O Álbum de Sergipe (1920) corresponde fielmente ao sentido etimológico do substantivo: uma espécie de livro de folhas brancas, nas quais se registram nomes, pensamentos, versos, músicas, retratos, paisagens e outras coisas com objetivos memorialísticos (Aulete, 1974, p. 136). Pode o Clodomir Silva ter pensado algo diferente – uma história de Sergipe, por exemplo, para “demonstrar fora do Estado as condições em que nos encontramos, a capacidade de ação de que somos dotados, os recursos de que dispomos” etc., mas o resultado foi mesmo um coquetel de informações desarticuladas – ou de registros articulados como a narrativa imagética de um álbum de família.
O plano do impresso assim denuncia essa Babel. Fora pensado para rememorar os fastos do centenário da independência de Sergipe, difundir e imortalizar a ação patriótica e modernizadora do Governo Pereira Lobo. O resultado é que passado e presente, tempo e espaço, história política e geografia física se misturam constantemente. Inicia-se com a narrativa da experiência sergipana, de capitania à província. O fluxo é interrompido para descrever-se a “parte física” – por sua vez, encerrada com uma nota sobre as Constituições locais, hino, selos e listagem de parlamentares estaduais e federais.
O Álbum trata, em seguida, de administração e finanças contemporâneas e encerra a descrição das contas para avaliar a história dos últimos cem anos. Volta-se ao presente, à biografia e aos feitos do Lobo governador. Muda-se abruptamente o foco para a cronologia sobre a imprensa sergipana do período 1832/1916 e, de novo, para a descrição das repartições públicas federais e estaduais, das entidades civis representativas como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a Diocese de Aracaju e a Loja Maçônica Cotinguiba. Daí, salta-se para uma resenha corográfica de todos os 34 municípios.
Já perto do fim – estamos na página n. 303 – a experiência municipal é reunida em longa e útil lista de todas as cidades, vilas, povoados e arraiais, notas biográficas sobre notabilidades políticas, econômicas, literárias e religiosas, e quadros estatísticos da atividade produtiva relativa aos anos 1919/1920. Ufa !
Esqueçamos esse ligeiro plano seqüência e fiquemos, apenas, com a escrita da histórica tradicional. Mas, ela existe no impresso? Que tipo de história Clodomir teria praticado? As histórias estão em todo o Álbum e representam a variedade de gêneros em vigor por essas terras no final do século XIX. Há síntese global sobre a história de Sergipe – 1500/1822; síntese sobre o último século 1820/1920; história dos municípios; cronologia da imprensa sergipana; biografias de artistas, cientistas, políticos e religiosos. As limitações de espaço não permitem que se toque em todas as pedras. Também não quero fazer um sobrevôo no espectro iconográfico desse livro. Para isso, convido o leitor a desfrutá-lo diretamente. Aqui comento, apenas, o texto escrito – “Sergipe em cem anos” – que trata da época da “cristalização das aptidões sergipanas” – dizemos hoje, da identidade local.
Clodomir inicia a narrativa (?) confessando a sua dificuldade em “historiar com segurança, sob um ponto de vista mais alevantado que o comum das proposições a que se lança o historiador” (p. 82). O que seria “o comum do historiador”? A justaposição de fatos relativos à experiência político-administrativa, intercalados com longos depoimentos contemporâneos fabricados pelo próprio Estado em formação? – É isso que ele faz na síntese global sobre a colônia. O “ponto de vista mais alevantado” seria a tentativa de interpretação sob princípios sociológicos? Espero que algum dia um aluno de história responda a essas questões. Enquanto esse aluno não chega, exponhamos uma hipótese. Quando tenta fazer história um pouco longe da crônica, Clodomir descamba para um ensaismo de matizes, digamos, psico-sócio-antropológicos. Como isso pode ser demonstrado?
No “Sergipe em cem anos”, Clodomir abandona a cronologia e a fatuidade política stricto sensu. Ele volta-se ao estudo do meio físico, da raça e dos costumes de Sergipe. O meio é belo e, ao mesmo tempo, hostil: o meio castiga. O território é pequeno. A seca e o “impaludismo endêmico” atrapalham o crescimento da população.
O tipo etnográfico é o segundo traço característico da população a ser investigado. Não há homogeneidade – digamos sem medo de exagerar: Clodomir lamenta que não sejamos ainda uma raça homogênea e regozija-se das possibilidades de clareamento.
Quanto aos costumes, há um elemento importante: é fácil identificar o sergipano pelo seu modo de falar. Clodomir constata “uma certa demora em pronunciar as palavras” e sentencia: “O caráter exato do falar do comum dos sergipanos é a média lentidão”.
Essa análise do meio, da raça e dos costumes leva o historiador à eleição dos traços principais do nosso caráter. Para ele o sergipano é inteligente, confiante, animado, bravo, estóico, em duas palavras: migrante e trabalhador. São categorias colhidas no povo sergipano e facilmente identificáveis nos seus filhos mais ilustres, destacados no comércio, agricultura, magistratura, armas, letras, artes, magistério, tribuna e no parlamento. A ação sergipana pode ser constatada no Acre, Bahia, Pernambuco e até no Paraguai.
