Os profissionais da educação do início do século XX foram os primeiros produtores do gênero literatura infantil. Traduzindo ou recriando, não tinham como preocupação central a dimensão estética, apesar das considerações lingüísticas e estilísticas presentes em suas obras. O intuito desses autores era, primordialmente, pedagógico. (Cf. Zilberman e Lajolo, 1993, p. 249-251). O valor daqueles primeiros exemplares intitulados “livros de leitura”, como os de Olavo Bilac e Manoel Bomfim (1910), residia nas finalidades, conteúdos e formas de exposição adequadas aos ensinamentos da escola primária, fosse ensino de padrão ou simplificado – ler, escrever e contar – ou enciclopédico – História, Geografia, Ciências físicas e naturais, Higiene, etc. (Cf. Bilac e Bomfim, 1931, p. V-VIII).
Na palavra autorizada de Bilac e Bomfim, um livro de leitura deveria constituir-se no “único” livro didático destinado ao primário, o que não significava compreendê-lo como uma coletânea de todos os saberes disponíveis para tal. O livro não poderia substituir o professor. É este “quem ensina”. É o professor “quem principalmente deve levar a criança a aprender por si mesma isto é, a pôr em contribuição todas as suas energias e capacidades naturais, de modo a adquirir os conhecimentos mediante um esforço próprio.” Por outro lado, o livro não poderia ser apenas uma narrativa, deveria conter uma grande lição: “suscitar a coragem, harmonizar os esforços e cultivar a bondade: eis a fórmula da educação humana”. (idem).
Assim, inspirado na obra de Mme. Alfred Fouilée – Lê tour de la France par deux enfants (1877) – os autores narraram “a história da viagem de três adolescentes através do país, [dando] enredo para o conhecimento de paisagens, cidades, tipos humanos, gêneros de vida, formas de organização do espaço, modos de trabalho e vários outros dados sobre o Brasil” (Oliva, 2003, p. 33). É disso que trata o Através do Brasil, de Bilac e Bomfim. Uma obra que fez escola. Esse e outros livros de leitura produzidos na primeira República transformaram-se em preciosas fontes senão para a história da educação, para a história cultural em sentido amplo, pois ao mesmo tempo em que auxiliavam o professor, sugerindo situações para o trato das disciplinas do primário, esses livros também mediavam a construção das imagens que os pequenos brasileiros faziam dos lugares outros do país e acerca dos seus irmãos coestaduanos.
Essa tarefa mediadora do livro de leitura despertou-me a curiosidade de conhecer o tipo de imagem a ser consumida pelos alunos sobre a cidade de Aracaju, às vésperas do seu primeiro centenário. A transcrição que se segue, um trecho de Nosso Brasil, de Luís Amaral Wagner (1948), depõe, por si mesma, acerca da importância do exame desse gênero literário na eventualidade de se querer produzir uma história de Aracaju a partir do olhar distante, do olhar de São Paulo e do Rio de Janeiro.
A cidade jardim
Aracaju, a capital do Estado de Sergipe, é um oásis esquecido do resto do Brasil. O seu porto só dá entrada a pequenos navios e em determinadas marés, e a via férrea que a serve é de uma lentidão insuportável.
No entanto, que bela cidade e que lindos jardins! Largas avenidas cortam-na em várias direções.
Os sergipanos têm orgulho da sua capital e com razão. Além de magnífico serviço de águas, a cidade possui bom serviço de higiene e belas instituições, como a Casa da Criança, modelar estabelecimento de ensino pré-escolar.
O porto é um canal largo, formado pela Ilha do Meio, que lhe fica defronte.
Os nossos viajantes embarcaram na estação de Calçada, e assim que chegaram a Aracaju foram de lancha visitar a ilha. Um imenso coqueiral a povoa. Ao vê-lo, o espectador tem a impressão de milhares de colunas com os seus capitéis de palmas. (Wagner, 1948, p. 82-91).
Encerrada a descrição da cidade, inicia-se o diálogo entre Dora e Luis e seu pai – entre duas crianças premiadas pelo desempenho nos estudos e o professor. Conversam sobre a cultura, o beneficiamento e a importância comercial do coco. Ao diálogo, seguem-se-lhes um pequeno vocabulário, noções e exercícios de gramática. Há também um momento de “recreação” – que fruta há em Aracaju? Ara [e afigura de um caju] –; um poema de autor sergipano: “Humildade”, extraído de Fonte da mata; e, por fim, um flagrante da cidade de Propriá:
Os elementos
Senhor Cláudio e os garotos tomaram o trem às treze horas, chegando à cidade de Propriá ao entardecer.
Propriá fica à margem do rio São Francisco. Àquela hora, o vasto lençol das águas refletia as cores cambiantes do ocaso. Com é largo o São Francisco nesse trecho!
Grandes canoas de vinte metros de comprimento, dotadas de amplas cabinas de palha trançada, viam-se abicadas no porto.
O pai dos meninos alugou uma das maiores, para navegar rio acima.
Na subida os canoeiros têm vento pela popa e desfraldam duas velas triangulares de cada lado do mastro central: isso dá ao barco a feição de uma imensa borboleta (Wagner, p. 89-90).
Pelas dosagens separadas de Geografia, Corografia, Gramática, Economia, Literatura e Ciências físicas, vê-se que o Luís Wagner não segue ao pé da letra o modelo de Através do Brasil. Mas não deixa de ser um depoimento sobre a imagem que se fazia de Sergipe na metade do século passado. O coqueiral, o tirador de coco, as canoas de tolda do São Francisco eram as principais representações visuais impressas nesses livros de leitura e quem sabe, os elementos mais significativos que foram retidos na mente dos demais escolares do Brasil sobre a terra de Hermes Fontes.
Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Representações de Aracaju no livro de leitura "Nosso Brasil", de Luís Wagner Amaral. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 01, ago. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/representacoes-de-aracaju-no-livro-de.html>.
Referências
WAGNER, Luís Amaral. Nosso Brasil. (Para o 4º grau primário). 112 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s. d.
OLIVA, Terezinha Alves de. Manoel Bomfim e os impressos sobre educação. Cadernos UFS – História da Educação. São Cristóvão, v. 5, fasc. 1, p. 27-33, 2003.
ZILBERMAN, Regina e LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 4 ed. São Paulo: Global, 1993.
BILAC, Olavo e BONFIM, Manuel. Advertência e explicação (de Através do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931. p. V-VIII e XII). In: ZILBERMAN, Regina e LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 4 ed. São Paulo: Global, 1993. p. 275-277.
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