, 1817); Informação sobre a província de Sergipe em 1821 (José Antônio Fernandes, 1821); Memória histórica e documentada dos sucessos acontecidos em Sergipe de El Rei, sendo governador daquela Província Carlos Cezar Burlamaque que a foi criar, em independente, e separada totalmente da Bahia por decreto de sua Majestade fidelíssima de 8 de julho de 1820, e carta patente de 25 do mesmo mês e ano (Carlos Cezar Burlamaque, 1821a); Breve notícia sobre a Revolução do Brasil em 1821 nas províncias da Bahia, Sergipe e Alagoas, por serem estes lugares os que tenho viajado desde a época da Constituição; sobre o que descrevo o que tenho observado e ouvido dizer, etc. (sic.) (Antonio Moniz de Souza, [1823]); Notícia topográfica da Província de Sergipe, redigida no ano de 1826 (Inácio Antônio Dormundo, 1826); e Notícias geográficas e históricas desta Província ([Miguel Arcanjo Galvão], 1845/1847).
Claro que aí estão apenas os escritos produzidos até 1847. São poucos. São os que nos sobraram no momento. Também misturam geografia, etnografia, escrito de viagem e biografia sob a forma de relato administrativo. Mas, lembrem-se que estamos na primeira metade do século XIX. Nada de saberes especializados, fossem eles eruditos ou escolares. De “ciência”, exageremos, só uma: a ciência do Estado, a estatística – mensuração e controle das terras, águas, minas, plantas, animais, edificações e gentes.
Pelos temas, também sabemos das demandas. É o Estado um grande curioso dos seus domínios e potencialidades. Em princípio, essa imagem da Província é construída sob a política realenga ilustrada de D. Rodrigo Coutinho (1808). Depois, busca-se cumprir o preceito nacionalista integrador da Constituição de 1823 – a estatística provincial (cf. Leis do Império, 1887). Nos textos de 1802 e 1821,  estão as marcas do controle exercido, respectivamente, pelo governo da Bahia e pelo primeiro burocrata provincial – Carlos César Burlamaque. Nos dois últimos, não obstante as razões pessoais, o interlocutor (a ser construído ou corrigido) é o Estado.
O que há nesse desenho? Em primeiro plano, a natureza. Os homens são números. As povoações são quase comunidades religiosas. Nas páginas, comparando-se com a expectativa de futuro, o apelo ao passado é diminuto. As individualidades, por sua vez, ganham a cena nos fragmentos autobiográficos, onde a política é experiência hegemônica. As distinções brasileiros/portugueses, livres/escravos predominam. Mas já se nota um esforço em caracterizar o “sergipense” e em forjar para ele uma memória anterior a 1820.
Esse desenho tem o homem livre e letrado como autor, é óbvio: os secretários de governo, o brigadeiro português, o padre latinista aposentado, o tesoureiro, e somente um homem de primeiras letras – Antônio Moniz de Souza – (ainda que se recolhesse por anos ao convento franciscano do Rio de Janeiro).
Esse esboço é caracteristicamente descritivo, ganha a forma de relação, descrição, memória, breve notícia e notícia topográfica. Ele frequenta o imaginário de poucos leitores, além daqueles que governaram até meados dos anos 1840 e de alguns ciosos funcionários. Excetuando-se as denúncias de Burlamaque e de Moniz de Souza, publicadas na Bahia e no Rio de Janeiro, os demais escritos foram se abrigar nos arquivos das cortes lisboeta e carioca.
Por esse motivo, o último texto do período – Notícia topográfica [1845/1847] – merece atenção especial. [Galvão] teve acesso, provavelmente, à “estatística” de 1826. Efetuou pesquisas nos moldes pregados pelo IHGB dos anos 1830 – os questionários por carta –, divulgou os verbetes em periódico local e quis corrigir a imagem de Sergipe, impressa no Dicionário descritivo do Império do Brasil, do francês Milliet de Saint Adolphe (1845). Galvão ligou-se, portanto, a Dormundo (1826) e também a Travassos (1860), o autor da primeira narrativa global sobre a vida dos sergipanos.
