sábado, 1 de abril de 1995

Artista da terra, que bicho é esse?

Artista da terra. Bomfim, 1995.
Estava exercitando o meu futuro ofício, o de historiador, pretendendo escrever sobre as mazelas da minha última profissão, a de músico. Como me ensinam os mestres de agora – se você logo define os conceitos com os quais trabalha, já tem meio caminho andado na pesquisa –, procurei desatar os primeiros nós no início da escrita.
O problema começou quando resolvi incluir a mim e aos congêneres no rol dos “artistas da terra” e percebi as dificuldades dessa conceituação. É uma trupe indefinida quanto aos membros, por isso o conceito teria que ser tão abrangente a ponto de incluir entalhadores e licoristas e, ao mesmo tempo, restrito, denominando apenas alguns cantores que conseguiram heroicamente, registrar o seu trabalho em disco.
E agora, como utilizar “artista da terra”, um conceito tão plural quanto os de vida e cultura? Fiz uma rápida reflexão e concluí de forma “genial”: se artista da terra são todos, artista da terra não é ninguém! De repente, descobri que não tinha mais trupe. Procurei nos dicionários e, na ausência de definições seguras, resolvi perguntar às pessoas que mais empregam os termos para, enfim, elaborar um conceito que norteasse o meu trabalho.
Sai por aí, incomodando atores, produtores, músicos, técnicos da cultura e consegui colher algumas “pérolas” que, a grosso modo, ganhariam as seguinte formas. Em primeiro lugar, a definição: três opiniões sobressaem. Alguns dizem que são os artistas nascidos em Sergipe (o que deixa boa parte dos nossos cantores conhecidos fora do time).
A segunda opinião não discrimina como tais os que têm compromisso com valores culturais da nossa terra, independentemente de sua naturalidade (o que complica bastante, pois quando perguntei quais seriam esses valores culturais sergipanos as pessoas se dizem confusas).
Há um terceiro grupo – o mais reduzido – que não vê nenhum sentido na locução. Artista da terra, dizem, é discriminatório e, não raramente, é usado de forma pejorativa quando se quer identificar um trabalho artístico de qualidade duvidosa ou para tornar anônimos os artistas locais. Seria uma espécie de nivelamento por baixo, sempre necessário para justificar as políticas de “amparo” e, ainda, para destacar uma estrela de renome nacional, atuando em um mesmo evento com os “da terra”.
Alguns dos consultados dão muita importância à natureza e à função da obra artística: “tem que ser músico regional” (sergipano ou de qualquer estado do Nordeste?). Outros são indiferentes. Mas, o que seria uma produção regional quanto ao estilo, função ou consumo? Existe mesmo uma regionalidade obrigatória para distinguir classes de artistas? (Observem que boa parte das pessoas somente se referia à produção musical!).
Adiante, perguntei sobre a veiculação desses produtos. Aí, novamente, aparecem três opiniões. As mais numerosas ficam equilibradamente entre a divulgação via rádio/TV comerciais em Sergipe e as alternativas independentes dos circuitos de bares, além dos eventos promovidos pelo Estado.
Um terceiro grupo, menos numeroso, é mais incisivo: o artista que é “cooptado” por grandes agências nacionais perde o status de “da terra”. (Isso é desastroso, pois o que todo “bichinho” daqui mais sonha é fazer sucesso lá fora).
Mas, problema mesmo foi quando pedi exemplos de artistas da terra atuantes em Aracaju. A grande maioria cita chicos, tonhos, rogérios, jorges e marias, todos inclusos numa categoria musical também pouco definida, chamada de MPB. Roqueiros? Nem pensar! Sanfoneiros? Ah, pobre do sanfoneiro que só é artista da terra nos dias mais festivos de junho. Músicos eruditos? Jamais!
Outro grupo cita poetas, artesãos, transformistas, cordelistas, mestres de guerreiro e “gente que faz performance”. Em número menor são lembrados alguns nomes de atores, bailarinos, músicos e artistas plásticos. Gente de circo? Nem pensar!
Nessas andanças, descobri também que a locução “artista da terra” é danada para sumir e aparecer em determinadas épocas. Agora mesmo, vivemos o período da entressafra. Mas, não demora muito e chegam aí o Festival de Artes de São Cristóvão, o natal, verão, carnaval, campanha para governador, São João, Forró Folia, etc. Artista da terra também é suprapartidário: não é difícil flagra um mesmo profissional empunhando bandeiras da direita, o centro, de cima e de baixo... de qualquer tendência política.
Sob a indefinição (ou a riqueza de sentidos) de artista da terra, portanto, escondem-se as mais curiosas ações e intenções. Torna-se abrigo, inclusive, para lobistas de gosto eclético, com “propostas de trabalho bem definidas” e, paradoxalmente, adequadas a qualquer espécie de evento. Serve também como pano de fundo para as famosas políticas de resgate e de intercâmbio cultural, oportunidade onde todos podem lucrar (políticos, intermediários, povo e artista), onde a máxima do “finges que me pagas que eu finjo que produzo” é frequentemente posta em prática.
Gostaria de receber opiniões dos leitores a respeito do tema. Enderecem suas cartas para Vila Piabeta, quadra 11, quarta etapa, lote 27 em Nossa Senhora do Socorro (este endereço pode dar a impressão de que eu moro no fim do mundo, mas deixem esse problema com os Correios).
Escrevam urgentemente ou terei que iniciar o trabalho concordando com uma opinião pouco freqüente nas consultas que, por motivos óbvios, não utilizei nesta tentativa de classificação: “artistas da terra são toupeiras, minhocas, formigas, centopéias e outros bichinhos mais exóticos”. O que não deixa ser lógico, pois arte (em um sentido bem antigo) significa ofício, trabalho. Sendo “da terra”, somente esses atraentes seres podem legitimamente representá-los.
Ainda assim, creio que é muito estranho visualizar os nossos abnegados artistas com antenas, carapaças, centenas de perninhas e extensas línguas, embora os seus uivos sejam percebidos por todos, em todas as casas culturais e por todas as estações do ano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Artista da terra, que bicho é esse? Folha da Praia, Aracaju, 1-7 abr. 1995. p. 3.

Fonte da imagem
Artista da terra. Bomfim, 1995. Folha da Praia, Aracaju, 1-7 abr. 1995. p. 3.