terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Livro didático de história: definições, representações e prescrições de uso

Obras complementares do PNLD 2010. Foto: itamarfo (2010).
O que é um livro didático de História, ou melhor, o que vem a ser um livro didático hoje? Livro é “um conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado”. Já o didático significa “que é próprio ou relativo ao ensino, à instrução; que tem por fim instruir”. (Larousse, 1992).
Por essa definição, todo conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado posto em uso nas tarefas de ensino e de aprendizagem poderia ser chamado de didático. Assim, seriam livros didáticos, por exemplo, o impresso regional distribuído pelo PNLD 2007, História do Mato Grosso do Sul, de Zélia de Souza, o Atlas Histórico escolar, do MEC, As Minas de Prata, de José de Alencar, 50 textos de História do Brasil, organizado por Dea Fenelon, o Dicionário do Brasil Colonial, organizado por Ronaldo Vainfas, as “Histórias” da Mônica, de Maurício de Souza, e O engenho colonial, de Luiz Teixeira Júnior. Essas obras, de alguma forma, são utilizadas nos estudos de História colonial do ensino fundamental.
Tudo resolvido? Claro que não! O assunto é controverso entre os professores. Raramente se aceitam os gêneros atlas, romance, livros de fontes, dicionário, história em quadrinhos como livros didáticos. A obra O engenho colonial, por sua vez, é considerada leitura complementar, leitura de aprofundamento, isto é, livro paradidático, como já indica o catálogo da editora de origem.
Vemos, então, que a definição de livro didático baseada nos termos dos dicionários da língua portuguesa são insuficientes para resolver nosso problema inicial. Mas, o que dizem os pesquisadores a respeito?
Neste penúltimo capítulo, estudaremos as definições e prescrições de uso do livro didático de história, colhidas na literatura corrente sobre o tema, bem como nos impressos pedagógicos destinados à formação inicial e continuada de licenciados em História e em Pedagogia ao longo do século XX, no Brasil.

O que é um livro didático?
Os especialistas na temática divergem bastante sobre a definição de livro didático[1]. Alguns admitem todos os gêneros aqui citados. Outros, somente os impressos que transpõem, didaticamente, matéria historiográfica. Outros, ainda, hierarquizaram as obras, colocando, em primeiro lugar, os títulos de leitura seqüencial, originalmente preparados para o uso dos alunos, e, em seguida, os livros de leitura tópica, utilizados com finalidades didáticas, tais como atlas, dicionários e enciclopédias.
As razões para tantas diferenças estão nas idéias professadas sobre a educação escolar e também na ênfase colocada em um ou outro critério de classificação, a saber: datas de origem – dos livros, da expansão dos sistemas públicos de escolarização –, o suporte, natureza e forma de organização dos conteúdos, finalidade ou destinatário, e os usos do livro didático. Paradoxalmente, é a partir dessas diferenças que podemos construir uma definição operacional do livro didático, definição esta que se baseia nos conceitos de texto, impresso e leitura.[2]
Em primeiro lugar, o livro didático é reconhecível porque materializa a disciplina escolar. Embora alguns especialistas afirmem que o livro didático existe desde a invenção da imprensa ou ainda que teve o seu nascedouro nos séculos XVII ou XVIII,[3] o artefato está intimamente ligado ao processo de disciplinarização dos saberes escolares. No caso brasileiro, há livros didáticos de História desde que a disciplina História foi constituída nos ensinos secundários e elementar, ou seja, desde o início do século XIX.
Mas como o livro pode materializar uma disciplina escolar? Ora, o livro é o suporte privilegiado da disciplina. Ele veicula os seus principais constituintes: os conteúdos, ou seja, o núcleo sobre o qual ela se constitui, a natureza temática e as limitações com as demais disciplinas. O livro didático também veicula as finalidades – as prescrições que dão sentido à existência dos conteúdos no conjunto das ações da escola. Por fim, os exercícios, isto é, o conjunto de atividades destinadas aos alunos e aos professores, responsável pela “fixação” e reprodução da disciplina escolar, também estão presentes no livro didático.
