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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Menos doutrinação e mais objetividade no jornalismo!

Ilustração produzida a partir do logotipo da coluna de Rodrigo Constantino.
Nas últimas quatro semanas, a mídia impressa de grande circulação no país veiculou exageros e apelos apocalípticos. Tudo muito previsível quando o tema corrente era a eleição presidencial. A eleição acabou. Contudo, e infelizmente, a cultura do medo de uma hipotética “cubanização” do Brasil continua e, depois da saúde, o alvo é, mais uma vez, a educação, em particular o ensino no campo das humanidades.
O filme é antigo. Lembra as denúncias de Ali Kamel sobre um suposto patrocínio do Estado brasileiro aos livros didáticos que positivavam stalinistas e maoístas: “nossas crianças estão sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada, e o efeito disso será sentido em poucos anos” (O Globo 19/09/2007). A diferença, dessa vez, é a qualidade inferior dos argumentos, disparados pelo jornalista Rodrigo Constantino em sua coluna no portal de Veja (8/11/2014), cuja mensagem é bem sintetizada na frase-título: “Chega de doutrinação marxista nas escolas!”
Vamos poupar o leitor dos detalhes (http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/socialismo/chega-de-doutrinacao-marxista-nas-escolas) e comentar o fundamental da sua peça publicitária: a generalização infundada, a desinformação e, talvez o pior de todos os equívocos, a contradição.
Constantino é frouxo no uso de termos centrais de seu argumento. Ele reproduz, de modo simplista, a oposição entre capitalismo e comunismo, proposta por duas adolescentes: sua filha e uma amiga. Ainda se satisfaz em tripudiar da amiga da filha que ousou criticar, em sua inocência juvenil, o capitalismo (mesmo tendo mãe empresária). “Que poço de contradições essa menina”, parece implicitamente sugerir Constantino com seu irônico comentário: “só faltou culpar o capitalismo pela miséria africana”.
Daria até um bom debate a reflexão sobre a miséria africana a partir da velha tese leninista do imperialismo europeu como fase superior do capitalismo. Mas o polemista da Veja, provavelmente, não toparia o confronto. A simples referência ao nome Lênin causar-lhe-ia espasmos.
O "perigo vermelho" ilustrando uma definição
não fundamentalista de ideologia
Antes de Lênin, contudo, existe Marx: alvo das estocadas de Constantino. E antes da inocência juvenil das meninas existe a escola e seus professores, ideólogos e doutrinadores das ideias do ameaçador velho barbudo comedor de criancinhas. O colunista de Veja afirma que a nossa “elite de esquerda” repete a ladainha das adolescentes (comunismo, socialismo e ideário de esquerda são farinha do mesmo saco), reduzindo a teoria social de Marx a outra sentença mágica: “desejar que os mais pobres tenham os mesmos bens que os mais ricos”.
O ideólogo-jornalista, arvorando-se portador de grande objetividade analítica, afirma não existir “nada mais falso” que esse axioma. Para ele, a verdade reside em outro lugar. Ele professa e divulga, doutrinariamente, um liberalismo radical (econômico e moral), que desemboca no elogio da meritocracia, do mercado, do individualismo e dos fundamentos da desigualdade humana.
Não bastasse a ligeireza analítica, Constantino também demonstra desconhecimento. Fazendo uso da experiência de Gustavo Ioschpe, que “tem ficado estarrecido com a doutrinação marxista nas escolas particulares do Brasil”, o jornalista se equivoca ao generalizar. O país possui milhares de “escolas particulares”. Se esse tipo de silogismo for legitimado, poderemos também afirmar que “a intolerância é dominante nas escolas católicas e evangélicas de Brasília, onde alunos chegam a regozijar-se com a morte “dos viadinhos”, quando determinado professor de história discute o genocídio patrocinado por nazistas alemães. E temos certeza de que a maioria dos alunos de escolas evangélicas e católicas não age assim.
Usando o bom senso, entretanto, ou a empiria nossa de cada dia, sabemos que a prática da doutrinação marxista não tem a dimensão alardeada pelo articulista. Não tem, por exemplo, porque a formação inicial de professores de história não está (mais) fundamentada em pressupostos marxistas, não tanto quanto as análises de grande parte dos lúcidos economistas liberais sobre a realidade brasileira.
Se a doutrinação marxista efetivamente campeia nas “escolas particulares”, alguma coisa está errada: ou os professores têm sido pouco competentes no trabalho de doutrinação (já que o candidato Aécio foi o preferido de 51 milhões de eleitores) ou os alunos não consomem a suposta doutrinação marxista do mesmo modo que os supostos professores doutrinadores marxistas assim o desejariam.
Constantino parece não saber que a ideia de uma educação escolar (e de qualquer formação de pessoas) sem ideologia é também ideológica e, transformada em fenômeno ideal-típico, não correspondente à vida prática, ou seja, é uma utopia (às avessas). Nos anos 80 do século passado, muitos leitores dos leitores de Marx fizeram a mesma análise aligeirada acerca dos livros didáticos de história, tentando desvelar a ideologia liberal nos textos escritos e icônicos desses livros. O avanço da pesquisa na área, felizmente, demonstrou que não há sociedade desideologizada e o dístico do jornalista (“Análise de um liberal sem medo da polêmica”) é fato. Também não há ideologia boa e ideologia ruim em essência. A ideologia dos autores/editores, presente nos livros didáticos, no Brasil e fora dele, (como asseverou o professor Kazumi Munakata) é o mercado.
A desinformação também marca o texto de Constantino. Ele afirma (ainda usando Ioschpe) que estão “espalhando o marxismo por aí, sem que os pais saibam ou façam algo a respeito”. Ora, o marxismo está “espalhado por aí” desde o início do século XX, inclusive nos currículos do governo “liberal” de Getúlio Vargas e, mesmo, em manuais de história curiosamente tolerados pelos censores de nossa última ditadura militar. Se for verdadeira a afirmação de que os pais não sabem disso, estamos diante de fenômenos muito bem estudados pelos pesquisadores da(s) família(s) e do(s) Estado(s).
Um deles é a mudança nos modelos de organização, nos quais a atribuição do acompanhamento escolar dos filhos fica(va) a cargo de criadas, avós e, adiante, da mãe. Como as famílias extensa e nuclear, há muito, deixaram de ser dominantes (se é que algum dia o foram), a sugestão de que o marxismo se alastra nas “escolas particulares” faz, então, da “denúncia-manifesto” de Constantino uma espécie de juris sperniante.
Ideologia demais...ideologia de menos!
Aliás, alguém teve a infeliz ideia de incluir na Constituição de 1988 que a educação (sugestivamente escolar) é dever também da “família”, mas, como diz o professor Fábio Alves, não consultou a “família” (brasileira?), nem deixou claro o quê ou quem seria essa “família”. A responsabilização dos professores, para o bem ou para o mal (mais para o mal dos professores, inclusive), pela integral educação dos nossos filhos, é uma tendência ocidental.
Fragilidade conceitual, generalização infundada e desinformação são adjetivos adequados para qualificar o artigo em análise. Contudo não poderíamos encerrar esse comentário sem apontar o principal equívoco do profissional que se esmera em persuadir o leitor de Veja: a contradição. É inacreditável que Constantino cobre objetividade de professores se ele mesmo pratica um jornalismo tão ideologizado. Ele acredita que com frases feitas possa convencer alguém (sem nenhuma seriedade probatória, nem que fosse por silogismo). Depois do elogio do capitalismo, da economia liberal, da livre concorrência (que melhorariam a vida dos pobres), ele conclui com a muito científica observação: “todas as experiências comprovam o que a teoria explica”. Que experiências? O que cobra dos professores poderia ser cobrado do jornalismo que pratica: menos doutrinação e mais objetividade!