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O segundo tempo dessa bibliografia pode ser iniciado com os trabalhos de Antônio José da Silva Travassos – Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe (1860) e Memorial histórico da Província de Sergipe (1866). Nada muito especial com essas primeiras narrativas gerais. Não são purezas de estilo, mas indicam outra mudança significativa nesse tipo de texto: a demanda por história – além da história de síntese –, é interna. É o empreendedor local quem também está preocupado com o desenvolvimento econômico e político da Província. Nas duas obras, Travassos transforma-se em conselheiro do Imperador e conselheiro do Presidente da Província, respectivamente. Tudo pelo bem comum dos sergipanos. Após Travassos, Sergipe ganharia um passado inscrito em papel, e o mito de origem – a conquista de Cristóvão de Barros sobre os índios (1590) – já poderia ser cultuado por todos.
A iniciativa particular, contudo, não inibe a ação do Estado. Ele ainda está interessado no desenho da Província. Em tempos de “conciliação”, e baseado em Aracaju, o governo autoriza os estudos sobre os limites entre Sergipe e Bahia. É preciso recuperar os vários quintos de território apropriados indevidamente pela “mulata faceira”. Dessa política, têm origem os trabalhos de Martinho de Freitas Garcez (1859) – Descrição sinóptica da Província de Sergipe (1859) –, de José Zacarias de Carvalho (1861) e a Memória de Joaquim José de Oliveira (1863).
De passagem pelos cartórios – arquivos disponíveis para poucos à época –, tendo os autos como testemunho das propriedades sergipanas, o pesquisador já não é mais um curioso que sabe compor. Ele estudou direito ou medicina e ensaiou os primeiros passos na literatura, as primeiras iniciativas da ficção em Sergipe. Assim ocorre com Joaquim José de Oliveira que produziu a partir de fontes cartorárias, não apenas sobre limites de Sergipe, mas também acerca de Simão Dias, o homem e a povoação. Esses foram os objetos das suas Histórias perdidas, publicadas em 1864.
O Estado interessado nos limites também motiva a produção da primeira monografia sobre uma das nossas ilhas de prosperidade em meados do século XIX. Por ordem de Manuel da Cunha Galvão, foi escrita a Memória sobre a Vila de Propriá, desde a sua origem até hoje. Esse trabalho, ainda inédito, fora remetido ao então Ministério do Império por seu autor, Antônio José Pereira Guimarães. O mesmo Cunha Galvão (1860), foi o responsável por inscrever nos anais da memória local a narração dos preparativos, festejos e felicitações que tiveram lugar por ocasião da visita que fizeram à mesma sua majestades imperiais em janeiro de 1860.
Na administração seguinte – de Tomás Alves Júnior –, talvez embalada pela contenda dos limites com a Bahia, a Assembléia Legislativa Provincial (1860) autoriza ao governo da Província a “dar 4000$000 a quem apresentar no prazo de 10 anos a mais completa história da província de Sergipe”, obra que seria julgada pelo “Instituto Histórico do Rio de Janeiro”. (Franco, 1879, p. 664-665). Registre-se ainda que, nessa mesma década (1854), os ensinos de história e de geografia são instituídos oficialmente no secundário local.
Na imprensa diária e nas casas editoras da Bahia, as histórias de vida de sergipanos, como os que combateram nas campanhas de Cisplatina e do Paraguai, por exemplo, dão um sopro no gênero de Plutarco. Surgem os escritos de Etelvino de Barros (1867), Severiano Cardoso (1867) e Justiniano de Melo e Silva (1872). É possível que os Apontamentos sobre alguns atos da vida pública do cidadão brasileiro José Pinto de Carvalho, publicado à época (1867), tenham sido o primeiro impresso autobiográfico do século.
