Caríssimos colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer a presença de todos. Gostaria de parabenizar os programas de Pós-Graduação em Educação e em História da UFRN pela iniciativa de incluir o ensino de História na sua pauta de discussões e, por fim, também agradecer às professoras Inês Stamatto e Margarida Dias pelo convite e pela boa acolhida aqui neste Estado.
Minha fala neste curso enfatizará a relação ensino de história-formação do historiador, título que por si só já considero uma provocação. Trata-se de um texto iniciado no Encontro Regional da Anpuh do Ceará (Quixadá) e que está em vias de finalização.
Distribuirei a exposição em dois momentos: no primeiro, tratarei dos sentidos de ensino de história e de formação do historiador. Em seguida, exemplificarei tal relação em manuais de Introdução à História, produzidos no século XIX, na Alemanha e na França. Concluo a fala, transformando o título – “O ensino de História e a formação do Historiador” em uma questão e um convite.
Ensino de história e formação do historiador
O que entendemos como formação do historiador? Aliás, o que é ser historiador? Há anos que trabalho com uma noção de identidade difundida por Claude Lévy-Strauss (1977) de que o “ser” historiador realiza-se pela auto-definição e pelo reconhecimento dos seus pares – velha lição ainda válida em tempos pós-modernos.
Essa definição nos leva à compreensão de que a formação do historiador, ou seja, o processo de assunção de uma pessoa ao papel social de historiador pode durar anos e até mesmo décadas. Tal formação incorpora os modos pelos quais ele constitui a sua consciência histórica que ocorre, principalmente, na sua infância e adolescência, ou ainda, em casa, na comunidade, na escola junto aos professores (inclusive de História).
A formação também depende das instituições historiadoras das quais ele participa. No passado distante, os Institutos Históricos, Academias de Altos Estudos, Faculdades de Filosofia, e no passado recente, os cursos de graduação e de pós-graduação na área de História.
Quanto ao ensino de História, em que sentido utilizamos a locução cotidianamente? Ensino é entendido em função das disciplinas fundadoras da Pedagogia, das quais fazemos uso nas tarefas educativas – Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, entre outras. Ensino também depende das nossas concepções e projetos para o mundo que nos cerca. Por tais condicionantes, costumamos entender ensino de história como processo de transmissão, aquisição, transposição, apropriação, construção de modos de agir, pensar e sentir, padronizados, ou seja, processos de criação/contestação de cultura, ou ainda, processos de socialização.
Que relações, por fim, podem ser estabelecidas entre formação do historiador e ensino de história? Penso que o título sugere uma relação necessária. Mas sugere também uma provocação. Duas entre várias teses podem ser desenvolvidas a partir do título: a primeira é a de que o ensino de história é processo fundamental a ser inserido nas estratégias de formação do historiador, notadamente, a estratégia da escolarização universitária. O título, entretanto, pode sugerir uma segunda tese bastante antipática aos ouvidos dos presentes: não há nenhuma relação entre ensino de história (escolar) e formação universitária do historiador.
Não faremos opção neste momento. Buscaremos uma resposta no tempo. Refletiremos sobre a relação ensino de história e formação do historiador em época muito longínqua – o século XIX –, em países muito distantes – a Alemanha e a França –, em concepções de história, aparentemente, ultrapassadas – o historicismo e o cientificismo –, em um gênero historiográfico, aparentemente, inexistente no ensino superior – o livro didático –, em uma disciplina fundamental para a aquisição dos rudimentos do historiador moderno – Introdução aos Estudos Históricos.
Ensino de história nos livros didáticos de Introdução à História
O livro de Introdução à História é um impresso que sintetiza os rudimentos do ofício do historiador para um suposto leitor que se inicia nos estudos da ciência da História em um curso de nível superior. Esse tipo de publicação começou a ganhar identidade com a introdução do saber histórico nas universidades, e os primeiros exemplares do gênero tiveram origem na Alemanha e na França, na segunda metade do século XIX: Grundriss der historik de Johan Gustav Droysen (1858), Lhrbuch de historischen Méthode und der Geschichtsphilosophie, de Ernest Bernheim [1895] e a Introduction aux études historiques, de Charles-Victor Langlois e Charles Seigbnobos (1898). Mas, porque tratar desses manuais?
