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domingo, 21 de março de 2004

A civilização de Thétis Nunes

Escrevi na edição de 04/01/2004 que as iniciativas, de certo modo didáticas, em termos de história universal dos professores Justiniano de Melo e Silva, Alfredo Cabral e Maria Thétis Nunes mereciam atenção, sobretudo, por se postarem na contra-mão do discurso provincianizador em voga nas historiografias sergipana e nacional. Raros foram os escritos de historiadores locais que se aventuraram a interpretar a experiência de povos não brasileiros.
Como Alfredo Cabral, Thétis Nunes também experimentou a proeza. A exemplo de 1910, a iniciativa de historiar outras partes do mundo esteve relacionada à emergência de um concurso para a cadeira de História no Atheneu, concurso revelador da disputa entre grupos político-partidários e da busca por capital cultural  social. (Cf. Nascimento, 2003).
Mas, o que me interessa no momento é a tese apresentada à Congregação do Atheneu (2 ed. Aracaju: J. Andrade, 2002), trabalho que, segundo Norberto de Oliveira (1997, p. 37) – desculpando-se, talvez, pelas limitações de Thétis –, “não traduz as características essenciais da historiadora que viria a ser pós-ISEB.” Vejamos, então, algumas das “características essenciais” da jovem Thétis e o tipo de trabalho abonado com nota nove pela banca do Atheneu, em 1945.
A pergunta principal da tese é: qual a “influência” da “civilização árabe” na “civilização ocidental”? A resposta está distribuída pelos capítulos 3, 4, 5 e 6: a civilização árabe não só foi o elo entre o mundo antigo (passado conhecido) e a Idade Moderna (futuro), como propiciou a retomada, após as “invasões dos bárbaros”, do curso progressivo da civilização ocidental.
Esse papel mediador e também precursor pode ser observado nas “sobrevivências” de elementos da literatura, música, arquitetura, pintura, escultura, mobiliária e cerâmica; da filosofia, das ciências – matemáticas, física, química, botânica, agronomia, astronomia, farmacologia e medicina – e das universidades árabes na civilização européia.
Não se espantem com o ensaio antropológico (folclórico) em escala ampliada. As demais informações sobre os árabes já seriam de domínio público – leitor de história universal. Nos livros da época, os árabes eram um povo liderado e unificado pela obra religiosa de Mohamed (571/632). E o maior triunfo deste povo – motivo para a sua inserção nos compêndios – foi “evoluir”, rapidamente, de um grupo disperso de tribos da Arábia aos senhores mais poderosos do medievo, após terem conquistado a Síria (638), Pérsia (652), África (711) e Espanha (122).
O substrato interpretativo do trabalho, colhido na sociologia e na “moderna antropologia” – as leis sócio-históricas, a causalidade do meio, raça, estágio tecnológico, circunstâncias políticas e atributos culturais – conforma os dois capítulos iniciais. São eles que auxiliam ao leitor de hoje – assim como à banca examinadora à época – a não considerar a tese um inventário de sobrevivências culturais.
Por outro lado, são esses mesmos capítulos que revelam as dubiedades e imprecisões da jovem Thétis. A tentativa de equilibrar o valor dos grandes homens e o papel do conjunto formado pelo meio físico e as circunstâncias é um exemplo – liberdade ou necessidade? A candidata bem que se esforçou para descrever as condições que possibilitaram a ascensão dos árabes. Mas, no frigir dos ovos, foi Mohamed quem “ergueu o edifício de proporções colossais.” (Cf. p. 19).
Outro exemplo está na filosofia professada. Ela crê num contínuo e necessário aperfeiçoamento da humanidade, e não pediu arrimo a Werneck Sodré para afirmar que “todo grupo social tem que passar pelas mesmas etapas econômicas e sociais para alcançar a plenitude de uma manifestação cultural determinada.” (p. 17). Mas, ao mesmo tempo, não consegue desvencilhar-se da sedutora idéia dos ciclos vitais das civilizações: nascimento, apogeu e decadência.
Thétis também titubeia no uso do termo civilização. Lá está o sentido de conjunto de traços definidores de um povo -  civilização árabe, romana, latina etc., dando ao texto um tom relativista. Mas, a idéia de humanidade – o coletivo dos homens – e de estágio máximo de aperfeiçoamento atingido por “impulsos” e “graus” também estão presentes. Este último significado anuncia o padrão a ser considerado: a civilização ocidental moderna – presença de Estado, economia aberta, mobilidade social, alto desenvolvimento das letras ciências e artes. Thétis estava com os pés fincados no universalismo ilustrado do século XVIII.
Aqui, não vem ao caso atribuir tais indecisões a sua juventude intelectual, à ausência de interlocutores ou à pressa em concluir a tese. Não vale rotulá-la de colonizada ou imperialista. Pode-se, por hora, dizer que, em termos de história da civilização, Thétis estava menos próxima do viés de Manoel Bonfim – a história geral como uma equivocada “afirmação” e “consagração” dos povos ingleses e, sobretudo, franceses – e mais para a corrente majoritária de João Ribeiro – a civilização européia como “um caudal” de contribuições para a perfeição humana.
Pode-se também conjeturar que A Civilização árabe: sua influência na civilização ocidental constitua-se um típico caso de tese-compêndio, produto elaborado de maneira semelhante aos livros didáticos de história universal, até o início dos anos 1940. Mas, para testar a hipótese será preciso examinar o texto do concorrente de Thétis, o professor Manuel Ribeiro – que também foi avaliado com nota nove – e dos demais professores de história que lhes seguiram no Atheneu Sergipense.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A civilização de Thetis Nunes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 mar. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 1 de fevereiro de 2004