Para citar este artigo:
FREITAS, Itamar; GUIMARÃES, José Otávio Nogueira. Menos doutrinação e mais objetividade no jornalismo! Brasília, 9 dez. 2014. Disponível em: http://itamarfo.blogspot.com.br/2014/12/menos-doutrinacao-e-mais-objetividade.html.

Para conhecer outra denúncia sobre o mal que representa a ideologia na escola, acompanhe a mensagem do Padre Ricardo. 


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Tempo presente e livro didático de história

O tempo presente francês. Vinheta da página inicial do site do Institut d'histoire du temps présent - IHTP.
A noção de história do presente se constituiu e se consolidou como campo de pesquisa histórica apenas na segunda metade do século XX, embora comumente remontemos aos gregos o interesse dos historiadores pelos acontecimentos do seu tempo. A criação em 1978 do Institut d’histoire du temps présent na França (IHTP), referência internacional na reflexão sobre as possibilidades de historicização do “vivido”, representou passo importante em direção a institucionalização desse campo de pesquisa.
Apesar das reticências enfrentadas relacionadas a questões de ordem metodológica (Que fontes utilizar? Como fazer sua critica?); de como lidar com a inserção do historiador no tempo narrado; de cronologia (Quando começa e quando termina?) e de definição conceitual (História do presente, história do tempo presente, história próxima ou história imediata? Quais as diferenças?), aos poucos as interdições impostas à abordagem do coetâneo pelo século XIX foram superadas.
A história praticada na segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos 1970, é um dos fatores que explicam essa virada. A chamada renovação historiográfica, conduzindo à quebra dos paradigmas da história e proporcionando o interesse dos historiadores pelas mentalidades, pelo político e cultural, por novos sujeitos (mulheres, negros, índígenas etc) e novas fontes, contribuiu para a legitimidade desse campo de investigação. Além dessa motivação acadêmica, podemos acrescentar: a aceleração do tempo vivido provocando rápidas transformações ao longo da segunda metade do século passado e início do XXI; o papel que tem exercido e o lugar que tem ocupado os meios de comunicação no mundo contemporâneo e as demandas, pressões sociais surgidas em meio às efemeridades que têm marcado o atual regime de historicidade, definido por Hartog como presentista (2010).
Todos esses fatores permitiram a revisão de uma das premissas metodológicas para a escrita científica da história tão cara aos especialistas do XIX e questionada por aqueles que no século subsequente enveredaram com insistência na abordagem do presente: a exigência de distanciamento temporal do historiador para com seu objeto. Nessa nova configuração, o historiador agora é chamado para prestar contas também do presente, a contribuir para a construção de explicações para os acontecimentos atuais, para as questões étnicas, religiosas, econômicas, tecnológicas, políticas, sociais e culturais que têm surgido ou ressurgido nas sociedades contemporâneas e provocado aceleradas transformações.
A sedimentação da história do presente traz consigo também uma função social. Nascida a partir de demandas das sociedades contemporâneas (CHAUVEAU & TÉTART, 1999), podemos afirmar que ela é fundamental para a “constituição do sentido da experiência do tempo”, para a orientação da vida prática (RÜSEN, 2001) Entre os que se dedicam a investigar o presente, parece ser consenso que construir uma reflexão histórica sobre o vivido contribui para combater os efeitos do presentismo que, de acordo com Hartog (2010), caracteriza-se pelo “expansionismo do presente”, por sua valorização exacerbada prensando as pessoas entre um passado que parece muito distante e que corre o risco de cair no esquecimento e um futuro dominado pela incerteza.
As palavras de Rioux expressam bem essa preocupação:
Como não sentir [...] que uma reflexão histórica sobre o presente pode ajudar as gerações que crescem a combater a atemporalidade contemporânea, a medir o pleno efeito destas fontes originais, sonoras e em imagens, que as mídias fabricam, a relativizar o hino à novidade tão comumente entoado, a se desfazer desse imediatismo vivido que aprisiona a consciência histórica como a folha de plástico ‘protege’ no congelador um alimento que não se consome? (1999, p.46)
Utilizada inicialmente para se diferenciar do contemporâneo, entendido como período/época histórica, aos poucos os acadêmicos foram dando à expressão, história do tempo presente, contornos definidos. Metodologia, fontes, definição conceitual e a questão da presença do historiador no tempo narrado foram as questões que nortearam as discussões com o objetivo de retirar as desconfianças que desde os oitocentos impediam converter o presente em historiografia acadêmica. O argumento predominante, de forma geral, é que as mesmas regras que normatizam a produção do conhecimento histórico relativo às outras temporalidades são as mesmas para o tempo vivido (BERNSTEIN; MILZA, 1999). Os objetos também se diversificaram bastante, do foco do político passamos para temáticas que dizem respeito ao social, econômico e cultural.
Mas apesar de superadas as interdições à historicização do presente, duas grandes dificuldades ainda permanecem na discussão sobre a natureza dessa história. A primeira é de ordem conceitual. Na grande maioria dos textos em que a questão é abordada, a expressão é empregada sem que haja uma preocupação com sua conceituação (história do presente, história do tempo presente, história próxima, história recente) – algumas vezes encontramos a utilização de mais de uma delas numa mesma obra. De difícil precisão, ela tem sido muito mais caracterizada por aquilo que não é, ou do que não trata[1].
Outro elemento de discordância gira em torno de qual seria a matriz do tempo presente. Enquanto alguns trabalham com a baliza do pós Segunda Guerra Mundial, outros delimitam 1989 – que representa o fim do socialismo real com a queda do muro de Berlim- como o marco do tempo presente. Na base dessa dificuldade está, certamente, uma das características próprias dessa história, o de seus limites temporais serem permanentemente móveis (AROSTEGUI, 2004; ROUSSO, 2007), descartando, dessa forma, a possibilidade de ser entendida/confundida como um período ou sub-período da história. Nesse sentido, teríamos para cada experiência nacional ou continental uma demarcação particular referenciada em algum acontecimento traumático.
Mas na historiografia didática, como o tempo presente é abordado? Sabemos que a incorporação de eventos próximos à experiência dos alunos ocorre desde o século XIX, com a constituição da chamada história contemporânea. Como então o livro didático, que tem procurado acompanhar as novas demandas epistemológicas da ciência de referência, educacionais e sociais que vem se apresentando em nossa sociedade desde finais do século passado, leva essa discussão para seu interior? Há uma reflexão sobre esse campo? Que marco cronológico é utilizado? O que do tempo presente é abordado? Quais seus usos no ensino?

