quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A pesquisa sobre as temáticas indígenas nos livros didáticos de História (1980/2010)

Alunas Ikpeng (Xingu) produzem livros
didáticos na Unemat (2008).
Como vêm sendo abordadas as temáticas indígenas nos livros didáticos de História? Há, aproximadamente, duas décadas essa questão é objeto da preocupação de historiadores, antropólogos, sociólogos e estudiosos da educação em geral que se debruçam sistematicamente sobre a experiência indígena no Brasil.
O interesse pelo assunto, a exemplo da nova historiografia sobre indígenas e o indigenismo, parece ter seguido uma trajetória orientada pelas lutas em prol dos direitos indígenas, no final da tutela militar.
A instituição do Programa Nacional do Livro Didático/PNLD (a crítica ao programa) e a institucionalização dos estudos sobre ensino de História nos últimos 20 anos também marcaram as motivações dos pesquisadores, que se investigaram os livros didáticos em busca das imagens e representações dos indígenas (Cf. Telles, 1989; Rocha, 1984; Pinto e Myazaki, 1985; Almeida, 1987; Bittencourt, 1998; Lemos, 1999; Rodrigues, 2001 e 2005; Ribeiro, 2004; Gobbi, 2006; Santiago e Dias, 2007a e 2007b; Coelho, 2007 e 2009, Freitas, 2009, Zamboni e Bergamaschi, 2010).
Na base das escolhas desse objeto dominante – a representação –, está a denúncia contra o racismo, etnocentrismo e estereótipo. O interesse orientador é a educação para a tolerância (respeito à pluralidade e às identidades étnicas), a valorização do outro como sujeito histórico e, de forma residual, o processo de construção dos indígenas como sujeitos históricos e a problematização do ensino de História como saber autônomo.
As fontes, por sua vez, variaram bastante. Foram estudados livros didáticos do ensino fundamental e médio, de História, Estudos Sociais, Moral e Civismo e de leitura, em sua maioria (no caso da História), distribuídos pelo PNLD entre 1999 e 2005. Apenas três dos trabalhos consultados e aqui referenciados (Bittencourt, 1998, Rodrigues, 2004, Zamboni e Bergamaschi, 2010), examinaram obras do século XIX e/ou primeira metade do século XX. A grande maioria concentrou as suas observações nos livros produzidos a partir da década de 1980.
Grosso modo, podemos afirmar que quatro perguntas recorrentes foram empregadas nessas pesquisas para revelar, dominantemente, a imagem veiculada sobre os indígenas brasileiros: 1. qual o espaço ocupado (páginas, capítulos, imagens, nomes próprios) pela experiência indígena; 2. a que tempo/período/evento (Pré-História, Colônia, Monarquia, República, tempo presente etc.) sua atuação está relacionada; 3. em que medida os livros didáticos incorporam avanços da pesquisa de ponta nas áreas da História, Antropologia, Arqueologia e Linguística, ou seja, se essas imagens são construídas em base cientificamente corretas; 4. em que medida os livros didáticos incorporam os avanços da legislação que protege interesses das sociedades indígenas (Constituição, convenções internacionais, manifestos de autoria indígena etc.), ou seja, se essas imagens são construídas em bases politicamente corretas.
Sabemos que cada uma das perguntas incorpora outras tantas elaboradas pelos pesquisadores. Mas tal tipificação dos interesses de investigação em quatro grandes preocupações permite sintetizar os seus resultados, orientar a elaboração de outras investigações acerca da temática indígena nos livros didáticos de História e viabiliza diálogo com a literatura específica. Vejamos, então, as mais recorrentes respostas oferecidas pela comunidade científica.
Leitura de livro didático em Cajazeiras-PE (2010).
Sobre as questões que tratam do tempo e do espaço (questões 1 e 2), há consenso no sentido de afirmar-se que, nas últimas três décadas, os autores têm ampliado, gradativamente, o espaço reservado à experiência indígena nos livros didáticos. De um capítulo inicial a inserções em várias unidades de leitura; de uma aparição no início do período colonial à presença no tempo anterior à chegada dos europeus até as referências aos conflitos fundiários dos anos 1990.
Sobre as duas últimas questões (do cientificamente e politicamente corretos), as pesquisas apontam ambiguidades e contradições. Por um lado, os livros didáticos respeitam as singularidades étnicas (diversidade sócio-cultural), a condição de sujeitos históricos (protagonismo) com atuação diluída em todo o período da experiência brasileira, fornecendo dados relativamente atualizados a respeito do trabalho, escravidão e identidade indígenas, inclusive no tempo presente.
Por outro, mantêm abordagem linear/evolucionista da História e teses consideradas ultrapassadas ou sem cobertura legal em nosso tempo, tais como: indígenas ingênuos, indolentes, vítimas eternas, integrados à natureza, pertencentes ao passado colonial, patrimônio nacional, tutelados pelo Estado, aculturados ou em vias de extinção.[1]
A razão de tais ambiguidades e contradições, segundo os pesquisadores, pode ser atribuída, principalmente, a quatro fatores: 1. o distanciamento entre a pesquisa de ponta nas ciências humanas e sociais e a produção de livros didáticos; 2. o desinteresse dos historiadores pelas questões indígenas até meados dos anos 1980 (e a consequente manutenção das teses gestadas pela historiografia do século XIX e do início do século XX); 3. o traço preconceituoso e interessado de alguns setores da sociedade nacional; e 4. à função moral do saber histórico ensinado no Brasil.
Essa síntese de questões e orientações da pesquisa específica refere-se aos livros que tratam da experiência brasileira (regional e nacional) e da experiência geral (mundo). Qual seria, então, a imagem veiculada sobre indígenas nos livros didáticos que você tem em mãos? Eles reproduzem as mesmas ambiguidades e contradições? Ampliam o espaço e tempo de registro da experiência indígena, independentemente das diferenças de contingentes indígenas reconhecidos em cada Estado? Incorporam as inovações historiográficas e os avanços na legislação protetora dos interesses das sociedades indígenas? Esses são os temas e questões sobre os quais me interesso sistematicamente há dois anos e que gostaria de partilhar com vocês neste momento. [Continua].


Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A pesquisa sobre as temáticas indígenas nos livros didáticos de História (1980/2010). Parte I do texto base da palestra proferida no Simpósio Regional da Anpuh-AL. Maceió, 23 set. 2010.http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/pesquisa-sobre-as-tematicas-indigenas.html
Para ler a parte II deste texto:


Fontes das imagens:
Leitura de livros didáticos - http://folhavipdecajazeiras.blogspot.com
Alunos Ikpeng, do Xingu, produzem livros didáticos na Universidade Estadual do Mato Grosso - http://webradiobrasilindigena.wordpress.com/2008/07/22/indios-professores-do-xingu-vao-lancar-livros/
Referências
ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. O racismo nos livros didáticos. In: SILVA, Aracy Lopes da (org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1º e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 13-71.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998. pp. 69-90.
COELHO, Mauro Cezar. A história, o índio e o livro didático: apontamentos para uma reflexão sobre o saber histórico escolar. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos, REZNIK, Luís, MAGALHÃES, Marcelo de Souza (org.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: FAPERJ/Editora da FGV, 2009. pp. 663-280.
COELHO, Mauro Cezar. As populações indígenas no livro didático, ou a construção de um agente histórico ausente. Anais... Reunião da ANPED, 30. Caxambu, ANPED, 2007.
FERNANDES, Eunícia Barros Barcelos. Imagens de índios e livros didáticos: uma reflexão sobre representações, sujeitos e cidadania. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos, REZNIK, Luís, MAGALHÃES, Marcelo de Souza (org.). A história na escola: autoes, livros e leituras. Rio de Janeiro: FAPERJ/Editora da FGV, 2009. pp. 291-297.
FREITAS, Itamar. Temáticas indígenas nos livros didáticos de História regional. In: História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009.  pp. 194-238.
GOBBI, Izabel. A temática indígena e a diversidade cultural nos livros didáticos de História: uma análise dos livros recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático. São Paulo, 2006. Dissertação em Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos.
GRUPIONI, Luís Donizsete Benzi. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas no Brasil. In: In: SILVA, Aracy Lopes da e GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. pp. 481-425.
LEMOS, César de Miranda. Os índios invisíveis: o ensino de história sem etnicidade. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DO ENSINO DE HISTÓRIA, 4, Ijuí, 1999. Anais... Ijuí: Editora da Unijuí, 1999.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. As sociedades indígenas, a história e a escola. Antíteses, v. 2, n 3, p. 153-167, jan.-jun. 2009.
OLIVEIRA, Teresinha Silva de. Olhares que fazem a “diferença”: o índio em livros didáticos e outros artefatos culturais. Revista Brasileira de Educação, Brasília, n. 22, pp. 25-34, jan./abr. 2003.
PINTO, Regina Pahim e MYAZAKI, Nobue. A representação do índio nos livros didáticos da área de Estudos Sociais. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. 30, p. 165-191.
RIBEIRO, Renilson Rosa. Colônia(s) de identidades: discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
ROCHA, Everardo Pereira Guimarães. Um índio didático: nota para o estudo de represernações. In: ROCHA, Everardo Pereira Guimarães et alii. Testemunha ocular: textos de Antropologia Social do cotidiano. São Paulo: Brasiliense, 1984.
RODRIGUES, Isabel Cristina. A temática indígena nos livros didáticos de História do Brasil para o ensino fundamental. In: ARIAS NETO, José Miguel (org.). Dez anos de pesquisas em ensino de História. Londrina: AtritoArt, 2005. pp. 287-296.
SANTIAGO, Léia Adriana da Silva e DIAS, Maria de Fátima Sabino. Identidade e representações: a imagem do índio nos livros didáticos de Estudos Sociais. http://www.nipeh. ced.ufsc.br/nipeh/index.php?option=com_docman &task= doc_download&gid=6&Itemid=38. [Consultado em 20 de julho de 2009].
_____. As imagens dos índios da cultura escolar no Brasil. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 24, 2007, São Leopoldo. Anais... São Leopoldo: ANPUH, 2007.
TELLES, Norma Abreu. Carografia brasílis ou: esta história está mal contada. São Paulo: Loyola, 1984.
Notas:
[1] É importante destacar que, dada à dispersão dos objetos de pesquisa, não foi possível apontar tendências no conjunto de textos comentados – se tal permanência ou mudança é detectada nos livros das séries inicias ou nas séries finais, se nas obras de História ou de Estudos Sociais etc.