Tais escolhas não são aleatórias. Elas estão relacionadas a tempos e espaços onde a história ganhou foros de curso de formação superior, onde se empregou, por exemplo, o título de licença docenti, onde se compilou, por fim, as regras necessárias ou reconhecimento do historiador como tal.
Estas regras foram empregadas na consolidação do campo e, sobretudo, para distinguir o historiador de formação e ofício do historiador autodidata e até do charlatão. Migraram pelo mundo, extrapolaram o ocidente. Até mesmo o Japão e a China fizeram uso, por exemplo, do livro de Bernheim no trabalho de iniciação aos estudos históricos. (cf. SATO, 2006, p. 158-159). Vejamos agora se os referidos autores abordam o tema do ensino de história e como relacionam o ensino de História à formação do historiador.
A Enciclopédia metodológica de Droysen
Johann Gustav Droysen (1808/1884) foi professor em Kiel, Jena e Berlin e assistiu às aulas de Filosofia da História de Hegel e propôs-se a superá-las com pressupostos kantianos. Sua importância nos estudos teórico-metodológicos de História se deve à tese-chave que ele estabeleceu para o historicismo – a idéia de compreensão – e ao fato de ter sistematizado os procedimentos metodológicos empregados pela hstoriografia da época, elaborando uma epistemologia para a História. (cf. Rüdiger, p. 22; Cremonezi, p. 2007, p. 19).
Droysen foi um crítico dos métodos de entender o processo histórico e de escrever a história com base na teologia, na filosofia da história e nas ciências naturais. Os dois primeiros, difundidos pelos iluministas do século XIX – Hegel –, por exemplo, eram excessivamente apriorísticos e o último, difundido por autores como Buckle, eram excessivamente empriricistas. O autor alemão propunha um método tripartite. O primeiro elemento era o objeto da história; o elemento material (a sistemática) – os restos que o mundo humano do passado nos legou. Ao historiador caberia compreender investigando, ou seja, conhecer, apreender, reconstruir as formas com as quais os homens modelam e modelaram a natureza em benefício do aperfeiçoamento humano, bem como as resultantes dessas forças (edifícios, cidades, estados, religiões, lei, direito, Constituição, família, Estado etc.).
O segundo componente do método eram para Droysen os procedimentos, ou seja, a metódica, que abrange a heurística (organização das fontes – restos, monumentos), a crítica (de autenticidade, veracidade, por exemplo) e a interpretação. O terceiro era a escrita propriamente dita. A assim chamada “tópica” prescreveria formas de exposição histórica – investigante, narrativa, didática e discursiva.
Nesta fala, não cabe fazer a crítica às concepções teórico-metodológicas da obra que veicula essa epistemologia histórica. O livro, de nome Histórica: lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de La historia reúne as lições produzidas em 1857/1858 e editadas em 1857/1858 e 1937 – quando foi acrescentado o capítulo referente à Tópica. Aqui apenas anunciamos o que e como o autor aborda o tema do ensino de história.
História e educação histórica
Na Histórica o ensino de história é abordado, pelo menos duas vezes. Já na introdução o autor adverte. A noção de história difundida nos colégios – correspondente ao que conhecemos no século XIX como ensino secundário – é bastante redutora: “os acontecimentos mais importantes de todos os tempos, especialmente, os acontecimentos políticos” (Droysen, 1983, p. 5). Não bastasse o pobre sentido veiculado nos colégios, o estudo da história na Universidade não fazia mais que aprofundar e especializar essa noção – por meio de disciplinas como História Antiga, História da Idade Média Alemã –, acompanhada de algumas técnicas de investigação e crítica de fontes.
No ensino superior, portanto, para Droysen, deve-se avançar para além do estudo do “acontecido”. Estudar a relevância, as relações com outros conhecimentos sobre o homem, a especificidade da tarefa da história e do historiador (limitações e competências), bem como a sua fundamentação teórico-metodológica. Droysen está preocupado, sobretudo, com a imagem que as outras ciências constroem da História.
Em síntese, neste primeiro momento, o ensino de história na escola é diagnosticado como uma prática empobrecida (acontecimentos mais importantes e de caráter político) que tende a contaminar parte dos estudos responsáveis pela formação do historiador.