A "guerra" das propedêuticas e o "terremoto" de Lisboa

Maria Thetis Nunes (1923/2009)
Há trinta anos, a Gazeta de Sergipe e o Jornal da Cidade foram palco de um debate entre os professores Maria Thétis Nunes e Acrísio Torres de Araújo. O motivo da disputa? A forma e o conteúdo da escrita da história de Sergipe, certamente!
Tudo começou em 1966, quando o cearense Acrísio Torres de Araújo resolveu quebrar o nosso jejum de livros didáticos, escrevendo uma História de Sergipe para “a mocidade”. Havia cinqüenta anos que não se publicava livro do gênero, desde que Elias Montalvão distribuíra o Meu Sergipe, destinado aos alunos do ensino primário. Lançada a obra, reservadamente, Thétis apontou as imperfeições ao autor, que prometeu corrigi-las numa próxima edição. (Cf. Nunes, GS, 18/05/1973).
Em 1973, Acrísio torna público o seu Sergipe e o Brasil, oferecido aos alunos da 4ª série primária. “Esportiva e educadamente”, Thétis Nunes aponta as fragilidades do novo trabalho: oscilações no estilo (simples/empolado), erro de datação, de titulação, e o estabelecimento de um fato sem a devida base documental – o autor teria registrado que “na passagem de Cabral pelo Brasil, o almirante avistou terras do litoral sergipano”. (Cf. Nunes, GS, 18/05/1973).
Dias depois, a Gazeta de Sergipe e o Jornal da Cidade divulgaram a resposta de Acrísio: “é preciso ter lido com muita má fé ou não ter lido” para denunciar imperfeições estilísticas; é preciso não comparar para ver que a qualidade do livro melhorou bastante entre as edições de 1966 e de 1973. E, mais: a professora Thétis estranhou a afirmação de que Cabral avistou terras de Sergipe. Ora, completa Acrísio, citando H. S. Commager: é bom saber que “história não é só documentação”, é também imaginação. (Cf. Araújo, GS, 22/051973; JC, 22/05/1973).
Em 48 horas, Thétis Nunes volta à cena: “o professor Acrísio respondeu com ironias e sofismas que serviram apenas para evidenciar os erros apontados no [seu] livro”. O que mais alarmou a professora foi a ‘ingênua’ concepção que ele tinha da história: “não é só documentário é também imaginação.” Com essa “romântica concepção [Acrísio Torres] entra em choque com a orientação que o Departamento de história da UFS vem dando aos seus alunos”. Thétis refere-se a um texto de Henri Irinée Marrou, que afirmara há poucos anos: “diferentemente do romancista, o historiador não inventa os fatos mas quer reconstruí-los tais como realmente se passaram. Como materiais, dispõe dos documentos em que algo do passado permanece acessível no seio do presente”. (Cf. Nunes, GS, 24/05/1973).
É possível que motivações várias tenham irrigado essa disputa. Mas, interessa registrar, nesse momento, que o debate sobre a forma e o conteúdo da história de Sergipe também  punha em confronto duas jovens propedêuticas universitárias no Brasil: a introdução à história de Commager e a introdução à história de Marrou. A primeira, chamada em socorro por Acrísio Torres, havia sido traduzida do inglês em 1966. A segunda, francesa, publicada em 1969 e traduzida pelo professor Silvério Fontes, fora, provavelmente, sintetizada do livro Sobre o conhecimento histórico, lançado em 1954.