Como segunda característica, podemos afirmar que o livro didático é um material impresso, isto é, um objeto resultante do processo de colocação da tinta no papel, composto de tipos, vinhetas, imagens. Conhecemos livros didáticos de espuma, borracha sintética, tecidos e até de madeira, destinados aos alunos da educação infantil. O papel, no entanto, é o suporte característico do livro didático.
E o que dizer dos livros em suporte eletrônico, na internet ou nos CDRom? O livro difere fundamentalmente do texto eletrônico. Ele é escrito de forma linear e seqüencial. É composto por autores e editores, possui unidade temática, é finito e o relacionamento entre as suas unidades é mediado por sumário e índices (ao contrário dos hipertextos)[4]. Além disso, o impresso é uma tecnologia bastante prática, tanto para o fabricante, quanto para o vendedor e o leitor. O suporte papel torna o livro portável e manuseável, consultável em ambientes, situações e formas as mais diversas, independentemente de qualquer outra tecnologia. Para que isso ocorra, basta que se garanta, evidentemente, a sua conservação e um mínimo de luminosidade para o leitor.
A última característica significativa do livro didático é o fato de ele ser planejado e organizado para uso em situação didática; para ser lido – no seu sentido mais abrangente, para produzir sentido. Como a palavra didática, em Educação, sugere muitos sentidos, as divergências entre os pesquisadores se ampliam. Ela pode ser uma atividade com finalidade compreensiva, controladora ou emancipadora, para empregar uma tipologia sociológica. Ela pode ser uma prática centrada na autoridade do professor ou na interação aluno/saber sistematizado/experiência social, como tipificam as Psicologias. A opção por um desses sentidos orienta a função/ destinação do livro didático.
Apesar de tais variações, o “didático” do livro didático refere-se, predominantemente, às práticas no ambiente da escola e na residência dos seus usuários. Se assim raciocinarmos, teremos, no mínimo, dois destinatários para o livro didático: o aluno e o professor. Pensado como obra destinada ao aluno e ao professor, o artefato ganha, no mínimo, seis funções: reproduzir ideologia; difundir o currículo oficial; condensar princípios e fatos das ciências de referência; guiar o processo de ensino; guiar o processo de aprendizagem; possibilitar formação continuada.[5]
Com esses comentários, finalmente, podemos chegar a uma definição operacional para livro didático que muito nos auxiliará no exame das prescrições de uso contidas nos manuais de formação de professor. Livro didático é, portanto, um artefato impresso em papel, que veicula imagens e textos em formato linear e seqüencial, planejado, organizado e produzido especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e professores, e que tem a função de transmitir saberes circunscritos a uma disciplina escolar. Essa é a imagem que faço quando penso em livro didático.

Sobre a imagem do livro didático
Das tecnologias educacionais difundidas no século XX, o livro didático é a mais presente no cotidiano de professores e de alunos. Talvez, por isso, tenha atraído tantos defensores e inimigos, penso que na mesma proporção.
Os professores da escolarização básica são os primeiros a elencarem os seus vícios e virtudes. O maior vício de um livro didático é o de não utilizar, respeitar, aproximar-se, atingir a realidade do aluno (uso os mesmos verbos pronunciados pelos professores em Sergipe). Professores estranham a distância entre as imagens acéticas dos livros didáticos e a dureza da realidade que circunda a escola. Outros problemas apontados são as formas longas ou resumidas dos textos, o conteúdo incompleto e os freqüentes erros factuais.
Entre as virtudes do livro didático, obviamente, desponta o fato de ele respeitar e até estimular o trabalho com a realidade do aluno. Mas, são também virtudes o emprego dos instrumentos imagéticos e gráficos que facilitam e estimulam a aprendizagem,[6] a linguagem acessível e a informação historiográfica atualizada e didatizada.
Evidentemente, cada professor faz a crítica a partir de uma imagem de livro ideal que satisfaça as suas necessidades cotidianas. Sendo assim, cada professor tem um modelo de livro na cabeça. Esse livro, dependendo da situação, pode ser considerado a solução para educação escolar ou a desgraça dos impressos didáticos disponíveis no mercado. Foi assim no século XX e deve assim continuar ao longo do século XXI.