O tempo presente no livro História: série novo ensino médio e em História em foco de Divalte Garcia Figueira
História: série novo ensino médio, volume único, foi lançado em 2002 e reeditado em 2003, 2010 e 2011. Apresenta proposta curricular “integrada”, organizando os conhecimentos factuais, conceituais e procedimentais em ordem cronológica no conhecido quádruplo história antiga, média, moderna e contemporânea. A mesma organização orienta História em foco (2011), também destinada ao ensino médio, mas disposta em três volumes.
As obras foram escolhidas por sua regularidade de circulação ao longo da última década, como também pela legitimidade reivindicada pelo autor no campo da pesquisa histórica e do ensino de história para a escolarização básica. É a própria editora Ática (detentora dos direitos autorais) quem divulga na página de créditos: Divalte Figueira é mestre em História pela USP, professor de história do ensino médio e autor de Cidades históricas e o barroco mineiro (2000) e Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai (2001).
Para examinar a presença de referências ao tempo presente na obra (definições, marcos temporais, usos no ensino, níveis de experiência humana abordados) optamos por selecionar alguns indicadores que poderiam incorporar algumas das discussões acima. Nossa hipótese é que as possibilidades podem situar-se: 1. nos elementos pré-textuais (apresentação e sumário) 2. nos textos principais referentes à introdução à história; 3. nos textos principais e respectivos exercícios que apresentam a experiência contemporânea (com ênfase na experiência brasileira); 4. em sessões específicas que exploram o desenvolvimento de habilidades de relacionar passado/presente, distribuídas por toda obra; 5. nas instruções metodológicas disponibilizadas no manual do professor. Vejamos, agora, os resultados.

Posse de Fernando Collor de Melo como presidente da República: início do presente da história do Brasil.

Indícios do tempo presente nos elementos pré-textuais
De início, questionemos: a que se destina o livro, quais são os seus objetivos? Aqui, nos elementos pré-textuais, é possível identificar preocupações com a experiência do presente mediante o emprego de alguns vocábulos indiciários. Em 2002, os editores atribuem à obra a tarefa de auxiliar o aluno a “enfrentar as exigências de um mundo cada vez mais globalizado”, atendendo às prescrições legais para o ensino médio. No ano seguinte, surge o “vestibular” como preocupação, além da intenção de contribuir para a “formação cidadã” do aluno. Em 2010, a formação cidadã permanece, acompanhada da vantagem de fornecer “os acontecimentos e processos mais importantes da história”. Na primeira edição da História em foco (e última versão da história escolar para o ensino médio produzida por Divalte Figueiras), por fim, é a realização das “provas do Enem e dos vestibulares mais exigentes” que norteia as intenções da autoria. Aqui também os “processos importantes” ou o “tudo sobre a história geral e do Brasil”, presentes nas edições de 2003 e 2010, é substituído pela compreensão dos “acontecimentos” e “processos históricos mais importantes” (Cf. FIGUEIRA, 2002, p. 3, 2003, p. 3, 2010, p. 3, 2011, p. 3).
Logo na apresentação os livros destacam o “governo Lula” e a “globalização”, o mundo “globalizado”. Também informam sobre a sessão “Leitura e debate”, cujo objetivo é desenvolver a habilidade de relacionar “o estudo da história” e a “vida concreta” do aluno (FIGUEIRA, 2003, p. 3). Mas é no sumário que os indícios são mais robustos. Em ordem cronológica das edições, constatamos o destaque para a experiência brasileira como último tópico em todos títulos analisados: “O Brasil de hoje” e “Brasil: a construção do futuro” (nas três edições seguintes). Examinemos, então, o lugar do “hoje” e da “construção do futuro” no conjunto da obra, focando unidades/capítulos que exploram a experiência brasileira, já que os títulos de Figueira destinados ao ensino médio não reservam tópicos para temática da introdução à história.

