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domingo, 15 de agosto de 2004

Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes

Como prometido na semana passada, aqui estou para comentar “A evolução de Aracaju”, texto de Silvério Fontes editado por Luiz Antônio Barreto na coletânea A formação do povo sergipano (Aracaju: Secretaria de Estado da Cultura, 2004).
O trabalho é uma conferência, fundada sobre fontes de segunda mão. Não vale pela apresentação de fatos novos ou documentos inéditos. Vale pela interpretação produzida sobre os clássicos relatos que tematizaram a história e a geografia de Aracaju.
O que é Aracaju para Silvério? – Ele responde: “Ela é minha cidade! Parte de meu sangue, dos meus olhos, de minhas recordações e emoções!”. Lembro daquela confissão de Sebrão sobrinho: “Estimo, bem-quero tanto a Aracaju que não sei si me sobejava coragem pra falar mal dela, ainda mesmo o merecendo.” (1955, p. 348). A diferença é que Silvério não se esforça para anunciar a imparcialidade do historiador, como fez o itabaianense. Ele não canta-lhe louvores, não é poeta. Também não define a vocação futura da cidade, não é político. Quer apenas compreendê-la. (cf. Fontes, 2004, p. 106)
Sim, mas o que é o objeto “Aracaju” para Silvério? É “um assunto central da história política, econômica e social de nosso Estado”, uma “unidade cívica em crescimento e em expansão relativamente às demais de Sergipe”. Para compreendê-la em sua “evolução global”, é necessário abandonar toda a periodização que não leva em conta a diversidade da experiência citadina – a um só lance, econômica, geográfica, política, educacional, etc. Disso decorre, talvez, a mais significativa contribuição do ensaio à historiografia sobre Aracaju: a divisão em cinco fases: 1. antecedentes ou pré-história da cidade – 1590/1852; 2. fundação – 1853/1856; 3. consolidação urbana – 1857/1899; 4. centralização regional – 1900/1935; 5. concentração regional – 1935/1973.
Cortada em fatias, Aracaju pode já ser compreendida, o que não significa dizer descrita, contemplada, comentada com isenção. “Compreensão” nesse ensaio é a atitude do historiador que tem ligação efetiva e afetiva com o seu objeto, nele estando imerso. É assim que eu “compreendo” as intrusões que atravessam o texto. Silvério dá lições de moral e ensaia explicação sobre os jogos da política no século XIX. Ele denuncia a incúria do prefeito Cleovansóstenes Aguiar com o arquivo municipal, a miopia político-administrativa de Pedro II, a pobreza da população e o conservadorismo da classe média aracajuana. Em suma, compreender para Silvério significa (também) aproximar-se e firmar posição.
Além da periodização e da atitude compreensiva sobre a “Evolução”, merecem registros, pelo menos, dois traços distintivos de Aracaju: o primeiro foi extraído da Corografia de Sergipe (1897): a capital, “como uma esponja, absorve a seiva dos núcleos populosos que lhe ficam perto.” A tese é validada para todo o período do século XX . O crescimento econômico e demográfico da capital – via fábricas de tecidos, ferrovia, estradas de rodagem, instituições escolares etc. – é proporcional à pauperização das cidades do interior do Estado. Um paradoxo.
O segundo elemento que demarca a identidade de Aracaju é o conflito entre a “mentalidade urbana” – da “classe média” e do “proletariado” local  – e a mentalidade das “forças tradicionais” do interior do Estado que a dominaram em toda a sua existência, “um grupo de famílias de proprietários de terras ou de industriais e comerciantes, que são também proprietários de terras”, que conservam valores de “sociedade agrícola arcaica e retrógrada”.
Silvério lamenta que a sua Aracaju nunca tenha participado “decisivamente na escolha do Governo Estadual”, apesar das tentativas lideradas pelo deputado Fausto Cardoso (1906) e pelo tenente Maynard Gomes (1924 e 1926). Deplora a aliança da classe média com os proprietários do interior. Anima-se com as possibilidades de mudança a partir do crescimento da indústria mineradora e da Universidade Federal de Sergipe, mas não quer indicar o papel da cidade “no novo panorama” que se esboça em 1973, pois “não é função do historiador responder. Pertence-lhe o mostrar ao político as tendências marcantes da evolução e sua problemática.” Tudo bem, professor... Faltava apenas um parágrafo para encerrar-se a conferência. As coisas já estavam ditas.
De 1973 até hoje, o conservadorismo das classes médias foi bastante matizado, embora o governo do Estado ainda seja uma prerrogativa das famílias do interior. Por outro lado, muitos problemas de pesquisa apontados por Silvério já ganharam bons desenvolvimentos, tais como: a Revolta Fausto Cardoso, o movimento tenentista, o abolicionismo de Francisco José Alves, os indígenas, a instrução pública e os trabalhos de geografia urbana (a abordagem geográfica tem grande peso no seu texto e não se sabe, ainda, se pela inexistência de trabalhos de historiadores sobre Aracaju pós-centenário ou se por conta das suas leituras braudelianas).
A grita sobre a desorganização das fontes arquivísticas também foi atendida. Muito do que ele precisava para enriquecer o seu ensaio está catalogado no Arquivo Estadual, no Instituto Histórico, na Cúria Metropolitana, no Arquivo do Judiciário, entre outros. Até mesmo a Prefeitura Municipal de Aracaju já disponibiliza a documentação que restou dos tempos de Cleovansóstenes de Aguiar em Arquivo público. Somente a pesquisa arqueológica, apesar de frondosa, não trouxe ainda “alguma luz” sobre o local da primeira Aracaju. Mas, ainda é tempo. O sesquicentenário da cidade só começa no próximo ano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 15 ago. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 8 de agosto de 2004