Na última parte do capítulo, entretanto, o ensino de história transforma-se em protagonista. A Tópica , como já anunciamos, trata dos resultados da investigação histórica, ou seja, trata da exposição histórica. Para Droysen, a exposição histórica não é apenas elucidação e explicação – não é invenção do passado. Exposição histórica é também enriquecimento do presente. Há várias formas de expor e todas elas dependem da intenção do investigador, que para o autor são quatro: 1. apresentar a investigação realizada; 2. mostrar, passo a passo como as coisas realmente aconteceram; 3. converter o resultado da investigação (o que realmente aconteceu) em “convicção geral”; 4. basear-se na história para a tomada de decisões presentes e futuras. É justamente essa terceira intenção de uso que corresponde ao ensino de história. Trata-se da forma de apresentação “instrutiva” ou “didática”.[1]
Lo que fue no nos interesa porque fue sino porque, em cierto sentido, continúa siendo al seguir influyendo, porque se encuentra em todo el contexto de las cosas que llamamos el mundo histórico, es decir, ético, e cosmos ético. Constituye nuestra vida espiritual, nuestra cultura, el que conozcamos este gran contexto y nos sepamos em el; y solo podemos saberlo y tenernos em el presentes em el epítome de los pensamientos que son su contenido y su verdad. (Droysen, 1983, p. 340).
Droysen deposita no ensino de história uma função fundamental: a própria educação humana ou a direção do processo de humanização. Educação humana não significa existência ou apropriação de “grande variedade de habilidades, necessidades altamente desenvolvidas”, como os estudos astronômicos, matemáticos e artísticos de alguns povos da antiguidade. A esse conjunto de competências Droysen chama de cultura.
Educação é processo de humanização, de superação, por exemplo, do egoísmo e do exclusivismo, presente nos povos cultos da antiguidade. Educação é aquisição do “capital ético dos passados vivenciados”, é reconhecimento, por exemplo, de valores universais como o da liberdade humana, cunhados pelo espírito da Reforma. O poder didático da história reside, exatamente, nessa capacidade de dar a conhecer o processo de refinamento do gênero humano e de aquisição das instituições que refletem ideais de cada época.
Anunciamos acima que o ensino de história é uma das formas de exposição dos resultados da investigação histórica com a finalidade de converter esses resultados (o que realmente aconteceu) em “convicção geral”, ou seja, em valores universalmente válidos (embora não válidos para todo o sempre). Como então distribuir tais conteúdos na formação das crianças e jovens? Droysen recusa-se a oferecer detalhes. Mas aponta diretrizes curriculares. Para o primário e o ensino nos colégios, a História seria um estudo transversal. Para a universidade, uma especialidade – o estudo disciplinarizado da História. Do primário, porém, Droysen oferece assuntos e fontes. Aí, o ensino deveria contemplar matérias especulativas, físico-matemáticas e, obviamente, História. Se lembrarmos as críticas ao método histórico do início desta exposição, perceberemos que o autor sugere a inclusão de saberes fundados na especulação e na empiria. Dizendo de outro modo, saberes resultantes de condições apriori e aposteriori.
[...] por el árido esquema de nombres y fechas, que muy equivocadamente se considera em los exámenes como la suma del conocimiento y de la educación histórica, no vale la pena que la juventud se ocupe tanto tiempo de ella y menos aún por la serie casual de datos políticos externos, cuyo saber documenta la educación histórica. Uma parte mucho más grande y esencial de la enseñanza de tipo histórico es aquélla que considera la vieja literatura, y también la que se ocupa de la religión y hasta de la gramática y de las disciplinas matemáticas. O, dicho más corretamente: hemos hablado de los três grandes círculos científicos: del especulativo, del físico-matemático y del histórico. Toda buena enseñanza, aligual que uma buena comida, se basa em el hecho de que todos os muchos elementos nutritivos estén mezclados, y así la escuela cultiva estas três corrientes, cualquiera que sea la proporción em la que estén meclados, sea que la gramática y la matemática den preferência al elemento lógico, y em la ensñanza de las ciências naturales y de la física, a lo empírico-observable: tampoco em ela falta el elemento histórico y quizás precisamente estas cosas son compreensibles para la juventud, por lo pronto, solo desde su costado histórico. Ele captarlas como ciências separadas e independientes pertence a uma edad posterior y más madura y nada más absurdo que querer exigir de los jóvenes espíritus esfuerzos y pretender darles placeres que requieren como condición la pubertad espiritual de la que carecen. (Droysen, 1983, p. 380).