Conhecimentos e habilidades sobre o “hoje” e o “futuro”
De início, vejamos o lugar do contemporâneo nas obras de Figueira. Como podem acompanhar pela tabela n. 1, o período que se inicia com a Revolução Francesa mantém o espaço nas três edições de História: série novo ensino médio. São 54% do espaço em páginas, restando 46% para todas as outras “idades”. Concluímos então que o contemporâneo é majoritário. No título História em foco, entretanto, esse domínio cai para 35%. A explicação para essa mudança nos parece bastante simples. A distribuição em três volumes (o História: série novo ensino médio é volume único), obriga a uma adequação entre a distribuição de páginas e a distribuição dos conhecimentos/períodos pelos três anos do ensino médio.
Quanto ao espaço ocupado pela experiência brasileira – a que se refere ao “hoje” e ao “futuro” –, observamos idêntica constância nos volumes de História: série novo ensino médio e a ampliação em História em foco (apesar de o espaço contemporâneo ter diminuído em relação à edição volume único). Isso nos leva à conclusão de que maior espaço em volumes e páginas significa maior espaço em páginas para a experiência brasileira, tanto nas páginas do contemporâneo quanto nas páginas do Brasil “hoje”, como demonstrado na tabela 2.
Constatamos, então, a hegemonia do contemporâneo na obra de Figueira e a ampliação do espaço concedido à experiência brasileira e contemporânea quando os conteúdos são distribuídos em três volumes. Mas, qual a natureza desse contemporâneo e da experiência do “hoje” brasileiro?
Ambos os títulos conservam idênticos conteúdos factuais, conceituais e procedimentais. O contemporâneo encerra, por exemplo, os acontecimentos da revolução francesa, independências na América (inclusa a do Brasil), Brasil império, Brasil república, guerras mundiais, guerra fria e globalização. As variações ficam por conta dos títulos das unidades: “um mundo bipolar” transforma-se em “A terra dividida” (relativo à guerra fria), “Sob o domínio do capital” transforma-se em “O domínio da burguesia” e assim por diante.
Em relação à experiência brasileira, a escrita se repete, ou seja, são modificados os títulos de algumas unidades. “Rumo ao terceiro milênio”, por exemplo, (em virtude do esgotamento do novo milênio como novidade), passa a chamar-se, nas três edições seguintes, “Ricos e pobres no mundo globalizado”. O mesmo ocorre com o tópico referente ao Brasil: “Brasil de hoje”, no exemplar de 2002, é substituído por “Brasil: a construção do futuro”.
Por fim, o sentido de “hoje”. Trata-se de um conjunto de acontecimentos de caráter político e econômico que incluem a experiência dos governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula. Como vemos, “hoje” é um conjunto de acontecimentos decorrentes da ação do Estado (políticas públicas, política exterior), das mudanças promovidas pela sociedade civil (escolhas eleitorais, demandas por políticas públicas) e, em menor grau, de desdobramentos de crises econômicas e políticas ocorridas em outras partes do mundo. Dizendo de outro modo, não é tanto a derrocada do socialismo real que marca a experiência inicial do presente (o “hoje”) do Brasil, quanto as vicissitudes da política interna local (corrupção, impeachement etc.).
Um dado também importante, que denuncia a natureza do “hoje”, é a distância entre o tempo vivido pelo historiador (o tempo do encerramento da produção do livro didático) e o tempo narrado (os acontecimentos referidos na obra). Podemos constatar que essa diferença é mínima, ainda que desigual.
Pela tabela 3, é fácil constatar que o “hoje”, nos conhecimentos factuais e conceituais relativos à experiência brasileira, é um tempo que se inicia com os acontecimentos destacados da administração Collor de Melo e encerra-se com os fatos do mesmo gênero, relativos ao governo em vigor, coincidentes (ou distantes em até três anos) em relação ao tempo vivido pelo autor/editor. Em outras palavras, o hoje “brasileiro” não se apresenta como escala móvel, já que possui um ponto de partida que não se modifica (o governo Collor), indicando a provável consolidação de um novo período para a história do Brasil.
Por outro lado (cruzando os dados das tabelas 2 e 3), é também fácil verificar que a experiência narrada se expande, mas o número de páginas se conserva (ao menos no título que reúne três edições – História: série novo ensino médio). Como isso é possível? Ora, o ajuste é bastante simples. Na edição de 2002, os conhecimentos referem-se, obviamente, às épocas de Fernando Collor, Itamar Franco (que não ganha espaço em separado) e FHC. No ano seguinte, com a eleição de Lula, o autor/editor exclui textos que narram a experiência desses três personagens para tratar do novo governo. Na edição seguinte (2010), os espaços de Collor/Itamar parecem consolidar-se. FHC, ao contrário, perde ainda mais “território” e o governo Lula ganha mais três páginas[2]. Essa prática de adequar o espaço ao tempo, rendendo maior espaço ao recente ou recentíssimo, pode configurar a escrita da história didática como uma espécie de historiografia aditiva, tal como a descreve Reinhart Koselleck  (Cf. 2006, p. 276), demonstrando uma preocupação mercadológica e acadêmica (que é também mercadológica): atualização historiográfica (efetuada mediante fontes jornalistas, sobretudo).
O “hoje” e também o “futuro” são abordados nos exercícios sobre os conhecimentos referentes aos últimos textos citados que tratam da experiência brasileira. Os enunciados são mantidos, com poucas alterações entre os quatro exemplares examinados.

Análise
2. Os últimos dez anos da história econômica brasileira foram marcados por intenso processo de privatização e de abertura do mercado ao capital estrangeiro. Reúna-se com um grupo de colegas e discutam as consequências dessa política para o futuro do Brasil
Trabalhando o contexto
4. Reúna-se com um grupo de colegas e discutam quais são os principais problemas do Brasil hoje. Depois, preparem um seminário sobre o tema e apresentem para a classe.
Síntese
Forme um grupo com seus colegas e elaborem uma redação sobre o Brasil no ano 2050. Não se esqueçam de levar em conta o cenário mundial e os problemas discutidos durante os seminários da classe (FIGUEIRAS, 2002, p. 425).
Ampliando o conhecimento
Como está hoje o movimento estudantil? Quais são suas bandeiras? O que informam as páginas da UNE, da UEE e de outras organizações estudantis na internet? (FIGUEIRAS, 2011, p. 251, v. 3).
O “hoje”, nos exercícios, portanto, significa um presente relacionado ao ano de uso do livro didático com abrangência subjetiva em termos de níveis de experiência humana. O mesmo se pode dizer a respeito do “futuro”, posto em relação aos acontecimentos dos últimos dez anos. Quanto ao futuro situado em 2050, fica a questão aberta sobre a utilidade/finalidade dessa questão para o aprendizado histórico mediante o uso do livro didático.