Silvério Fontes outra vez

José Silvério Leite Fontes (1924-2005). Foto: Bruno Boss.
Junho e julho foram os meses de José Silvério Leite Fontes. No último dia sete, o mestre recebeu o título de sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a instituição que ele ajudou a reerguer, após o afastamento do grande Epifânio Dória. Por sua condição de professor e historiador das coisas da terra, estimulou os alunos a associarem-se à Casa de Sergipe, transformando-a em um laboratório de pesquisas para o curso de Licenciatura em História da UFS nos idos da década de 1970. (Freitas, 2002, p. 18-19).
Três semanas antes da titulação no IHGS, outra homenagem fê-lo deslocar-se de sua residência até a Biblioteca Pública Estadual. Nesta ocasião, em feliz iniciativa da Secretaria do Estado da Cultura, lançou-se uma coletânea de seis ensaios da sua lavra, organizados e comentados por Luiz Antônio Barreto.
Qual a razão das homenagens? Por que motivo insiste-se tanto na lembrança deste professor, ausente do magistério há bem mais de uma década? Claro que Silvério é muito estimado por aqueles que desfrutaram do seu convívio. Estudiosos da filosofia, profissionais do Direito, sindicalistas militantes, gente do apostolado católico, todos têm motivos de sobra para festejá-lo. Mas, dentre os fatores que têm justificado esses atos de cortesia – quatro deles eu acompanhei de perto – ganha vulto a sua obra de historiador.
Silvério vivenciou momentos decisivos da re-configuração do ofício do historiador no Brasil. Esteve presente aos simpósios iniciais da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH); importou, divulgou e fez implantar, em Sergipe, as novas diretrizes teórico-metodológicas para a formação desse profissional. (cf. Oliva, 1998, p. 43).
Silvério lutou por um curso de pós-graduação na área, trouxe para Aracaju os grandes formadores de opinião, como Eurípedes Simões de Paula e José Honório Rodrigues. Além disso, colocou o Estado no mapa da renovação acadêmica, ajudando a organizar os Encontros de especialistas e empreendendo sistematicamente o levantamento e a organização de fontes. (cf. Oliva, 1998; Freitas, 2002).
Se, no final dos anos 1960, estar em dia com o debate acadêmico era citar os teóricos da terra de Marianne, é provável que a ausência de um francês como Jean Glénisson, nos quadros da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, deixasse de representar um grande problema para a formação local: Silvério traduzia textos de Henry-Irinée Marrou, difundia Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Autores clássicos e modernos eram consumidos pelo douto sergipano que mantinha os olhos nas “alianças e apoios” estabelecidos pela segunda geração dos Annales sem, contudo, desviar o pensamento do axioma cartesiano, a dúvida metódica – na crítica histórica –codificada por Charles Victor Langlois e Charles Seignobos.
Muitos elementos desse parcimonioso ecletismo devem ter-se alojado, provavelmente, nos recônditos da memória de um ou outro aluno atento como Francisco José Alves, Terezinha Alves de Oliva e Ibarê Dantas. Os graus de apropriação, bem como os efeitos desencadeados nas referidas carreiras estão por serem descritos e avaliados pela história da historiografia. Entretanto, os resultados da sua francofilia em termos de escrita da história, flagrados nos textos sobre sociedade, política, e historiografia de Sergipe, podem agora ser apreciados com maior precisão a partir do lançamento da coletânea Formação do povo Sergipano (Aracaju: SEC, 2004).
Não considero um título feliz, pois nem todos, a exemplo do ensaio homônimo, tratam da formação do povo sergipano, ou seja, nem todos tentam “desvelar” as origens ou “o rosto do povo sergipano”, a consciência de sergipanidade e a “missão” de Sergipe diante da cultura nacional. Há história da historiografia, tanto em “Um projeto de história de Sergipe” – projeto coletivo para a elaboração de uma nova síntese da nossa história –, quanto no “Levantamento das fontes primárias da história de Sergipe”. Há história política, uma página sobre “Labatut em Sergipe”. Nesse texto, Silvério procura entender os motivos de alguns sergipanos terem se posicionado contra o general pacificador, a favor dos insurgentes de 1822, a favor da Bahia e, conseqüentemente, na contramão da autonomia local. Há, por fim, estudos sobre urbanidade, seja no aspecto da infraestrutura e das condições de vida – “Cidades e vilas de Sergipe no século XIX” –, seja na questão do confronto entre mentalidades urbanas e rurais – “A evolução de Aracaju”.
Sinto-me, por outro lado, incompetente para sugerir um outro título mais próximo das verdades dos ensaios. Sofro ao imaginar o trabalho do organizador para nomear a sua cria – (Que nome sintetizaria esses fragmentos da obra de Silvério? Por que não incluir o “Direito provincial sergipano”? etc., etc.). O livro em tela é obra de reescrita, isso basta. É trabalho de re-significação de textos produzidos em condições diversas e com objetivos vários. Talvez, nem o próprio autor acertasse na escolha do nome.
Agora é a minha vez de fazer penitência: imagine o leitor o problema que é comentar uma coletânea sem redundar no simplório resumo de cada peça ou na avaliação genérica sobre a importância de todos os escritos. Por isso, vou logo avisando que estenderei meus comentários por vários artigos, produzidos à medida que me sentir suficientemente preparado para a leitura de cada um deles. Na próxima semana, deter-me-ei, sobre “A evolução de Aracaju”, último texto desse livro, pronunciado como conferência no II Simpósio de História do Nordeste (Aracaju, 1973). Até breve.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Silvério Fontes outra vez. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 08 ago. 2004.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.


Fonte da imagem
José Silvério Leite Fontes (1924-2005). Foto: Bruno Boss < http://silveriofontes.com.br/index.html >.