No mundo da pesquisa acadêmica, entretanto, as mudanças na imagem do livro didático – mais céticas ou mais compreensivas – podem ser delineadas com maior clareza. Para Jean Hebrard[7], por exemplo, o livro didático gozou de grande prestígio entre o final do século XIX e a década de 1960. Nesse período, vigorou o modelo pedagógico das Escolas Normais, que articulava professores modelos (de escolas de aplicação), formadores (diretores e professores das Escolas Normais) e diretores de coleções e de livros didáticos (professores de Escolas Normais ou próximos a estas). O livro didático era instrumento privilegiado nas ações de ensino e de aprendizagem.
Entre as décadas de 1970 e 1990, ao contrário, quando as “múltiplas formas do construtivismo” professadas nos Departamentos de Educação das Universidades começaram a fazer sucesso – modelo da autonomia do aluno e do professor, o modelo, enfim, da democracia – o livro didático caiu em descrédito. Variantes do construtivismo negam a possibilidade de a construção do conhecimento, por parte do aluno, “basear-se num livro escolar na sua forma tradicional”.
O ceticismo também proveio das mudanças operadas na ciência de referência. No caso da História, a nova tendência historiográfica impressa pela Escola dos Annales – trabalhar com problemas, de forma interdisciplinar, ampliando a noção de fonte histórica – foi considerada como modelo também para o ensino de história. Daí, a crítica severa aos livros didáticos, em sua maioria, baseados no padrão da historiografia anterior – a história narrativa – da Escola Metódica.
No Brasil, em tempos de República, também podemos identificar uma época de ouro dos livros didáticos de História. Entre 1910 e 1960, aproximadamente, depositou-se no artefato uma grande responsabilidade no sucesso e na qualidade dos ensinos primário e secundário. As iniciativas do Estado em normatizar a produção, circulação e usos com Sampaio Dória (1917) em São Paulo, Gustavo Capanema – CNLD (Comissão Nacional do Livro Didático-1938) e Anísio Teixeira - INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - 1952) no Distrito Federal, da Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático – COLTED (Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático – 1966), são indícios de que o livro didático era também um componente estratégico para a renovação das práticas escolares.
As causas desse prestígio são várias e incluem a expansão do ensino primário no início do século; a padronização do ensino secundário, ocorrida a partir da década de 1930; a sucessiva hegemonia dos modelos pedagógicos tradicional e escolanovista nas políticas públicas de então; e a articulação entre autores, editoras e professores (de escolas normais, colégios secundários modelos, Institutos de Educação, Faculdades de Filosofia e de Educação).
O descrédito, por outro lado, pode ser datado entre as décadas de 1970 e 1980. Para Kazumi Munakata[8] (1998), a suspeição em torno do livro didático está diretamente relacionada à reação dos intelectuais à ditadura militar. Nesse período, vigorou uma pedagogia crítica que considerava os livros didáticos como muletas indesejáveis. Também nesse período, educadores de História e Geografia protestaram contra a substituição das referidas disciplinas pela matéria Estudos Sociais.
Houve uma verdadeira “caça às bruxas”, ou seja, os livros de Estudos Sociais, por exemplo, foram alvo de críticas severas, por serem veiculadores da ideologia da classe dominante e/ou do regime militar. O modelo para essa crítica provinha de obras cujos títulos, por si sós, revelam o espírito da época: Mentiras que parecem verdades,[9] de Umberto Eco e Marisa Bonazzi (1980) e A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação, de Marc Ferro (1983).