O presente como desenvolvedor de habilidades
Pelo último exemplo do tópico anterior, é fácil perceber que os exercícios constituem uma seção do livro didático. Da mesma forma, está claro que essa seção tem o objetivo de auxiliar no desenvolvimento de determinadas habilidades (no caso, analisar, contextualizar, sintetizar e ampliar o conhecimento). Seções, portanto, podem ser definidas como “os constituintes do menor segmento orgânico do livro didático, isto é, a menor parte da obra que pode ser lida e compreendida autonomamente” (FREITAS, 2010) e que tem a finalidade de explorar a capacidade de retensão e de compreensão dos conteúdos substantivos, como também, de desenvolver procedimentos caros à pesquisa histórica. Em que medida, então, as referências ao presente poderiam subsidiar o cumprimento dos objetivos nas seções dos livros aqui examinados?
As seções mais significativas para o nosso estudo são as “Atividades de final de capítulo”, que estão subdivididas em “Para sistematizar o estudo” e “Leitura e debate”. A primeira explora cinco habilidades: relacionar conteúdos, leitura e interpretação, contextualização, integrar diferentes disciplinas e ampliar o conhecimento. A segunda, como o próprio título anuncia, explora as habilidades de leitura e discussão. A maioria delas, evidentemente, não foi planejada para explorar a relação passado/presente, trabalho específico das subseções “Trabalhando o contexto” e uma das tarefas de “Leitura e debate”.
“Trabalhando o contexto” está presente em todos os títulos e exemplares analisados, mas não é seção fixa. Os enunciados também mantém a estrutura, mas nem todos promovem o relacionamento passado/presente, como nos exemplos que se seguem:
No século XIX, o socialismo resumia as esperanças das classes trabalhadoras de conquistar um mundo com menores desigualdades sociais. Ao longo do século XX, em várias regiões do mundo, os socialistas conquistaram o poder. Faça uma pesquisa para saber qual a situação do socialismo no mundo (FIGUEIRAS, 2003, p. 56. Grifos nossos).
Faça uma pesquisa sobre o papel da Igreja Católica no mundo ocidental atualmente. Destaque ações que podem ser consideradas positivas e aquelas que têm sido objeto de crítica (FIGUEIRAS, 2011, p. 133, v. 1).
Tibério e Caio Graco pereceram na luta pela reforma agrária. Explique por que, tanto na Roma antiga como nos nossos dias, no Brasil, a luta pela terra tem sido acompanhada de violência (FIGUEIRAS, 2010, p. 62).
No Egito antigo, o faraó concentrava todo o poder, comandando a religião, os exércitos, a economia etc. Em grande parte, esse poder estava fundamentado na crença de que ele era um deus. Escreva um texto comparando o poder do faraó no Egito Antigo e o poder dos governantes brasileiros nos dias de hoje (FIGUEIRAS, 2002, p. 23).
“Leitura e debate” é subseção fixa, também presente em todos os títulos, exemplares e volumes analisados. Acompanhemos os exemplos:
Apesar das leis de proteção às crianças existentes em nossos dias, ainda é possível encontrar casos de exploração do trabalho infantil. Com seus colegas de grupo, faça uma pesquisa para descobrir qual a situação do trabalho infantil atualmente no Brasil. Depois, escrevam um pequeno relatório sobre o assunto (FIGUEIRAS, 2010, P. 36).
Hoje, no Brasil, o poder é exercido por um presidente eleito pela população para governar por quatro anos. Compare o sistema defendido por Bossuet e o que vigora hoje no Brasil (FIGUEIRAS, 2002, p. 32).
Discuta com seus colegas e escreva um texto comentando a importância que têm para nossa vida as revoluções [de 1830 e 1848] e as ideias estudadas neste capítulo (FIGUEIRAS, 2003, p. 56).
A crença difundida pelos hebreus influenciou muitas sociedades. Identifique no texto alguns preceitos que fazem parte de nossa sociedade atual (FIGUEIRAS, 2011, p. 53, v. 1).
Se não identificássemos os exemplos – como pertencente a uma ou outra subseção – dificilmente poderíamos estabelecer diferenças. A “situação”, o “papel”, o modo, o “poder”, o “sistema”, a “importância”, a presença, etc. são termos comuns que identificam conhecimentos demandados aos alunos e indicam, apenas, que o presente, nesses casos, não é objeto de cognição. O “atualmente”, “nos nossos dias”, “nos dias de hoje”, “que vigora hoje”, “para a nossa vida”, “que fazem parte de nossa sociedade” são demarcadores temporais, certamente. Mas tal presente aparece como resultado de um longo processo, ou seja, a existência do presente justifica-se pela existência de vários passados. Essa função é melhor compreendida a partir dos resultados colhidos junto ao manual do professor.

O presente no manual do professor
O texto que apresenta a obra e fornece instruções de uso – o manual do professor – está encartado, apenas, nos títulos de 2002 e 2011. Marcos inicial e final, entretanto, fornecem ricas informações sobre mudanças e permanências no projeto pedagógico e historiográfico.
Aqui também o presente é referido com todo o seu campo semântico: “atualidade”, “realidade do aluno”, contemporâneo etc. Mas os sentidos e as funções concentram-se em dois polos, como indicam as citações seguintes:
A proposta que está orientando a reforma do ensino médio insiste na necessidade de se enfatizar a realidade do aluno. Espera-se, por exemplo, que o professor dê menos importância à memorização e que valorize o raciocínio e o espírito crítico. Em vez de apresentar um conhecimento pronto, como se fosse definitivo, o educador precisa estimular a capacidade do aluno de aprender, de descobrir e de resolver problemas, levando sempre em consideração o seu conhecimento prévio [...].
O professor deve reconhecer a importância da contextualização dos conteúdos vistos. Para nós, isso significa ensinar que a história está relacionada com o presente e com a vida do aluno. Em outras palavras, significa que o mundo contemporâneo pode ser interpretado a partir de uma perspectiva histórica (FIGUEIRAS, 2002, Manual do professor, p. 3).
Como podemos constatar, o primeiro sentido (expresso na primeira citação) é de caráter estritamente pedagógico e lembra (embora não explicite) as assertivas da aprendizagem cognitiva verbal significativa, desenvolvida nos Estados Unidos, inicialmente por David Ausubel. O segundo é de caráter estritamente historiográfico e lembra (embora também não explicite) a urgência, no ensino, do conceito de historicidade – caráter de ser histórico, inclusive a realidade vivenciada pelo aluno –, que pode afastar a ideia (nociva), sedimentada no senso comum do aluno, de que a ciência da história estuda o passado em si mesmo.
Trata-se de um casamento bastante conveniente entre teoria da aprendizagem e teoria da história, que legitima a obra perante as prescrições estatais para a educação. Do ponto de vista teórico, entretanto, o casamento apresenta fragilidades. Se entendermos “contextualizar” como fornecer referências em termos de sujeitos, ideias, espaço e tempo para que os alunos compreendam (para que lhe sejam significativos) os conhecimentos apresentados, podemos concluir que o presente está fora do livro didático, uma vez que é referido como “realidade do aluno” e, como tal, é extremamente subjetiva. As atividades citadas no tópico anterior alimentam a conclusão de que o livro didático apresenta-se como um estudo do passado para que o aluno conheça as causas da sua situação atual. A historicização experimentada refere-se ao presente do aluno e não a um presente resultante do trabalho do historiador.
No manual do professor produzido para a edição de 2011, o projeto pedagógico não é modificado e reforça a sua dependência em relação aos “eixos cognitivos definidos na matriz de Referência para o Enem 2009” (FIGUEIRAS, 2001, Manual do Professor, p. 4-5). Aqui, é ainda mais explícito e, consequentemente, segundo o raciocínio que estamos desenvolvendo, ainda mais contraditória a oferta de atividades e a abordagem do presente. Ele informa ser “recomendável que o professor, ao iniciar um novo assunto, comece sempre pelo presente e, a partir daí, faça uma ligação com o passado” (FIGUEIRAS, 2011, Manual do professor, p. 5). O que vemos no livro é o contrário. O presente do aluno é discutido em atividades ao final do capítulo, indicando, portanto, que mesmo em termos pedagógicos a relação é prejudicada, uma vez que o procedimento indicado fica na alçada do professor.