O importante é que o ensino de história atravesse todos esses saberes, apresentando os “grandes tipos essenciais” [2] colhidos no desenvolvimento humano e que podem muito bem ser encontrados, por exemplo, na Bíblia e na literatura de Homero:
(...) al menos los grandes tipos esenciales puede y tiene que darlos em la enseñanza. la lectura de la Biblio y, com ello, la historia judia y el comienzo de la Cristiana , ofrece uno de estos tipos esenciales. En la Biblia miesma se habla suficientemente de los griegos y romanos como para poder comunicar lo más esencial acerca de ellos. Y si a los niños de las aldeãs, tal como sucede com razón, se les cuenta algo de Homero y de las guerras persas, algunas historias de la antigua época romana, ellos entonces no solo habrán de conocer algo de estos grandes tipos, sino que para ellos habrá de resultar uma espécie de representación sincronística de La época anterior a Cristo y yna percepción del espacio histórico y de los estádios temporales. El que se les diga también lo más importante de la historia pátria, de Carlomagno, de las Cruzadas, de la Reforma , de la hstoria del nuevo Estado alemán desde los grandes príncipes electores: todo esto les proporciona uma experiência y percepción internas adecuada para sus condiciones simples. (Droysen, 1983, p. 381).
Por fim, qual a relação dessa idéia de ensino de história com a formação do historiador? Essa não é uma questão explícita do livro de Droysen. Mas, podemos concluir que se é fundamental ao historiador de ofício e formação acadêmica conhecer a relevância, as relações com outros conhecimentos sobre o homem, a especificidade da tarefa da história e do historiador (limitações e competências), a sua fundamentação teórico-metodológica – como anunciamos acima –, cabe ao historiador, em fim, conhecer a importância estratégica do ensino de história para a elaboração de uma consciência histórica. A História é elemento de humanização, mas também constrói identidades e orienta a intervenção no real, visando o aperfeiçoamento humano. Nas duas dimensões, presente e futuro, o ensino e a aprendizagem da história estão presente. Vejamos agora essa mesma relação no livro didático de Introdução à História mais famoso da França.
A Introdución aox études historiques de Langlois e Seignobos
Manuais de Introdução à História também foram produzidos na França, na segunda metade do século XIX. O mais conhecido deles foi a Introduction aux études historiques – a pedra angular da chamada Escola Metódica tão criticada pela primeira geração da Escola dos Annales.
A exemplo da Histórica de Droysen, o livro não era um tratado de Filosofia da História e nem um resumo da História universal, como poderia sugerir o título. Tratava-se de um ensaio sobre o método das ciências históricas. A Introduction nasceu das aulas ministradas na Sorbonne aos iniciantes do curso de História em 1896/1897. Seus autores, Charles Victor Langlois (1863/1929) e Charles Seignobos (1854/1945), instituíram, de forma didática, as etapas a serem percorridas pelos que desejavam produzir conhecimento histórico de forma científica. (cf. Freitas, 2007, p. 258-284).
A Introduction, da mesma forma, também contemplava discussões epistemológicas e orientações metódicas relativas à operação histórica: análise (críticas externa e interna) e síntese (agrupamento dos fatos e exposição, por exemplo). No entanto, diferentemente de Droysen, Langlois e Seignobos não estavam empenhados na divulgação de uma proposta exclusivamente compreensiva e engajada da História.
Para os autores franceses, a finalidade da História não era agradar, comover ou estabelecer normas para a intervenção no cotidiano. A história apenas dá a conhecer. É um instrumento de cultura intelectual. Uma arma contra a credulidade ingênua das pessoas, contra as analogias biológicas que explicam o processo de transformações humanas, enfim, é um instrumento de alteridade – diante das diferenças entre as sociedades (Langlois e Seignobos, 1992, p. 244 e 256).
Não obstante as diferenças, o ensino de história ocupa uma parte do manual. Ele compõe o apêndice intitulado “O ensino secundário da História na França”. Por que os autores abriram espaço para o tema?
A História metódica na educação dos franceses
Uma resposta hipotética seria: os autores tratam de ensino de história porque a metodização do ofício só se complementa com a extensão e o bom uso dos procedimentos científicos, no caso, a extensão a todos os profissionais de história e ao grande público consumidor dos resultados da investigação metódica. A segunda resposta também poderia ser: a episteme e a metodologia histórica são tão avançadas que devem ser transferidas ao ensino de história.