Por outro lado, livros didáticos de história também foram (e são alvo) da estigmatização da pedagogia, freqüente entre muitos profissionais formados em História. As obras não constam nos inventários da História da Historiografia, indicando que são desconsiderados como escrita da História. Como tema de discussão no campo, o livro didático é peça de menor valor. Claro que a maioria não assume esse estigma, como vemos nesse depoimento sincero da historiadora Claudia Wasserman:
Ao ser convidada para participar do simpósio de Teoria e metodologia, senti um grande orgulho de pertencer a essa seleta elite que estuda não apenas a História, mas também o desenvolvimento do processo de produção do conhecimento, ou melhor, que discute a própria ciência. Porém, logo que me foi designada a mesa de ensino, me senti frustrada (temos a tendência a menosprezar os temas da educação). Com tantos temas importantes, pulsantes, novos e polêmicos (biografias, novas tendências, História no fim do milênio), eu teria que me contentar com a discussão do livro-didático, lamentar as mazelas da educação brasileira, etc. (Waserman, 2000, p. 249, grifos da autora).[10]
Se os historiadores fazem críticas veladas, a grande imprensa, ao contrário, não economiza palavras ao apontar, com argumentos pouco consistentes, as mazelas do livro didático de História no Brasil. “Lavagem cerebral”, por exemplo, foi o título do editorial de O Globo (19, set. 2007) para denunciar o “pedigree ideológico” do Governo Lula, veiculado em um livro didático distribuído pelo Estado. Segundo o editorialista, o governo mantinha em circulação a Nova História crítica de Mário Schmidt, elaborada “com um único objetivo: enaltecer o socialismo e seus ícones e qualificar o capitalismo com os piores adjetivos”. Mal sabia o editor que o livro fora aprovado no governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) e excluído por inadequações pedagógicas e historiográficas pelos avaliadores do PNLD, durante o próprio Governo Lula.
Apesar do fim do regime militar e do interesse das editoras em seguir o “politicamente correto” impresso na legislação brasileira, de orientar seus livros pelas tendências historiográficas mais recentes e propostas curriculares dominantes, apesar também de o MEC e as universidades públicas terem aperfeiçoado o sistema de avaliação, parte considerável da grande imprensa e um contingente muito expressivo de professores mantém uma hiper-desconfiança permanente em relação ao objeto livro didático. O livro didático de história é mal feito, emburrece e aliena (seja em benefício da direita, seja em benefício da esquerda). Enfim, a melhor coisa que professores conscientes e alunos ingênuos devem fazer diante de um livro didático de História é não lê-lo!

Ler ou não ler? Eis a questão!
Ler é produzir sentido a partir da experiência do leitor. É praticar leitura. É usar, empregar os textos. Essa produção de sentido ocorre sempre numa tensão entre a vontade disciplinarizadora do autor e do editor e a atitude transgressora do leitor. Em outras palavras, o autor e o editor querem que o leitor use o livro de determinada forma (ordem, modo), compreendam, assimilem e corroborem determinada tese, enquanto o leitor tem a liberdade de fazer o que quiser com os textos impressos que lhe são impostos, afirma Roger Chartier[11] (1990 e 2000).
A maioria dos profissionais de História e de Pedagogia, entretanto, acredita que os impressos didáticos são da responsabilidade única e exclusiva do autor, e ainda, que esse autor tem o poder de inculcar o que quiser na cabeça do leitor, bastando, para isso, capricho na sintaxe do texto e no layout do livro. A leitura é concebida por muitos como uma prática de mão única, e o leitor como sujeito passivo nesse processo. Isso explica, em parte, a sugestão fornecida por um crítico das iniciativas do Estado Brasileiro em termos de distribuição gratuita de livros didáticos de História: “a melhor coisa que professores conscientes devem fazer diante de um livro didático de História distribuído pelo MEC é não lê-lo!”.
Ao contrário do colega, minha posição é de que os livros devem ser lidos. Devem ser usados, sim. Mas, como fazê-lo? Ora, não há que prescrever o uso aqui (evidentemente, não por neutralidade política). O uso é de responsabilidade do professor. O uso explícito – como portar uma coleção de casa para a escola e vice-versa, exibindo os artefatos aos outros sujeitos, como uma enciclopédia do saber histórico – já é sinal de positividade. O uso explícito, como ornamento ou símbolo de poder – como se fazia com os livros não didáticos na colônia – pode parecer futilidade, mas denuncia que o Estado está presente na comunidade e que as escolas públicas brasileiras caminham para a universalização de um direito: o ensino de qualidade. E esse fato é uma conquista recente, dos professores inclusive.