Conclusões
Percebemos, então, que a preocupação em incorporar ao livro didático a experiência do presente é apresentada em seus elementos pré-textuais. Ajudar o aluno a enfrentar o mundo globalizado, relacionar sua vida à história e formar para a cidadania são indícios desse esforço. O próprio sumário, ao colocar como último tópico de discussão o “Brasil de hoje” (2002) ou “Brasil: a construção do futuro” também exemplifica tal tentativa.
Apesar disso, no entanto, Divalte não utiliza a noção de história do presente. Trabalhando com a clássica divisão quadripartite da história, os acontecimentos/temas históricos compõem uma sequencia que parte da Pré-História ao contemporâneo. Mesmo que insinuado, uma diferença temporal em relação a esse último período da história não é discutido explicitamente. Tópicos como “Brasil de hoje” ou “Rumo ao terceiro milênio”, por exemplo, que incluem a experiência dos governos Sarney a Lula em todos os livros e edições, foram assim nomeados sem que uma justificativa para tal recorte e discussão conceitual tenha sido feita.
O que constatamos, portanto, é que as discussões da historiografia sobre o tempo presente, enquanto campo de investigação histórica, não aparecem no material analisado. Seja nos elementos pré-textuais, nos exercícios ou no manual do professor, o presente, lugar de onde se parte para a compreensão do passado e historicização da realidade do aluno, e que vem atender a uma exigência historiográfica e pedagógica, é o que prevalece. Abordar o passado a partir do presente, no entanto, não significa a realização de uma história do presente. Tal prática, que não apresenta definições, funções, ou balizas cronológicas justificadas conceitualmente, está muito mais próxima da historiografia aditiva referida por Koselleck, (do hábito de registrar os acontecimentos contemporâneos ao historiador) em voga há, pelo menos quatrocentos anos, ainda que a construção dos livros analisados não mais ocorra dentro da compreensão do tempo como fenômeno estático e de uma história como mestra da vida.
Posse de Dilma Rousseff como presidente da República: fim do presente da história do Brasil.

Para citar este texto:
SEMEÃO, Jane, FREITAS, Itamar. Tempo presente e historiografia didática: possibilidades de pesquisa com livros de história destinados ao ensino médio (2002/2012). SEMINÁRIO VISÕES DO MUNDO CONTEMPORÂNEO: “AS ESTAÇÕES DA HISTÓRIA – DO INVERNO RUSSO À PRIMAVERA ÁRABE”, 2. São Cristóvão. Anais... São Cristóvão: Grupo de Estudos do Tempo Presente/Universidade Federal de Sergipe, 2012. 1 CD-ROM. Disponível em: < http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/06/tempo-presente-e-livro-didatico.html>.

Fonte das imagens:
Posse de Fernando Collor de Melo. Disponível em: <www.saraiva13.blogspot.com.br>. Capturado em 9 jun. 2012.
Fernando Collor de Melo. Disponível em: <www.hevertonazevedo.blogspot.com.br>. Capturado em 9 jun. 2012.
Itamar Franco. Disponível em: <www.flavioluizsartori.blogspot.com.br>. Capturado em 9 jun. 2012.
Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: <www.maureliomello.blogspot.com.br>. Capturado em 9 jun. 2012.
Posse de Dilma Rousseff. Disponível em: <www.cacoalnews.com.br>. Capturado em 9 jun. 2012.

Referências
ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida. Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza Editorial, 2004.
BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença na história. In: AMADO, Janaina; CHAUVEAU, Agnés; TÉTART, Philippe. Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. In: Cultura Vozes. Petrópolis: Editora Vozes, v.94, n0 3, 2000, pp.111-124. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/517.pdf>. Acesso em: 21/07/2008.
FREITAS, Itamar. O saber em fatias: o livro didático em seções e as seções em livros didáticos de História (1900/2010). Notas para orientação. Nossa Senhora do Socorro, 5 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/12/o-saber-em-fatias-o-livro-didatico-em.html>. Capturado em 17 mai. 2012.
FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002.
______. História: série novo ensino médio. 2ed. São Paulo: Ática, 2003.
______. História: série novo ensino médio. 3ed. São Paulo: Ática, 2010.
______. História em foco. São Paulo: Ática, 2011 (2 v.).
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Contraponto, 2006.


[1] Por esse caminho, por exemplo, história do tempo presente não trataria do “imediato”, que deve ficar a cargo dos jornalistas, já que ao articular o tempo curto ao tempo longo essa operação historiográfica situa-se na duração - fugindo, dessa forma, do efêmero, do contingente.
[2] Infelizmente, a comparação do História em foco não pode ser feita, dado que somente examinamos uma edição, que é estruturalmente diferente da História: série novo ensino médio.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Política pública para o livro didático no Brasil