Na verdade, quem escreve sobre ensino de história é Charles Seignobos, que tentou sistematizar uma nova pedagogia histórica (teoria do ensino de história) em curso na Sorbonne. Mas, as diretrizes dessa pedagogia encontram-se no apêndice à Introduction. Quais são elas?
Em primeiro lugar, a crítica ao ensino de história nos liceus do seu tempo – a escola secundária francesa: o trabalho do professor era ler uma série de fatos (lição). O papel do aluno, escutar, escrever (tomar notas), e narrar o escutado (redação). A aprendizagem era mediada pela memorização e o exercício (ditado). E a avaliação reduzia-se à interrogação oral sobre o sumário (lido pelo professor) e à redação (anotada pelo aluno). Os livros didáticos constituíam-se da mesma matéria verbalizada pelo professor. Reuniam uma série de nomes próprios e datas, guerras, tratados, reformas e revoluções. (cf. Langlois e Seignobos, p. 263). O que os autores propunham, então?
Depois do diagnóstico, o prognóstico: os metódicos sugeriam uma renovação em termos de pedagogia e de técnica. Seria necessário discutir a “organização geral” (finalidades, utilidade), a forma de escolha e a ordem dos conteúdos. Seria fundamental também discutir os processos de ensino (atividades de alunos e professores, recursos materiais, entre outros). Assim, os autores propõem a extinção do caráter passivo do aluno. Sugerem a análise e a descrição de textos e gravuras, a elaboração de mapas quadros sincrônicos, cronológicos e comparativos entre fenômenos de diferentes sociedades, estratégias que introduzem o hábito de empregar termos precisos.
Por fim, o anúncio de uma nova finalidade para o ensino racional da história. A História ensinada é um instrumento de cultura social. Ela dá a conhecer os fenômenos sociais e leva à compreensão das suas modificações e da sua evolução: “Toutes ces acquisitions rendent l’élève plus apte à participer à la vie publique; l’histoire paraît ainsi l’enseignement indispensable dans une société démocratique”. (Langlois e Seignobos, p. 267). Observem este fragmento da tradução brasileira:
O papel da história na educação não é ainda suficientemente compreendido por todos os que a lecionam. Mas todos os que meditam a esse respeito são unânimes em encarar a história como um instrumento de cultura social. O estudo das sociedades do passado faz que os alunos entendam, com exemplos práticos, o que é uma sociedade, familiariza-os com os principais fenômenos sociais e com as diferentes espécies de usos e de instituições, cujo conhecimento, pela observação da realidade atual, é muito difícil e desaconselhado pela prática; mostra-lhes, pela comparação de usos diferentes, os caracteres desses usos, sua variedade e suas semelhanças – O estudo dos acontecimentos e das evoluções torna-lhes familiar a idéia da transformação contínua das coisas humanas, salvaguarda-os do medo injustificável das mutações sociais; retifica-lhes a noção de progresso. (Langlois e Seignobos, 1946, p. 231).
Expostos os significativos tópicos sobre o ensino de história, resta-nos tocar na questão principal deste texto: qual a relação entre ensino de história e formação do historiador? Para os metódicos aqui referenciados, se a história (concepções, funções e práticas investigativas) ganhava foros de ciência, o seu emprego e difusão no ensino secundário também deveriam renovar-se. A transformação, embora mais lenta e difícil no ambiente dos liceus, era uma tarefa a ser enfrentada pelos historiadores profissionais. Por isso, a pedagogia que os metódicos tentaram implantar – e que ganhou terreno a partir da reforma de 1902 – estava baseada na episteme da historiografia universitária, ou seja, no emprego do método do historiador, a crítica histórica, a crítica dos testemunhos.
As pertenças ideológicas (republicanas, nacionalistas, anticatólicas) também condicionaram a renovação do ensino em termos de métodos e conteúdos na França, é claro (as raízes clássicas, história política, narrativa, com ênfase na contemporaneidade etc.). A reflexão sobre as operações mentais da criança e do adolescente também foi uma preocupação francesa. Mas, o critério definidor dessas próprias representações, como também da natureza e da distribuição dos conteúdos e das formas de ministrá-los, foi extraído da episteme de historiador: dos passos do método histórico – análise (inclusa a crítica histórica, os processos de imaginação do acontecido) e síntese. Daí, as palavras de ordem para a tarefa de ensinar história – analisar, identificar, caracterizar, comparar, distinguir – coincidirem com as etapas do trabalho de escrita da história dos metódicos. (cf. Freitas, 2008).