Ambos os autores foram utilizados tangencialmente, cuidadosamente recortados como munição. Na verdade, nenhum dos dois epistemólogos – nem Commager, nem Marrou – quis dizer apenas aquilo que foi citado na disputa. Marrou não acreditava que a existência de “documentos” fosse condição suficiente para o trabalho do historiador e nem atrelava a idéia de documento ao suporte papel. Ele exigia também a “simpatia” agostiniana do historiador pelo seu objeto. Tanto assim que gastou muita tinta para criticar os conhecidos divulgadores da frase “pas de document, pas de histoire”, C. Langlois e C. Seignobos. Estes, por sua vez, produziram uma definição de “documento” muito mais ampla que a idéia de manuscrito em celulose.
Da mesma forma, o norte-americano Hernry Steel Commager não deu a ênfase sugerida por Acrísio ao atributo da imaginação. É mais preciso dizer que a imaginação tinha um grande peso, junto ao bom senso, integridade e a diligência do profissional de história. Mas, a função da mesma era a de auxiliar  na recriação do passado. Era “um Dom” do historiador, que permitiria fazer “o sangue ferver nas veias dos seus leitores, ou as idéias nas suas cabeças”. (Commager, 1966, p. 58). Na verdade, comparando as duas propedêuticas, é bem capaz de concluirmos que os dois estrangeiros estavam falando a mesma língua.
Bem, mas como terminou essa história? Thétis Nunes disparou a pesquisar sobre a experiência local com uma intensidade não vista no período anterior a esse episódio. Nunca fez um livro didático, como o seu desafiante. Mas, ocupou-se da tarefa de historiar os cinco séculos do passado sergipano, freqüentando arquivos em Portugal, na Bahia e no Rio de Janeiro. Acrísio Torres tornou-se professor da Universidade de Brasília. Nunca fez um livro de síntese baseado no tipo de pesquisa requerido por Thétis Nunes. Mas, disparou a produzir monografias sobre a província, tratando da literatura, história, imprensa sergipana, entre outros temas.
Quanto ao debate de 1973, ficou como um precioso registro das leituras propedêuticas do ofício do historiador universitário, além das outras motivações que ainda estão sendo investigadas. Porém, é bem possível que essa discussão tenha representado um verdadeiro “terremoto de Lisboa” na vida de quem é considerada “a mulher do século XX” em Sergipe. Dizendo de outro modo, não é improvável que a disputa tenha estimulado a professora Thétis a ocupar a maior parte dos seus últimos trinta anos na pesquisa básica sobre a história de Sergipe. Se a assertiva for veraz, nossos agradecimentos a essa oportuna armadilha proporcionada pelo senhor acaso. (Cf. Araújo, 27/05/1973).

Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A “guerra”das propedêuticas e o “terremoto de Lisboa”. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 01 fev. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.


Fonte da imagen:
Maria Thetis Nunes - www.jornaldacidade.net

domingo, 28 de dezembro de 2003

A História da Educação faz vinte anos

No ano de 2004 o livro História da educação em Sergipe, de Maria Thetis Nunes, estará completando vinte anos de lançado. Coincidentemente, o Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe prestará homenagens a autora, promovendo três dias de debates sobre toda a sua obra, na segunda quinzena de janeiro.
Primeira e única síntese no gênero, o livro aniversariante vem ganhando cada vez mais leitores, sobretudo por conta do crescimento da pesquisa sobre história da educação em Sergipe. Mas, mas tenho observado que os primeiros contatos dos noviços com a referida obra, costumam gerar declarações desse tipo: “o que eu vou dizer sobre educação em Sergipe, essa mulher já disse tudo! Outra atitude clássica é o comentário depreciativo: “não há muito para salvar no livro; é um marxismo feito a machado; uma narrativa positivista, centrada nos fatos políticos e econômicos, nas realizações de cada governante!.”
Incomodam-me essas atitudes extremadas. Como antídoto, tenho proposto que a História da educação em Sergipe seja lida como produto de uma geração específica, que elaborou uma visão particular sobre o passado sergipano (Cf. Reis, 1999). Isso nos obriga a conhecer algumas idéias-chave do texto.  A primeira delas é a sua teoria da história. Para Thetis, há uma estrutura social (política e cultura) que está ligada e condicionada a uma estrutura econômica predominante do lugar. Depois, vem o sentido da experiência sergipana.  Vivemos para quê? O que orienta a experiência do passado sergipano? A nossa vida está “correlacionada” e “associada” à vida brasileira. O que “lá acontecia, fatalmente seria repetido por aqui”. A terceira idéia-chave é a educação – “fato social” “ligado” e “condicionado” à estrutura econômica de determinado povo, província ou nação. Assim, a educação em Sergipe é vista como um fato duplamente transplantado: da Europa e dos Estados Unidos para o Brasil e do Brasil para Sergipe. Alienada e fracassada, a educação será historiada como sucessivos fracassos das reformas “inspiradas em concepções dissociadas da nossa realidade.” (Nunes, 1984, p. 14).
Como e por que chegou a tais resultados? Ora, a escrita da história é produto da articulação original de presente, passado e futuro a comando do historiador em uma realidade específica (Reis, 1999). E o “específico” de Thétis, caso quisesse estabelecer-se no debate científico, seria fazer uso de um ou de vários explicadores dispostos na segunda metade do século passado, como Nelson Werneck Sodré, C. Prado Júnior F. Fernandes e F. Henrique Cardoso, que ansiavam ainda pela revolução, Não é por acaso que os raríssimos pontos positivos anunciados no livro tenham sido a criação de escolas noturnas e a abertura de cursos técnico-profissionais para a classe trabalhadora.
Mas, ler compreensivamente a História da educação não significa apenas restituir a escrita às suas circunstâncias e ao seu lugar de produção. É importante retomar os pontos de vista expressos e apontar equívocos, ambigüidades e dúvidas que, nessa obra, não podem necessariamente ser atribuídos ao “horizonte de espera” da historiadora.
É preciso dizer que a “educação” tipificada como um “fato social” não clarifica o objeto. Em que consistiria esse fato social, no processo de transmissão da cultura? No resultado desse processo? Nas instituições que encarnam a transmissão da cultura? É preciso questionar também a sustentabilidade da categoria trabalho como princípio educativo no quadro dos nossos dias. Será que a história de uma classe operária sustenta-se como valor explicativo para o presente? É preciso rever a determinação do fato “nacional” sobre a experiência local. Claro que Sergipe é e está no Brasil. O problema é saber o que é o Brasil nos três séculos atravessados pela obra. Seria o Rio de Janeiro, Minas Gerais ou a Bahia? Se o Brasil fosse a corte, como explicar que o surto reformador da escola republicana local tenha partido de São Paulo? Como explicar a atuação de sergipanos que “anteciparam” a experiência nacional, como Tobias Barreto, Martinho Garcez e Felisbelo Freire – antecipações anunciadas pela própria obra?
Esses comentários servem apenas para pontuar as posições de diferentes gerações de pesquisadores em história da educação, campo sobre o qual Maria Thétis Nunes muito fez para delimitar um território. E se alguma dúvida há na indicação da leitura do livro que completará vinte anos, espero que os motivos seguintes ajudem a dissipá-la.
Por que ler a História da educação de Thétis, afinal? Por conta do registro de fontes é uma resposta. Há matéria de história da educação sobre o século XIX, por exemplo, que só pode ser acessada agora por meio desse livro. Mas, deve-se ler Thetis também por conta do modelo explicativo apresentado. É verdade que os noviços adoram temas virgens, onde podem exercitar interpretações mirabolantes e originais. Mas, o experiente pesquisador sergipano lastima e muito não ter uma Thétis – marxista, pseudo-marxista, positivista, etc. – em matéria de história da arte, dos costumes da economia etc., mesmo que seja para retomá-la, como faço nesse instante.
Enfim, deve-se ler Thetis por conta do seu exercício de síntese. Por mais abrangente, arbitrária, lacunar e provisória que tenha sido a sua iniciativa – como o são todas as sínteses – é apenas por seus olhos e sua pena que podemos visualizar uns 300 anos de política educacional, de organização escolar, da experiência de trabalhadores e clientes da instrução, e de práticas de ensino em Sergipe. Antes de Thétis – excetuando-se o trabalho de Calazans – havia apenas 300 mapas estatísticos, 300 laudas de correspondência oficial, 300 artigos legislativos sobre educação, 300 nomes de professores primários, 300 folhas de relatórios de presidentes de província..., 300..., 300... etc.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A História da Educação faz vinte anos. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 28 dez. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.