Goiânia-GO. Locus da pesquisa sobre o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio - PNLEM.
Em Política do livro didático para o ensino médio: fundamentos e práticas, Fernando de Garcez de Melo, orientado por Maria Abádia da Silva (UnB), avalia o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio a partir da experiência local, ou seja, da escolha, distribuição e uso dos livros de História nas escolas de Goiânia, entre 2007 e 2011. No entanto, como vício ou virtude – proveniente, talvez, do quadro teórico adotado (Gramsci, Thompson, Coutinho, entre outros) –, ele ensaia uma história das políticas públicas brasileiras que têm o livro didático como foco, entre 1938 e 1994.
Por que vício? Porque não era necessário voltar à década de 1930 do século passado para avaliar uma política (ou um programa?) inaugurada na primeira década do século XXI. O início da história depende da pergunta central e esta me pareceu muito clara: “Como a política do livro didático possibilitou o acesso ao conhecimento escolar de história para os estudantes do ensino médio público diurno no município de Goiânia, de 2007 a 2011” (Melo, 2012, p. 3). A volta ao período Vargas – ou ao tempo do estado interventor, supostamente pioneiro na criação de políticas para o livro didático – talvez se justifique pela necessidade de demonstrar o papel das estruturas, daí o privilégio do exame num tempo conjuntural. Como desdobramento desta justificativa, o presente não seria bastante significativo como história (?).
Fernando Garcez de Melo
No entanto, o recuo no tempo aparece também como uma virtude. Isso porque, há mais de uma década, os pesquisadores que se debruçam sobre os livros didáticos de história ensaiam uma história do PNLD, não se distanciando, geralmente, das afirmações fornecidas nos sites do Ministério da Educação – MEC e do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação – FNDE.
Assim, orientado pelos conceitos de Estado, sociedade política, sociedade civil, regulação e contradição, Fernando Garcez de Melo afirma que a instituição da Comissão nacional do Livro Didático – CNLD (1938) foi “a primeira preocupação oficial com o livro didático no Brasil” (Melo, 2012, p. 15). A iniciativa de avaliar, certificar e disciplinar, enfim, de regular a circulação de livros didáticos no Brasil justificou-se a partir do interesse de disseminar da “ideologia dominante” (Melo, 2012, p. 17), mas enfrentou problemas na sua efetivação, dada a “imensa burocracia e a incapacidade de executar e materializar a política do livro didático” (Melo, 2012, p. 18). Tais regras foram modificadas com a emergência da ditadura militar de 1964, que manteve a tendência centralizadora, difusora de ideologia, embora sob a ótica do tríptico tecnicista originário dos Estados Unidos: racionalidade, eficiência e produtividade.
Com o fim da ditadura militar, as políticas públicas educacionais são elaboradas no solo social do conflito entre dois “projetos de reestruturação do poder e de representação de interesses”: o liberal-corporativo (neoliberalismo) e o da democracia de massas. (Cf. Melo, 2012, p. 40). Sob a predominante visão neoliberal, o Estado brasileiro efetiva a regulação da educação pública em três dimensões (mediante seus respectivos instrumentos): 1. regulação transnacional – conferência de Jomtiem (Para lembrar ao leitor, é aquele evento do qual saiu o relatório Delors que disseminou as competências básicas da educação escolar no globo: saber, fazer, conviver e ser); 2. regulação nacional – Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB e Programa Nacional do Livro Didático - PNLD; e 3. regulação local – estratégias de sobrevivência dos profissionais docentes (apropriação das normas nacionais) diante das estratégias de regulação nacional.
Mais recente Guia do Livro didático
para o ensino médio.
Para o autor, portanto, o PNLD e, obviamente, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio – PNLEM são iniciativas de regulação neoliberal. O primeiro é reformulado em 1995, desencadeando a criação de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), instâncias de avaliação do livro didático (FAE), divulgação dos resultados da avaliação (Guias do PNLD) e incentivo às empresas editoras. O segundo, o PNLEM, é instituído por obra do poder executivo em 2003 e (dadas as exigências dos organismos internacionais e o pauperismo da população brasileira) “atende a uma dupla função: propiciar o acesso ao livro e livro didático e incentivar a cadeia produtiva do setor empresarial de livro” (Melo, 2012, p. 68).
Os resultados relacionados diretamente à questão central são apresentados nos capítulos III e IV da dissertação, que trata da percepção dos alunos e dos professores sobre o programa, do detalhamento das diferentes formas de regulação, do conflito entre as prescrições do Estado e as ações dos professores. Fernando afirma que a implantação do Programa atende aos interesses da indústria editorial e é também fruto das demandas dos professores e alunos a respeito do livro didático de história.
A efetivação da política, entretanto, não se faz sem percalços. Professores, por exemplo, reclamam da ausência das obras no ato da escolha, do escasso tempo destinado pelo MEC para a seleção, do dispositivo da lista fechada (títulos restritos aos apresentados no Catálogo do PNLD), do não atendimento das suas opções de título, e da ausência da história local nas obras que chegam até a escola.
Ainda assim, alunos e professores (não obstante as mais variadas formas de uso desse artefato) convergem na opinião de que a política do livro didático favorece o acesso ao conhecimento e representa a conquista de um direito. Partindo do depoimento de 11 docentes e 146 alunos, Fernando também reconhece que o PNLD para o ensino médio é um instrumento de regulação do Estado. Entretanto, tal regulação se manifesta, no caso de Goiânia, como “microrregulação e autorregulação ético-política”. Em outras palavras, professores criam e ajustam os livros “conforme as características, em especial, didáticas dos estudantes, incluindo as temáticas regionais” (Melo, 2012, p. 142).
Por este resumo, não é difícil reconhecer o valor do texto de Fernando. Ele fornece uma narrativa clara sobre a história das políticas com foco no livro didático, orienta-se por um quadro teórico, sustenta seus argumentos com fontes autorizadas, e, por fim, avalia o mais robusto programa educacional desenvolvido pelo MEC e, talvez, o maior, em termos de livro didático, em vigor no mundo.
Aspecto do prédio principal da Faculdade de Educação da UnB
Voos largos, entretanto, significam maiores possibilidades de equívocos. Para o regozijo do autor, boa parte deles reside nas teses da bibliografia referenciada e estão localizados na primeira parte, ou seja, nos capítulos I e II, que narram a experiência do estado brasileiro com as políticas para o livro didático.
Facilmente reparáveis, os excessos referem-se, principalmente, às generalizações pouco refletidas a respeito do papel centralizador e autoritário do governo Vargas, por exemplo, do caráter pioneiro da Comissão Nacional do Livro Didático em termos de políticas oficiais para o livro didático no Brasil, do rótulo de “liberal-escolanovista” para os PCN de História, o denuncismo “ingênuo” sobre interesses e práticas estatais para a difusão de determinada ideologia, e a condenação dos termos "racionalidade", "eficiência" e "produtividade" como inerentes à uma suposta teoria educacional de corte "tecnicista".
Os senões, corrigidos nos próximos 30 dias (quando a dissertação será disponibilizada em definitivo ao público), não maculam as suas virtudes. O trabalho apresenta coerência entre enunciado da questão, objetivos e o seu autor demonstra compreender bastante o “objeto realidade”, atributo raro em profissionais que não estão na “linha de frente” das políticas públicas. Bons exemplos dessa compreensão são o reconhecimento da impossibilidade de o livro didático responder a todas as demandas legais e pedagógicas, seja do Estado, seja de professores e alunos e, principalmente, a conclusão ponderada e politicamente madura sobre relação sociedade política/sociedade civil, não recaindo no ceticismo imobilista, que é fatal para quem estuda e atua em políticas públicas educacionais.
A dissertação de Fernando de Melo, por fim, ainda que de forma indireta (não era a sua intenção), propicia aos estudiosos um bom exemplo de como a objetividade das verdades nas ciências humanas são produzidas a partir da intersubjetividade resultante do cruzamento de vários trabalhos produzidos sob regras do ambiente acadêmico. Quem se der ao trabalho de examinar outros textos sobre apropriação dos livros didáticos de história em estados como o Ceará e Minas Gerais poderá surpreender-se com a semelhança nos resultados, apesar de as pesquisas realizadas fora de Goiás/Brasília estarem orientadas por autores bem distantes de Gramsci, a exemplo de Michel de Certeau e Roger Chartier.
Célio da Cunha (examinador), Fernando Garcez de Melo,  Maria Abádia da Silva (orientadora) e Itamar Freitas (examinador).
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, 24 abr. 2012.

Para entrar em contato com o autor
Fernando Garcez de Melo <garcezgyn@hotmail.com>.
Conheça outra publicação de Fernando Garcez de Melo sobre livros didáticos

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Política pública para o livro didático de história no Brasil (1938/2011). Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/04/politica-publica-para-o-livro-didatico.html>.

Fontes das imagens
Goiânia. Disponível em: <www.brasil.com.br>. Capturado em: 25 abr 2012.
Guia do livro didático do ensino médio - história. Disponível em: <www.fnde.gov.br>. Capturado em: 25 abr. 2012.
Fernando Garcez de Melo. Foto de Rodrigo Garcez. Aparecida de Goiânia-GO, abr. 2012.
Célio da Cunha, Fernando Melo, Maria Abádia da Silva e Itamar Freitas. Foto de Rodrigo Garcez. Brasília, Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. 25, abr. 2012.