Chegamos, finalmente, ao início dos anos 1870. Nenhum nativo habilitou-se a escrever a tal história solicitada pela Assembléia em 1860. Onde estariam os nossos cronistas? E os nossos românticos literatos? É exatamente nesse período que discursa em Aracaju um jovem egresso da Faculdade de Direito do Recife, com frescas leituras de Comte e de Darwin. Para o noviço Silvio Ramos, a resolução legislativa de 1860 significava um grande avanço em termos políticos. Mesmo que se desconte a investida retórica – da formação e da ocasião – o parlamentar deve ter inflado o ego dos presentes com esse juízo: “foi um exemplo sem antecedente nesse país, o de um intuito puramente literário e científico votado numa Assembléia. Isso exalta o espírito inteligente dos sergipanos”. (Ramos, 1874, p. 93). Depois do exórdio, é claro, vieram as críticas ao projeto e as novas orientações para a elaboração de uma síntese de história de Sergipe. Deveria ser uma obra cientificista, distante dos modelos apresentados no Brasil por “homens de cultura acanhadíssima, como um Pereira da Silva e um Adolfo Varnhagem”. Para o Silvio Ramos, os historiadores Brasileiros – cronistas – sequer copiavam “a concepção estreita” de gente como Guizot e Michelet, quanto mais conceber a história em moldes atualizados. Quanta arrogância! Nosso romantismo literário nem bem aflorava e já estava aquele frangote a jogá-lo no lixo, tudo por conta de um positivismo absorvido às pressas.
O que interessa concluir desse tempo é que o projeto foi aprovado em primeira discussão com as mudanças sugeridas. Mas, ninguém se atreveu a escrever a história local nos moldes indicados pelo bacharel Silvio Ramos, que também não se interessou pela história da acanhada Província. Preferiu, ele mesmo, esboçar a sua teoria sobre a história como ciência em 1880 e, mais adiante, numa obra que lhe traria muita fama: a História da literatura brasileira. Aí, em 1888, o deputado Silvio Ramos já se tornara o poderoso crítico Silvio Romero.
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A síntese histórica sobre a Província, como dito acima, não chegou a ser concluída. Ninguém ganhou o prêmio oferecido pela Assembléia Legislativa. Sabe-se da existência de dois manuscritos inéditos e não localizados que poderiam configurar iniciativas nesse sentido: o texto de Joaquim José de Oliveira, Apontamentos para a história de Sergipe, e o de Manoel J. de Oliveira [Campos], a Conquista de Sergipe. (cf. Guaraná, 1924; Freire, 1977). A tão esperada História de Sergipe seria publicada apenas em 1891, por Felisbelo Freire, médico e primeiro presidente republicano da terra.
A obra nascera cientificista – ao gosto de Silvio Romero – anti-romântica e anti-metafísica (?) – “Freire foi seguidor de Spencer do começo ao fim”. Mas, a forma expositiva não se distancia do modo clássico celebrado por Varnhagen como desejaria Romero. “Para Felisbelo Freire, como para os demais historiadores do seu tempo, historiar é narrar uma sucessão de eventos na ordem temporal que aconteceram. História é a epopéia da narrativa, verdadeira, de um reino, uma dinastia, um povo ou uma sociedade (...). Da tradição historiográfica do século XIX, o modo de segmentar o tempo também se mantém: “[e]m muitos estudos, o pesquisador manifesta sua opção por parâmetros de cunho político-administrativo para periodizar (...). Freire reparte a história do estado consoante os governos que o administraram desde a conquista até a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju”. (Alves, 2000, p. 15, 18).
Antes dessa síntese, algumas monografias foram ensaiadas, ganhando a forma de apontamentos históricos ou de corografias: Corografia do município de Lagarto, de Eutíquio de Novais Lins; Notícia histórica sobre o município de Divina Pastora, Alfredo Acioli do Prado; Apontamentos históricos e topográficos da vila de Campos, Joaquim Honório dos Santos; e Descrição de Itabaiana, de Armindo Guaraná (1886). Dessas iniciativas, lamentavelmente, pouco se sabe além dos títulos e autores. São trabalhos depositados em arquivos privados ou de institutos históricos, esperando pela curiosidade dos passantes. Desses quatro textos, apenas o de Armindo Guaraná encontra-se à disposição dos sergipanos no acervo do IHGS.
A biografia é outro gênero cultivado, nesse tempo que vai do discurso de Silvio Romero (1874) à primeira síntese científica, a História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891). A intenção biográfica era idêntica aos objetivos de Freire: tornar Sergipe conhecido no país e no estrangeiro; destacar os momentos em que a experiência local “influenciou” na trajetória da experiência nacional, entre outros (registre-se que o itaporanguense também iniciou-se nas histórias de vida com trabalhos sobre Gaspar Dias Ferreira e o Padre Antônio Vieira).
