É sim! O dr. Silvio Romero também opinou sobre o ensino público brasileiro. Tanto o fez que o Jorge Carvalho reservou boa parte dos quatro anos do doutoramento para compreender a sua proposta culturalista. Romero criticava a americanização. “Não aceitava que o ensino fosse meramente industrialístico e visasse apenas o ganha-pão imediato... reduzido a uma aptidão mecânica... preparado em doses como se faz com uma receita de bolos ou com uma lista de compras.” (Nascimento, 1999, p. 218-219).
As “notas sobre o ensino público” foram produzidas no alvorecer da Primeira República” e referem-se, inclusive, a uma plano de organização do ensino secundário. Romero sugere mudanças para delimitação das matérias, sua distribuição e o método de ensino.
Sob o primeiro aspecto, o lagartense decreta o fim da orientação pendular desse ramo de ensino, entre o “clássico” e o “realista”, por todo o tempo da monarquia. Ele defende a conciliação das duas propostas. Nesse arranjo – curso clássico + curso de ciências –, pasmem, a história não é referida como “matéria clássica e beletrista”, como as línguas e literaturas latina, nacional, francesa, inglesa e alemã. Ela é inserida na “parte científica” do currículo composto por saberes do grupo matemático, grupo físico-natural e do grupo histórico-sociológico.
A herança da classificação das ciências, de Herbert Spencer, é clara. Mas, a observação endógena de Romero, contrapondo-se às “pedagogices livrescas”, importadas dos Estados Unidos e da França, tem um preço. No seu plano, reduz-se o espaço para os estudos sobre a educação do adolescente, e o próprio Romero – para a nossa sorte – despreza a opinião do seu teórico, tanto sobre a insuficiência científica da história, quanto da inutilidade do seu ensino nas escolas britânicas (Cf. Spencer, 1901).
Alçada ao status de ciência, a história seria distribuída – no currículo e dentro da do plano da própria disciplina – segundo o critério da “complexidade crescente”, ou seja, da passagem do concreto para o abstrato. Isso significava a ocupação dos sexto e sétimo anos, sendo a história do Brasil ministrada apenas na última série do secundário.
A ausência da história nos cinco anos anteriores é debitaria da sua noção de psicologia. O ensino deveria respeitar o desenvolvimento natural – harmônico e progressivo – das faculdades espirituais (receptivas e concretas, abstratas e superiores). A história escolar seria, então, uma saber de síntese, consumível apenas durante a formação das “faculdades superiores”, necessitando, como as outras, da “assimilação” dos vários ramos das línguas e das ciências ensinadas anteriormente.
Certamente, a brevidade daquele ensaio não permite detalhes. No entanto, os recursos lingüísticos empregados para as prescrições são indiciários de uma importante característica da sua pedagogia: o professor como figura central nas tarefas de instrução no curso secundário.
Dessa pedagogia, da teoria das faculdades e da transposição didática – das ciências de referência para as disciplinas escolares – resultaria um método de ensino, grosso modo, muito similar ao estudo da “lógica das ciências”. Este, por sua vez, espelhava-se na “marcha natural do espírito humano, do concreto para o abstrato.” Proceder metodicamente pode ser entendido aí como “estudar os processos indutivos e depois os processos dedutivos.” (Romero, 1901, p. 216).
Quanto à história, o método a ser execrado seria aquele que se baseia em fatos históricos “mal contados, mal unidos, sem arte e sem sistema”, e sem a devida verificação científica. A sistematização dos fatos é requerida, mas o professor deveria afastar-se da “filosofia [especulativa] da história”.
Sobre os conteúdos, Romero prescreve: 1) História universal - os “elementos” e os “fatores mais poderosos”, respectivamente, da “cultura oriental antiga e moderna” e os da “cultura ocidental antiga e moderna” e “o contingente de cada povo na evolução universal”; 2) História do Brasil - “os fatores mais enérgicos de nossa cultura e de nosso desenvolvimento.” (Romero, p. 215-216, 1901).
Algumas propostas acima foram adotadas pela reforma Benjamim Constant. “Mas, não todas”, lamentou Romero (Cf. p. 211). Seria interessante investigar o que o positivista comtiano Benjamim incorporou do agora spencerino Romero. Mais importante, porém, seria saber o que o professor do Pedro II queria dizer com ensinar os fatos “relacionados com o ideal do conjunto da evolução humana: a cultura” (p. 125) e o que o professor de história do Brasil deveria adotar como história pátria. Seriam as criações fundamentais da humanidade – os fatos religiosos, estéticos, industriais, científicos, jurídicos, morais e políticos? (Cf. Romero, 1953, p. 372, v. 1; 1904, p. XVII). Seriam os fatos determinantes e o produto da nossa cultura, expressos em sua História da literatura (1888) – a natureza, as raças e os gêneros literários?
Mutatis mutandis, é o próprio Silvio Romero que, nos primeiros anos da República, vai escrever um livro didático sugestivamente intitulado História do Brasil pela biografia de seus heróis, encontrado às centenas nos almoxarifados da instrução pública para a distribuição nas republicaníssimas escolas públicas paulistas da década de 1890, quatro anos depois de ter escrito as “Notas sobre a instrução pública”. (Cf. Guimarães, 1895). Contradições? Não, apenas mais um flagrante daquela “imagem nervosa do país” (Candido, 1978, p. XII) no início do novo regime. O caráter nacional falava mais alto outra vez.
Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Silvio Romero e a pedagogia da história. A Semana em Foco, Aracaju, p.6B-6B, 22 ago. 2004.< http://itamarfo.blogspot.com/2004/08/silvio-romero-e-pedagogia-da-historia.html>.
Referências
BRUTER, Annie. Lavisse et la pédagogie de l’histoire. Histoire de l’Éducation, Paris, n. 65, p. 27-50, jan. 1995.
CANDIDO, Antonio. Introdução. In: Silvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
GUIMARÃES, Artur César. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Publica do Estado de São Paulo em 1894. (Anexos VI a XVII ao Relatório apresentado ao Sr. Presidente do Estado de São Paulo pelo Dr. Cesário Mota Júnior, Secretário de Estados dos Negócios do Interior, em 31 de março de 1895. São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, 1895).
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A cultura ocultada. Londrina: Editora da UEL, 1999.
PAIM, Antonio. A filosofia da Escola do Recife. 2 ed. São Paulo: Convívio, 1981.
ROMERO, Silvio. Da crítica e sua exata definição. In: História da literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 1954.p. 347-377. v. 1.
ROMERO, Silvio. Fatores da literatura brasileira. In: História da literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 1954.p. 49-173. v. 1.
ROMERO, Silvio. Notas sobre o ensino público. In: Escritos de sociologia e literatura. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901. p. 127-216.
ROMERO, Silvio. Prefácio. In: BITENCOURT, Liberato. Ramos do saber. Classificação das ciências e de todos os ramos da atividade do saber. 4 ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Ginásio 28 de Setembro, 1922. p. IX-XVIII. [Prefácio escrito em 1904].
SPENCER, Herbert. Classificação das ciências. São Paulo: Cultura Moderna, s. d.
SPENCER, Herbert. Educação intelectual, moral e física. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901.
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