Sobre as formas de leitura ou ainda os frutos da leitura que os professores fazem dos conteúdos dos livros didáticos, a pesquisa brasileira apenas se inicia. E mesmo no seu início, a própria pesquisa sobre a apropriação[12] dos conteúdos é produzida de forma a comprovar, ora a vitória dos autores/editores, ora dos leitores/ professores. Em São Paulo, por exemplo, há professores que não se dobram aos protocolos de leitura[13] do autor, do editor, ou dos avaliadores dos livros didáticos no Brasil. Não usam os livros integralmente, preferem consultá-lo para introduzir ou complementar suas aulas, empregam somente os exercícios ou as imagens.
Em Sergipe, há casos em que o professor segue à risca a ordem das unidades do livro didático. Seja por estar no início da carreira, seja por não ter tempo para planejar suas aulas, o livro didático é a solução. Ainda no início da carreira, o mestre executa todo o programa prescrito pelo livro, desprezando, apenas, os exercícios e o manual do professor. Prefere ele mesmo elaborá-los, pois assim garante a adequação do livro ao projeto pedagógico da escola e às singularidades cognitivas das crianças, bem como a possibilidade de enfatizar os textos e as questões que considera fundamentais para a turma. Para o mais experiente, que “pegou” 12 turmas de séries diferentes, a solução para cumprir o programa é uma só: seguir os capítulos do didático. Enquanto isso, a sala de vídeos, a biblioteca e o laboratório de informática da escola permanecem fechados por falta de usuários. Mas, será que sempre foi assim?
Ao longo do século XX, vários profissionais formadores do magistério preocuparam-se em prescrever os usos do livro didático de História. Alguns foram críticos em relação a sua importância. Era possível ministrar uma aula e até um curso sem a presença do manual. Mas, nenhum dos autores de manuais pedagógicos consultados (didáticas, metodologias) abriu guerra contra os livros didáticos. As obras tinham sempre uma função que variava conforme a posição política do autor, a tendência pedagógica professada.
Na Didática da Escola Nova (1935), os livros de texto[14] eram estimuladores, além de oferecerem fontes, problemas e narrativas para a experimentação das crianças. Nos tempos dos Estudos Sociais (décadas de 1970 e 1980), os didáticos serviam para veicular valores, atitudes e as conquistas do mundo moderno.
No retorno da História às séries iniciais, às funções elencadas foram acrescentadas as denúncias de fornecer lucro, transmitir mitos historiográficos, dar suporte aos conhecimentos escolares, currículos educacionais e métodos pedagógicos.
O local de uso variou pouco. Predominaram as orientações para o emprego em espaços público ou privados, ou seja, em sala de aula ou na residência de alunos e professores. O “como usar”, entretanto, foi alvo de alternativas diversas.
Para aqueles que têm o livro como “recurso” ou “auxiliar” indispensável ao ofício do professor, a orientação majoritária foi ler, ou melhor, fazer com que os alunos lessem-no de forma silenciosa ou oralmente em sala de aula.
A abundância ou escassez do livro do aluno determinou modalidades. Se todos têm livros, lemos coletivamente e silenciosamente; sentados, com os “pés no chão, coluna ereta, livro meio inclinado para a direita”; em pé, coluna ereta, voz empostada. Se a escola tem poucos livros, os exemplares são emprestados a determinado grupo que lê e o restante se envolve com outro tipo de atividade.
Para que ler? Para conhecer o livro em sua integralidade (capa, sumário, índices etc.); responder os exercícios; elaborar resumos e esquemas; preparar a explicação do texto; preparar-se para a exposição e o debate; conhecer conceitos históricos; observar como tais conceitos são trabalhados na série; tomar ciência da forma de trabalhar com tais conceitos; conhecer o sentido das palavras; ampliar vocabulário; extrair as idéias centrais; relacionar as idéias centrais; para replicar ou criar atividades que complementem e/ou enriqueçam os conteúdos substantivos do livro.
Por fim, para aqueles que não veem o livro como peça imprescindível, também há prescrições: se o livro contiver erros factuais ou lógicos, estimule os alunos a questionarem e apontar suas contradições. Se a organização das unidades provoca monotonia, trabalhe os mesmos temas com outras linguagens e gêneros (imagens, notícias de jornal). Se não aborda conceitos considerados fundamentais em História, crie atividades para desenvolvê-los com os alunos. Em síntese, ainda que ruins, os livros didáticos podem possibilitar uma boa aula ou um curso de qualidade. Aí, mais uma vez, o espaço é franqueado ao professor – o responsável pela organização das experiências didáticas.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Livro didático de história: definições, representações e prescrições de uso. In: OLIVEIRA, Margarida Dias de; OLIVEIRA, Almir Flélix Bueno de. Livros didáticos de História: escolhas e utilizações. Natal: Editora da UFRN, 2009. pp. 11-19.