Além de Freire, nessa seara, também produziram: Apulcro Mota (1889), Gumercindo de Araújo Bessa (1889), Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior (1879/...), Manuel Curvello de Mendonça (1890) e Armindo Guaraná (1890/...). Bittencourt Sampaio, Horácio Hora e Tobias Barreto foram os objetos eleitos para figurarem no panteão do lugar – o grande poeta e primeiro republicano, o primeiro artista plástico e o primeiro filósofo. A morte dessas grandes “genialidades” nativas significou, paradoxalmente, a vida e o enriquecimento do passado sergipano.
Vários desses autores destacar-se-ão nas duas décadas iniciais do novo regime. Releve-se, entretanto, a grande fertilidade da escrita de Armindo Guaraná e de Carvalho Lima Júnior.
Guaraná é celebrado como o homem do Dicionário biobibliográfico sergipano (1925), obra volumosa – quase seiscentos verbetes – gestada com a experiência da transição monarquia/república. Experiência empregada, principalmente, na correção de outro monumento sobre vidas nacionais, o Dicionário bibliográfico brasileiro, de Sacramento Blake (1883/1902). Esta intervenção lhe causou muita dor de cabeça. Seus méritos foram empanados pelos baianos – alguns jornalistas de Salvador e o próprio Blake – o que gerou uma disputa identitária entre intelectuais daqui e de lá, veiculada na imprensa do Rio de Janeiro. A obra biográfica de Guaraná é tão possante que deixa na obscuridade a citada Descrição de Itabaiana (1886), seguramente, a primeira obra de corografia publicada em Sergipe.
 Quanto ao itabaianense Lima Júnior, militante republicano, jornalista, político engajado e cultor da polêmica, este é, talvez, o escritor que mais produziu no período e com objetivos não estritamente propagandísticos. Entre os nomes do século XIX, Carvalho Lima Júnior é, certamente, o único a rivalizar com Felisbelo Freire em termos de empenho na pesquisa documental, abrangência de períodos e temas. Pode-se dizer que ele permaneceu por mais tempo em contato com a documentação manuscrita em suporte papel e deu muita voz à tradição (oralidade).
Não é improvável que estivesse preparando uma versão concorrente à História de Sergipe de Felisbelo e seria, certamente, mais rica, dado o seu interesse por educação, economia, arte e literatura e os exercícios nos campos da biografia e da síntese sobre municípios. Por não beber do cientificismo dos bacharéis, talvez, fora mais presentista e explicitou o emprego de alguns princípios do método crítico.
Curiosamente, sua obra de maior fôlego ganha o público, apenas, no século XX, após a morte de Felisbelo e a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Mas, aí já é tarde para a fama de historiador. Nos rastros da queda do antigo regime e das primeiras críticas à inoperância da República, Sergipe já presenteara o centro do Brasil (Rio de Janeiro) com os nomes de Sílvio Romero, João Ribeiro e Manoel Bomfim, embora estes nativos pouco tenham contribuído para esclarecer questões sobre  o passado local, como bem fizera o itabaianense.
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Muitos homens talentosos construíram sua base humanística em Sergipe. Os professores locais e o ensino da gramática, história, grego, latim, nos estabelecimentos públicos e privados da Província e do novo Estado, provavelmente, têm seus méritos na trajetória intelectual de jovens, como João Ribeiro, Manoel Bonfim, Fausto Cardoso e até o próprio Silvio Romero. Os cruzamentos históricos, entretanto, não permitiram que o pequeno Sergipe se transformasse, repito, em objeto de suas obras historiográficas. Eles teorizaram sobre a história – pragmática, monística, evolucionista de vários matizes etc. – e construíram sínteses sobre a experiência brasileira, algumas das quais figuram como obras modelares, a exemplo de História do Brasil para o curso superior, de João Ribeiro (1900). Os que ficaram ou, pelo menos, os que partiram e voltaram a residir em Sergipe, não descuraram da experiência local, motivados por outras demandas que, por sua vez, geraram novas histórias sobre o Estado.