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Como tratamos na semana passada, a narrativa do “Sergipe em cem anos”, incerta no Álbum de Sergipe (1920), de Clodomir Silva, apresenta analise do meio, da raça e dos costumes e informa sobre os traços dominantes do nosso caráter: o sergipano é inteligente, confiante, animado, bravo, estóico, em duas palavras: migrante e trabalhador. São categorias colhidas no povo sergipano e facilmente identificáveis nos seus filhos mais ilustres, destacados no comércio, agricultura, magistratura, armas, letras, artes, magistério, tribuna e no parlamento e constatadas no Acre, Bahia, Pernambuco e até no Paraguai.
Mas, como acontece em toda a eleição de princípios e durante a elaboração dos trabalhos de síntese histórica, o estudioso tropeça nas evidências do próprio tempo, e do evolver da história. Entende-se que o Álbum é obra ecumênica e que só poderia externar a fraternidade entre grupos, indivíduos e ideais. Clodomir, entretanto, exagera. Diz que na política, quando “os ânimos e os fragores vibram, cedo logo os interesses se harmonizam e a vida calma segue o seu curso pacífico e proveitoso. Esquecem-se os ódios, velam-se as desafeições e a marcha prossegue ao som triunfal do trabalho vivificador.” São belas palavras inscritas no Álbum. As colunas dos diários aracajuanos das décadas de 1900 e 1910 – os tempos de Sílvio Romero, Olímpio Campos, Fausto Cardoso – e o rastro de violência (física) deixado pelas disputas oligárquicas (na época de Valadão e Lobo, inclusive) dizem coisa muito diferente.
Outro excesso destacável de Clodomir Silva: a tentativa de minimizar a ação do contingente negro. Esse fato é compreensível – quem quereria apresentar um Sergipe “de cor” após séculos de escravismo oficial? Mas, não deixa de ser patética a forma como tenta explicar o clareamento da população. Primeiro fala da importância do mameluco, do grande contingente indígena, da criação de subtipos oriundos destes últimos. Depois, noticia a “quase desaparição do elemento negro”, mesmo tendo informado que esse representava próximo de 2/3 da população local, no início do século XIX.
Para a infelicidade de Clodomir, a missão de bem representar Sergipe perante o Brasil também é atrapalhada pelo acaso futuro. Ele afirma que não temos cangaceiros. O povo “decaído” – o “nomadismo assassino” – só existira no tempo da guerra de Canudos. A verdade é que esse Estado não somente forneceu muitos conselheiristas à infortunada Canaã da Bahia (1893/1897), como também produziu grandes efetivos para o cangaço – Poço Redondo que o diga! Isso sem falar que o mais famoso bandoleiro do norte do país – Virgulino Ferreira da Silva – aqui encontrou apoio de gente graúda e aqui foi aniquilado, colocando a gruta de Angicos e o Estado de Sergipe nas páginas dos jornais e da história do Brasil.
Sabemos hoje que a tarefa de descrever o aspecto geral da vida dos habitantes de Sergipe era necessária à sobrevivência dessa grande comunidade política. Oliveira Telles e Prado Sampaio também trabalharam nesse sentido. O que na síntese de Clodomir chama a atenção da história da historiografia é a auto-definição do texto como de história, e de história “de um ponto de vista mais alevantado”. Uma história sintética, generalizadora e – por que não dizer – sociologizante.
O último aspecto a considerar nessa história sociologizante é a tentativa de por à prova a conhecida lei de Malthus: “o poder de crescimento da população é indefinidamente maior do que o poder que tem a terra de produzir meios de subsistência para o homem (...) Entre as plantas e os animais, [as] conseqüências são a perda do sêmen, a doença e a morte prematura. Na espécie humana, a miséria e o vício.” (Malthus, 1983, p. 282). Com a aplicação dessa lei na interpretação dos dados locais, em fins da década de 1910, Clodomir demonstrava, hipoteticamente: 1) a nossa população era muito maior do que informavam as frágeis estatísticas de então; 2) a relação crescimento dos meios de subsistência–crescimento da população do Estado era regulada por meio das secas, epidemias e da guerra mundial – da mesma forma que ocorria nos demais Estados da federação brasileira; e 3) o caráter “migrante e “trabalhador” do nosso homem típico estaria explicado cientificamente – resultaria da ação de uma lei natural.
Clodomir Silva, que raramente interpretava, deu saltos em relação à história positiva. Ele só não previu os resultados de sua iniciativa. Ao requisitar o cientista social Thomas Robert Malthus (1766/1836) para explicar o êxodo populacional no início do século XX, ele anulou aquilo que supunha ser a maior singularidade do sergipano: justamente, o caráter migrante e trabalhador. Se a lei da produção e do consumo desigual de alimentos valia para todos – os Estados, os países etc. –, “o aspecto geral” do sergipano, conseqüentemente, teria que diluir-se no “aspecto geral” do brasileiro e de qualquer outro povo sujeito a tal determinação científica. Assim, especificamente nesse texto – “Sergipe em cem anos” –, aquilo que o sentimento de pertença local forneceu com uma mão, a razão científica solapou com a outra. Curioso, não? Mas, foi também dessa forma que os sergipanos aprenderam a escrever a história de seu próprio povo nos princípios do século passado.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Álbum de Sergipe e a escrita da história de Clodomir Silva. Palestra proferida na Biblioteca Clodomir Silva. Aracaju, 2005.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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