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Resumo
Livro didático é um artefato impresso em papel que veicula imagens e textos em formato linear e seqüencial, planejado, organizado e produzido especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e professores com a função de transmitir saberes circunscritos a uma disciplina escolar. O livro didático perfeito existe apenas na cabeça do professor. No concreto, os impressos didáticos são plenos de vícios e virtudes, qualificados pelo maior ou menor respeito e/ou pelo maior ou menor estímulo proporcionado ao trabalho com a realidade do aluno. Apesar dessa característica, o livro didático é alvo de críticas severas, sobretudo de historiadores que não lêem livros didáticos e desconhecem a literatura sobre o tema. O artefato, vez por outra, é criticado pela grande imprensa interessada em produzir algo novo na política, com argumentação pouco consistente. Sobre os usos do livro didático, podemos afirmar que os artefatos são produzidos por autores e editores que aí expressam suas vontades. Mas, na leitura dessa tecnologia educacional, as necessidades e vontades do professor e do aluno são componentes fundamentais para reflexão sobre os usos e as repercussões dos usos dos livros didáticos. Em outras palavras, é possível conduzir momentos didáticos de excelência, mesmo com livros didáticos equivocados em termos historiográficos, pedagógicos, lingüísticos ou gráficos. Quem dá a última palavra é sempre o professor e o aluno.

Notas
[1] Em 1658, João Amós Comenius publicou Orbis Sensualium Pectus (O mundo sensível ilustrado), considerado o precursor do livro didático moderno. Tratava-se de um livro de imagens, destinado ao ensino do latim e de línguas maternas. Entre os seus objetivos, Comenius destacava: I. que ele seja entregue aos meninos em suas mãos, para que se encantem, com o espetáculo das figuras e as tornem, para si, como muito familiares também em casa, antes que sejam mandados para a escola. II. Então, logo depois, sobretudo já na escola, que ele seja examinado, qualquer que seja o assunto a que se dedique, a fim de que os meninos nada vejam, do que não sabem dar nome e nada denominem do que não sabem expor. III. que ele mostre realmente como as coisas são denominadas, não tanto na ilustração, mas em si mesmas, por exemplo, os membros do corpo, as vestes, os livros, as casas, os utensílios etc. (Commenius, 1659, apud. Schelbauer, 2008).
[2] Texto é fruto do trabalho de escritura sob a responsabilidade do autor.
Impresso é objeto constituído por papel e tinta, manipulado pelo editor, que serve de suporte ao texto.
Leitura é a prática de produção de sentido a partir do texto e do impresso que lhe dá suporte. A compreensão do escrito resulta, portanto, da tensão entre as vontades e estratégias do autor, do editor e do leitor. (cf. Chartier, 1990, pp. 121- 139).
[3] Para Maria Inêz Sucupira Stamatto, pesquisadora do ensino de História e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é possível que o Brasil tenha importado e utilizado, ainda no século XVIII, o “sistema catecismo”: o livro compunha-se de um texto seguido por exames - questões cujas respostas encontravam-se literalmente no texto anterior (Stamatto, 2008, p. 138).
[4] Hipertexto “ é a forma de apresentação de informações em um monitor de vídeo, na qual algum elemento (palavra, expressão ou imagem) é destacado e, quando acionado (ger. mediante um clique de mouse), provoca a exibição de um novo hipertexto com informações relativas ao referido elemento”. (Houaiss, 2007).