A primeira dessas demandas tem origem nas políticas públicas para a instrução primária. É com a República que os primeiros livros didáticos de história e de corografia são editadas por estímulo e até patrocínio do governo. O Regime é federado. Há espaço para Sergipe. É necessário, portanto, incutir nos escolares a idéia e a defesa dessa autonomia, o que é feito por meio da edição de: História de Sergipe, de Laudelino Freire (1898); Corografia do Estado de Sergipe, Luiz Carlos da Silva Lisboa (1897); e Quadro corográfico de Sergipe, Laudelino Freire (1898). Some-se a tais esforços o manuscrito inconcluso de Severiano Cardoso – [Corografia de Sergipe] e os estudos esparsos de Manoel dos Passos de Oliveira Telles, tratando do mesmo gênero corográfico.
A construção do passado local permaneceu como motivo importante para a produção historiográfica – experiência individual e legado coletivo – e independente, até, da ação do Estado. Esse pecúlio é disperso, fragmentário, sinóptico, ganha forma de artigo ou capítulo de obra nunca editada. Nesse sentido, devem ser considerados, principalmente, os trabalhos de Severiano Cardoso – Lagarto: história e costumes (1899); Pastor Sergipano – Estância (1899); Oliveira Telles – Ensaio sobre a música popular em Sergipe (1899) e Discurso [sobre a história política de São Cristóvão] (1900); Annibal Freire da Fonseca – Movimento literário [de 1890 a 1900] (1900), Sergipe intelectual (1900) e Tobias Barreto (1900); Balthazar Góis – Biografia de Francisco Hora de Magalhães (1900); Ovídio Alves Manaya – Tobias Barreto (1900); e de Carvalho Lima Júnior – Constantino José Gomes de Souza (1892). (cf. Almanaque Sergipano, 1892/1914; Guaraná, 1925; Almeida, 2004).
O discurso auto-referenciado de sergipanos também ganha reforço nesse tempo de biografias e de esboços sobre a produção intelectual. É provável que três histórias de vida, ainda parcamente conhecidas, tenham sido rascunhadas por seus próprios, digamos, personagens, ainda no século XIX. São os casos da Autobiografia de uma escritora – Emília Rosa Marsilac Fontes; das Recordações de uma vida..., representante da aristocracia local – Aurélia Dias Rollemberg; e de A vida de um pintor, que fundou a Escola de Belas Artes da Bahia – Oséias santos.
As três demandas já citadas – a celebração da própria memória, da experiência de notabilidades locais e da vida intelectual sergipense (dizia-se, à época, vida espiritual) estão juntas em duas obras monográficas que tratam a passagem do regime monárquico ao republicano. A República em Sergipe: apontamentos para a sua história (1891) e Sergipe: estudo crítico e histórico (1896) têm grandes méritos em relação aos demais. Eles tematizam o presente imediato e discutem sobre os lugares da crônica e da história – sobre os lugares do cronista e do historiador. Seus autores, respectivamente, Balthazar Góis e Manuel Curvello de Mendonça, apresentam diferentes visões sobre a chegada da República. A disputa, porém, não se resume aos conflitos de memória desses dois ativistas da propaganda, tampouco às teses sobre a recepção ao movimento republicano. São também um debate acerca do modo de se escrever a história: entre a justaposição de biografias e o exame das idéias em suas origens, causas e conseqüências. A discussão em torno do tema também gerará dois outros trabalhos, somente publicados no século seguinte: A década republicana em Sergipe, de Francisco Carneiro Nobre de Lacerda (1906) e A propaganda republicana em Sergipe, de Carvalho Lima Júnior (1917).