Conclusão
Iniciei este texto guiado por uma provocação: que relações podem ser estabelecidas entre ensino de história e formação do historiador? A minha resposta baseou-se numa definição de historiador (construído na relação nós-outros), numa instância da formação – a disciplina Introdução aos Estudos Históricos. Fui buscar no século XIX, o século da História ou, pelo menos, o século da metodização do ofício em nível universitário. E o que encontramos? Nesta dimensão – propedêutica – o ensino de história é tema fundamental para a formação do historiador. Para Droysen, ensino e aprendizagem históricos justificam a existência do ofício – ensinar e aprender História é viabilizar o próprio processo de humanização. Para Langlois e Seignobos, ensinar História é concretizar as finalidades do saber erudito. A História é instrumento de educação social. Afasta os mitos/mentiras, difunde alteridade e ajuda a manter a democracia.
O que ocorreu no século XX, sobretudo com o recrudescimento da institucionalização da história nas Universidades foi um progressivo afastamento entre as matérias propedêuticas da formação historiadora e as discussões sobre o ensino de história escolar; ocorreu um afastamento entre os historiadores e os formuladores de políticas públicas para a disciplina História, como já foi anunciada por Jörn Rüsen, no caso da Alemanha. Vários são os indícios desse afastamento. Basta pensar na sobrevivência do currículo 3+1, das faculdades de Filosofia e nos departamentos de História contemporâneos; basta analisar o desprezo dos alunos – futuros historiadores – em relação a disciplinas como Didática, Métodos e Técnicas de Ensino, Psicologia da Aprendizagem, Estrutura e Funcionamento de Ensino entre outras; basta observar o sentimento de angústia dos professores lotados nos Departamentos de História diante das novas diretrizes curriculares que obrigam o emprego de 800 horas em atividades relativas ao futuro ambiente de trabalho do professor de história, a escola do ensino fundamental; em fim, basta observar os manuais de Introdução à História produzidos no Brasil ou aqui difundidos ao longo do século XX.
Julgamos ser necessário retomar a reflexão sobre a dimensão prática da história na formação do historiador. Afinal, fazemos história para quê? Deve haver e há um sentido mais abrangente, além da idéia de dar prazer ou transformar o mundo como afirmaram Marc Bloch e Jean Chesneaux.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O ensino de História e formação do historiador: a experiência dos manuais de Introdução à História. In: ANDRADE, João Maria Valença; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. (Org.). História ensinada e a escrita da história. Natal: Editora da UFRN, 2009. pp. 83-90.
Referências
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ISOLDI, Francisco. Preleções de introdução à história e crítica histórica no ano de 1932 na Faculdade Paulista de Letras e Filosofia. São Paulo: Piratininga, 1932.
CREMONEZI, André Roberto. O conceito de compreensão na Histórica de Johann Gustav Droysen. Santa Maria, 2005. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria.
DROYSEN, Johann Gustav. Historica: lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Alfa, 1983. [Aulas produzidas em 1857 e publicadas em 1936].
LANGLOIS, Charles Victor e SEIGNOBOS, Charles. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992.
LÉVI-STRAUSS, Claude. In: L’identité: Seminaire dirigé por C. Levy-Strauss. Paris: Bernard Gasset, 1977.
RÜDIGER, Francisco Ricardo. Paradigmas do estudo da História: os modelos de compreensão da ciência histórica no pensamento contemporâneo. Porto Alegre: IEL/IGEL, 1991.
SATO, Masayuki. Historiografia cognitiva e historiografia normativa. In: MALERBA, Jurandir. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 156-174.
SILVA, Rogério Forastieri da Silva. História da Historiografia. Bauru: Edusc, 2001.
[2] Não confundir tipos como “modelos individuais”. Droysen não prega a imitação de modelos (Césares, Fredericos) nem regras seguras para aplicação futura. Ele defende a apreensão de traços superiores, éticos que fundamentam os grandes pontos de vista, e as grandes motivações.
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