[5] Em geral, não divergimos quanto ao sentido de continuado: significa não dividido, não interrompido, prolongado e até repetido. As idéias de formação e de educação, entretanto, causam as maiores polêmicas: o que entendemos como educação, seria transmissão ou inculcação? E por formação, o que entendemos? Formação é criação ou moldagem? Para além da polêmica, parece óbvio que a formação continuada ocorre após uma outra formação, denominada de formação inicial. É o conjunto de práticas ligadas ao ofício de professor, vivenciadas imediatamente após o término do seu curso de licenciatura. Essa prática formativa foi institucionalizada há poucas décadas. No Brasil, ela é, inclusive, prescrita por alguns importantes dispositivos legais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Plano Nacional de Educação. A formação continuada é um dever do Estado, uma necessidade do professor e um direito do aluno.
[6] Livros didáticos facilitam e estimulam a aprendizagem, era o que afirmava Jonathas Serrano, ainda no início do século passado: o aluno deve gostar do livro adotado em aula. Deve entendê-lo perfeitamente. O compêndio é feito para facilitar o estudo, e não para torná-lo mais complicado e enfadonho. O melhor juiz do compêndio é o próprio estudante. Livro antipático e detestado é, por força, livro mal feito. (Serrano, 1935, pp. 73-74).
[7] Jean Herbrard. Inspetorgeral do Ministério da Educação da França e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Publicou Discursos sobre a leitura - 1880/1980 (1995).
[8] Kazumi Munakata. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisador de história das disciplinas e do livro didático. Publicou “Por que Descartes criticou os estudos que realizou no Colégio de la Flèche, mesmo admitindo que era uma das mais célebres escolas da Europa” (2003).
[9] Mentiras que parecem verdades é uma espécie de antologia de preconceitos, mistificações, “delirante reacionarismo arcaico” e “frequente tendência fascista” recolhidos de livros didáticos italianos. O que ali importa não é tanto a análise, confinada a poucas linhas de apresentação de cada capítulo, mas, como afirma Eco na “Introdução”, a denúncia de conteúdos perpetrados por autores que, “para satisfazer a maioria, para não causar discórdias, para evitar suscetibilidades, para agradar a todos”, não ultrapassam o “nível do óbvio ululante, do corriqueiro, do acrítico, da imbecilidade respeitável”. (p. 18). A surpreendente conclusão de Eco  é bastante conhecida: A aspiração máxima seria que Mentiras que parecem verdades se tornasse o único livro de texto adotado nas escolas.” (p. 18).
[10] Segue o restante do texto, onde a autora anuncia a relevância dos estudos sobre o livro didático de história: “Mas, logo que comecei a refletir sobre o tema proposto, percebi o privilégio único de debater sobre o verdadeiro ofício do historiador. Ou seja, pensar nos conteúdos teóricometodológicos do nosso cotidiano acadêmicouniversitário é muito menos desafiador do que pensar nesses conteúdos no âmbito da escola e dos instrumentos envolvidos no processo ensinoaprendizagem”. (Waserman, 2000, p. 249).
[11] Roger Chartier. Diretor de Investigações na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e pesquisador de história da leitura, do livro e das edições. Publicou História cultural: entre práticas e representações (1990).
[12] Em seu sentido etimológico, apropriar-se é estabelecer a propriedade sobre algo. Mas, existe a apropriação no sentido da hermenêutica, que significa aquilo que os indivíduos fazem com o que recebem. O conceito de apropriação pode mesclar o controle e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de sentidos novos. (Chartier, 2000, pp. 90-91).
[13] Protocolos de leitura são o conjunto de normas reguladoras sugeridas ao leitor do livro didático por parte do autor (modos de desenvolver uma atividade com os alunos, indicações de leituras complementares) do editor (sumário, títulos, glossário) ou do avaliador do livro didático (complementar conteúdos, criticar abordagens e atentar para os exageros, por exemplo).
[14] Os livros de texto não devem ser obras de ensino, e sim livros de trabalho. Deverão estimular a criança para que realize seu trabalho escolar, indicarão as fontes que se podem consultar, apresentarão problemas e dificuldades adaptadas à experiência e capacidade dos alunos e farão narrações vivas, interessantes e animadas, tomadas com freqüência das fontes históricas. Um bom livro de trabalho pode, pelo menos até certo ponto, substituir uma coleção de fontes. (Aguayo, 1935, p. 242).

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto. Leitura e discussão instigantes. Já salvei o blog nos meus favoritos, inclusive.

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