Esse último tempo da bibliografia historiográfica do século XIX bem poderia contemplar a fundação de gabinetes de leitura e a revitalização da biblioteca pública (no governo Felisbelo Freire) como demarcadores institucionais da escrita da história (notem que a idéia de Biblioteca Provincial, em 1848, já incorporava funções dos institutos históricos). Mas, as pesquisas ainda não permitem afirmá-lo. Se se quiser apontar alguma instituição aglutinadora de intelectuais que escreviam história, pode-se incluir o Almanaque Sergipano. Toda a geração uma nascida a partir da década de 1850 será acolhida pelas páginas do Almanaque, principalmente. Seus redatores eram historiadores. Por essa espécie de primeira vitrine coletiva, entretanto, pode-se também perceber que o trabalho é individual, as fontes constituem acervos privativos de cada historiador, e a escrita da história é, ainda, uma habilidade entre várias requisitadas ao homem das letras desse tempo.
Mudanças nesse quadro só teremos no século XX, quando a maioria dos citados fundará o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1912), cuja principal tarefa é a de reunir as fontes e ensaiar a escrita sistemática sobre as notabilidades individuais e sobre os municípios sergipanos. É um grêmio ecumênico, atrelado ao Estado e avesso à polêmicas. O IHGS congrega os interessados em servir à Clio, trata a história como ciência. Mas conserva práticas do ofício dos historiadores do século XIX, obviamente. Essas características serão abaladas a partir da morte da geração fundadora (décadas de 1920 e 1930) e com a introdução de matérias teórico-metodológicas no curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe, nos anos 1970. Aí principia o ensino sistemático do ofício do historiador. Ensina-se a escrever a história segundo normas da filologia, paleografia e diplomática alemãs e/ou francesas – regras codificadas na Sorbonne, à mesma época (fins do século XIX) em que os fundadores do IHGS solicitavam os instrumentos da biologia para praticar a história como ciência.
Nos anos 1990, a experiência com os projetos heurísticos e os grandes congressos realizados na década anterior, as pesquisas de pós-graduação dos professores do Departamento de Filosofia e de História da UFS e as primeiras orientações de bacharelandos vão fornecer uma base para que seja adotado o trabalho obrigatório de pesquisa e composição históricas no curso de licenciatura. Essa iniciativa já resultou em centenas de monografias e pode ser considerada como um dos principais traços institucionais que têm vincado a trajetória do ofício do historiador em quase dois séculos de escrita em Sergipe. A instituição do trabalho monográfico, pela mudança de hábitos na pesquisa, pela abrangência temática, topográfica e teórico-metodológica, pela quantidade de pesquisadores que tem revelado nos últimos dez anos e pela autonomia em relação às demandas do Estado merece exame particularizado que delimite com precisão a sua relevância para a historiografia sergipana. Mas, isso já é tratar da bibliografia historiográfica do século XX, objeto que extrapola as metas desse curso que agora se encerra.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 nov. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver o sumário desta obra, acesse:
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

A Igreja Católica em Sergipe no século XIX


Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE
Escrevi, há dois anos, que a historiografia sobre Sergipe no século XIX poderia ser representada por uma tábua de pirulitos. Claro que parafraseava Evaldo Cabral de Melo (1999), para quem a historiografia brasileira era um buraco com uns pontos mais, outros menos aterrados. No caso de Sergipe – mais grave –, determinados períodos e temáticas desafiavam o tempo e os historiadores, impossibilitando, por exemplo, a produção de uma síntese que não tratasse exclusivamente de sucessões e mandatos políticos.
Por que o interesse no século XIX? Não há mistério. O novecentos é o século da invenção de Sergipe. É o tempo da autonomia política, que faz par com independência, separação, identidade, concentração e controle local. Para fabricar essa formação social, a memorialística e as produções literária ficcional e historiográfica tiveram lá o seu papel. Mas, o monopólio da violência foi fundamental. Falar em controle no século XIX, é examinar o desenvolvimento de políticas públicas que envolveram a ação de, pelo menos, três “pês” profissionais: policiais, professores e padres. Tratar de padres, por conseguinte, é tratar da Igreja Católica, que detinha o controle oficial sobre a crença.