Outras postagens sobre esse tema
A ação do PNLD em Sergipe e a escolha do livro didático de história (2005/2007). Disponível em: < http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/12/acao-do-pnld-em-sergipe-e-escolha-do.html>.
Currículos e programas de outros tempos: a experiência dos estudos médios no Brasil (1820/2004). Disponível em: < http://itamarfo.blogspot.com.br/2010/10/curriculos-e-programas-de-outros-tempos.html>.

Referências
MELO, Fernando Garcez de. Política do livro didático para o ensino médio: fundamentos e práticas. Brasília, 2012, 158 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília.

domingo, 8 de abril de 2012

Indígenas nos livros didáticos de história do Brasil

A primeira missa no Brasil. Victor Meirelles (1860).
Como os indígenas vêm sendo representados nos livros didáticos de história para a escolarização básica? A pertinência da pergunta se assenta no fato de o livro didático ser um importante instrumento de construção de identidades (de elaboração de “si” e do “outro”). Vem daí o primeiro interesse de Kleber Rodrigues que defendeu dissertação de mestrado há uma semana pelo Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
Já tive oportunidade de afirmar que a pesquisa acadêmica, nos últimos 20 anos (Freitas, 2010, p. 202), tenta responder à questão investigando o espaço ocupado pela experiência indígena nos livros didáticos (número de páginas, capítulos, imagens, nomes próprios), os tempos e eventos aos quais a sua atuação está relacionada (pré-história, colônia, tempo presente etc.), a incorporação dos avanços da pesquisa de ponta nas áreas da história, antropologia, arqueologia e linguística, e a incorporação da legislação protetora dos direitos das sociedades indígenas. Em outras palavras, os pesquisadores têm examinado o lugar da experiência indígena em termos de tempo, espaço físico, correção acadêmica e correção jurídica na exposição de informações.
Os resultados têm se afastado um pouco do denuncismo e da vitimização, características dos trabalhos das décadas de 70 e 80 do século passado, problematizando os indícios sobre a experiência indígena a partir de novas bases conceituais. Esse foi o caminho trilhado por Rodrigues. Ele buscou as representações a partir do exame simultâneo de textos verbais e textos iconográficos. Seu trabalho explora as mudanças e/ou permanências nas representações, observando as apropriações que os autores/editores de livros didáticos produzidos entre 1920 e 2010 fizeram do conhecimento veiculado pelas grandes sínteses históricas. Da mesma forma, examinou os usos das imagens (de uma mesma imagem) ao longo de quase um século.
Para Rodrigues, enfim, as representações sobre indígenas nos livros didáticos de história empregam a literatura historiográfica de síntese em ritmos e intensidades diferenciados. No período 1920/1960, imagens e textos representam povos indígenas como “atrasados, em baixo estágio civilizatório e fadados ao desaparecimento”. As teses dominantes são extraídas de Varnhagem. É o tempo de apelo à unidade das raças formadoras do Brasil e de forte caracterização dos indígenas como essencialmente belicosos e antropófagos.
Batalha de Guararapes. Victor Meirelles (1879).
Entre 1970 e 1990, os indígenas são representados como vítimas em meio às relações entretidas com colonos, jesuítas e bandeirantes. Vigoram as teses de Francisco Varnhagem e Caio Prado Júnior. Por fim, a partir da década de 2000, são frequentes as representações dos indígenas como detentores de interesses legítimos, diversificados em sua composição étnica, e em progressiva expansão demográfica. As teses de Florestan Fernandes, acerca da religiosidade, antropofagia e da guerra dominam os livros didáticos de história dessa época.
Sobre os usos das imagens, Kleber Rodrigues conclui que há crescente interesse didático na iconografia mais frequente nos livros (a de Victor Meireles). As telas “A primeira missa no Brasil” e “Batalha de Guararapes” passam de ilustração descontextualizada à fonte sobre a cena retratada, época e interesses envolvidos na produção da obra de arte. Além disso, o sentido sugerido para a leitura dos alunos e as teses empregadas na fundamentação dessas leituras são bastante diferentes, demonstrando que “a antiga sentença de Ferdnand Seausure (sd.) sobre a arbitrariedade de signos pode ser também comprovada no exame das representações indígenas no livro didático de História” (Rodrigues, 2012, p. 112).
O trabalho foi examinado pelas professoras Regina Célia (UFPB) e Josefa Eliana (UFS) que destacaram a relevância da pesquisa para o enriquecimento das práticas escolares disseminadas pelo ensino de história, como também pela contribuição que fornece à literatura sobre a veiculação da temática nesse momento de implantação da lei 11.645/2008.
As professoras também apontaram deficiências, a exemplo da reduzida generosidade do autor com os possíveis leitores, uma vez que o trabalho não faz referência direta a alguns clássicos que tratam da temática, nem historia a construção do objeto. Mais importante, ainda, o trabalho insere obra de um especialista quando o objetivo era empregar a historiografia de síntese como indicador da pesquisa erudita. Também não detalha os critérios de seleção das fontes (títulos e quantidades), e pouco informa sobre os testemunhos empregados no relato sobre a construção das pinturas de Victor Meireles.
Kleber Rodrigues justificou as omissões e comprometeu-se em corrigir os equívocos em 90 dias, que é o prazo regimental estabelecido pelo NPGED. No entanto, suas principais conclusões já podem ser consideradas um avanço na compreensão das representações da experiência indígena no livro didático de história ao longo do século XX. Em primeiro lugar, a historiografia de síntese produzida por historiadores-cânones fundamenta os livros didáticos e é incorporada em intensidades e ritmos diferenciados (algo óbvio, mas que carece de repercussão).  Em segundo lugar, não é o emprego de determinada imagem que caracteriza o livro como conservador e sim o emprego que os autores fazem dela.
O trabalho de Kleber Rodrigues só será disponibilizado em junho próximo. Mas podemos conferir um pouco das ideias aprovadas pela banca agora mesmo, através do vídeo abaixo.






Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Representações de indígenas nos livros didáticos de história. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/04/representacoes-sobre-indigenas-nos.html>.

Fonte das imagens
Victor Meirelles. “A primeira missa no Brasil”, 1860, óleo sobre tela, 268,0 x 356,0 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Victor Meirelles. “Batalha dos Guararapes”, 1879, óleo sobre tela, 494,5 x 923 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Outras postagens sobre esse tema
FREITAS, Itamar. Experiência indígena e ensino de História nos currículos pós-primários brasileiros (1841/2006)Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2010/11/experiencia-indigena-e-ensino-de.html>.
FREITAS, Itamar. Protagonismo indígena. Disponível em: < http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2010/11/protagonismo-indigena.html>.

Referências
RODRIGUES, Kleber. Representações sobre indígenas em textos escritos e imagéticos de livros didáticos de história do Brasil, publicados entre 1920 e 2010. São Cristóvão, 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe.
FREITAS, Itamar. Temáticas indígenas nos livros didáticos de história regional. In: História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático em questão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 194-238.