A pesquisa histórica profissional ainda não deu respostas significativas sobre os dois primeiros “pês.” Mas, em relação ao “p”, dos padres, párocos ou pastores, as informações começaram a ganhar domínio público ampliado com a defesa da dissertação de mestrado de Péricles Morais de Andrade Júnior, há quatro anos – Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe (1831/1926). Em 2002, o terceiro capítulo, que tematiza a criação da “Diocese de Aracaju e a reforma do clero sergipano (1910/1931)”, foi publicado na Revista de Aracaju (n. 9), e agora, em escala nacional – História das religiões no Brasil (Recife: CEHILA/Editora da UFPE, 2004) –, divulga-se o principal texto: “A Igreja Católica em Sergipe no século XIX”.
Nesse escrito, Péricles Júnior descreve, sumariamente, a organização administrativa da Igreja – de uma vigararia e nove freguesias no início do século XIX para trinta e quatro freguesias cem anos depois. Trata também da função dos templos e irmandades e da formação do clero – moldado na Bahia sob a orientação romanizadora (tridentina) do reformista Dom Romualdo Seixas (1787/1860). Desse ponto em diante, o que se vê no texto são as diversas iniciativas do novo clero – “de ‘vida santa’ e ‘ilibada’” – no sentido de disciplinar e purificar as práticas religiosas. Afirma-se que as irmandades e confrarias foram monitoradas; comunitários perderam a autonomia sobre suas capelas; os templos deixaram de funcionar como cemitérios; os cultos aos santos – práticas domésticas (familiares) e públicas (em praça e na rua) – foram restringidos aos párocos e “honrados pais de família” e envoltos em clima de sobriedade. Em síntese, sob o olhar atento ao discurso dos pastores, o que Péricles anuncia acerca do século XIX é a ocorrência de uma mudança de orientação da Igreja e o emprego de um (novo?) padrão civilizador para a educação dos sergipenses.
Não farei considerações sociológicas, se a idéias de “campo” e de “capital simbólico” foram fundamentais para a interpretação do discurso dos clérigos, recolhido nas dezenas de missivas consultadas no APES etc. Apenas, saúdo a iniciativa e sugiro a continuação do trabalho, pondo os olhos, agora (sem a vulgata foucaultiana do “efeito disciplinador”), sobre um outro tipo de discurso: o dos presidentes da Província. Lá, nos relatórios e mensagens, repousam preciosos indícios da importância da missão e também do fardo administrativo que parte desse clero representava para o Estado. Um peso absorvido nos anos 1830, quem têm seu ponto culminante nos anos 1840, com queda abrupta na década seguinte, regredindo progressivamente até a instauração do regime republicano.
A mim, do texto, bastam as imagens fornecidas sobre as práticas religiosas e a resultante da manipulação de uma seqüência de nomes de autoridades eclesiásticas, de datas de criação de freguesias e de costumeiras “reclamações ao bispo”: a sugestão de que a história da devoção católica em Sergipe é também (e, sobretudo) a história de um conflito entre um catolicismo popular e um catolicismo reformado; entre religiosos de formação vária; entre leigos de traços étnicos e de capital econômico diferenciados – conflito esse para o qual  foram chamados a intervir o “aparato policial e as posturas municipais” com o fito de fazer valer os novos “padrões de decoro e de moralidade” do novo clero. (p. 397).
Durante a feitura da dissertação, Péricles Júnior deve ter sofrido os condicionamentos da mudança de área. Ele graduou-se em História, fez mestrado em Ciências Sociais. Não é improvável que tenha ouvido coisas do tipo “a diacronia não nos interessa”, “a pesquisa arquivística não é indispensável” etc. Mas, bem o sabemos: um pé na crítica histórica, na dúvida metódica e no trabalho com fontes coevas, mais que desvirtuar, enriquece a formação desse futuro sociólogo quase doutor pela UFPE, que põe ênfase na atribuição de sentidos sob fórmulas de Pierre Bourdieu.
Não obstante as velhas e compreensíveis lutas identitárias entre sociologia e história, o capítulo sobre a Igreja Católica acrescenta uma boa pá de terra nas crateras dessa desconhecida estrada que é o nosso século XIX. Além disso, credencia o autor para a construção de uma síntese sobre o tema. Atualmente, pela orientação e pela experiência, é o profissional em Sergipe que melhor domina os instrumentos requeridos para essa tarefa.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A Igreja Católica em Sergipe no século XIX. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 out. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.


Fonte da imagem:
Foto: Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE