quarta-feira, 22 de novembro de 2000

A Aracaju que eu não vivi

A Aracaju que eu não vivi despertava todos os dias com o toque de corneta do Quartel da Polícia Militar. Ainda pela manhã, era invadida por imigrantes (com seus verdadeiros armarinhos ambulantes), por vendedores de verduras, de biscoitos, de cocada-pucha, de bolachões de canela e somente se recolhia por volta das vinte e uma horas, após as retretas na praça Fausto Cardoso. A cidade não era muito extensa. Trinta minutos bastavam para atravessá-la de um extremo a outro, do Iate Clube ao Mercado Municipal. Não era muito verticalizada, o primeiro "imponente" arranha-céu, de quatro andares, só começou e ser erguido no início dos anos 1950 na esquina dos atuais calçadões de João Pessoa e Laranjeiras. A Aracaju que eu não conheci também não era muito movimentada. Andava-se muito a pé e as vezes de bonde elétrico. Poucos "carros de praça" circulavam e o número de automóveis particulares era tão irrisório que a população sabia associar as "chapas" dos veículos aos seus respectivos proprietários.
Essas e outras centenas de pitorescas informações fazem parte do inventário de lembranças do senhor Murilo Melins, um fiscal de tributos aposentado que registrou em Aracaju romântica que vi e vivi (UNIT, 2000) flagrantes do cotidiano da capital durante as décadas de 1940 e 1950. Decerto, não é o cotidiano conceitual, tematizado pelos historiadores europeus da década de 1980. O livro está mais para o "dia-a-dia" senso comum, o dia-a-dia "terrantês" de Sebrão Sobrinho, o habitual, o costumeiro que, de tão repetitivo, dispensa a datação cronológica durante a narrativa. Nesse cotidiano - da cidade, não necessariamente do autor - há espaço para o trabalho (comércio, serviços) e para o lazer (bares, cinemas, clubes, cassinos, boates); para os dias comuns e para as quebras de rotina como a chegada de um circo na praça da catinga (atual praça da Bandeira) ou as comemorações ritualizadas e com calendário fixo (carnaval, São João e Natal). Tudo é contado através de textos leves e sintéticos, onde, as vezes, o autor cede à minúcia descrevendo, por exemplo, o funcionamento do "carrossel do Tobias", dos bondes elétricos ou mesmo tratando das regras de um jogo de "busca".
Pouquíssimos leitores com menos de trinta anos saberiam jogar "busca" (uma brincadeira com bolas de "gude") nem mesmo sei da possibilidade de se recuperar  o significado dessa palavra nos dicionários. Mas é exatamente a partir do resgate do sentido de algumas expressões típicas do período que o livro do senhor Melins começa a ganhar relevo entre os historiadores (cast, footing, cabaret, soiré e os menos nobres papone, busca, ponga etc.). A contribuição dessa obra para uma história social, cultural ou mesmo do cotidiano de Aracaju (em versões marxistas ou foucaultiana),  avança do vocabulário à diferenciação  entre os pobres e os bem nascidos. Essa distinção é expressa no livro através da descrição dos espaços de moradia, trabalho e lazer, dos produtos consumidos (roupas, comidas, perfumes) e até mesmo das parceiras escolhidas para o sexo. De forma genérica, devem os historiadores anotar e explorar algumas fontes apontadas no livro como o senhor Caio Francisco de Matos que há setenta e um anos assiste da sua cadeira de engraxate às transformações fisicas e humanas do centro de Aracaju, como também, as mais de quarenta fotografias (de época em sua maioria), retratando pessoas, eventos e fachadas (cinema Guarany, hotel Marozzi, rua João Pessoa etc.). O historiador também deverá atentar para a variedade de temas de pesquisa sugeridos pelas crônicas entre os quais merecem destaques as histórias do transporte coletivo urbano, da publicidade e da saúde pública. Sobre esse último, o autor informa a existência de um gueto de tuberculosos  e sifilíticos localizado nas imediações da rua Siriri com a avenida Pedro Calazans que conservara, até então, o sugestivo nome de "curral".
Antes de passar a usufruir de Aracaju romântica, os leitores deverão enfrentar as insuficiências que caracterizam a maioria das produções locais. Os problemas estão na revisão ortográfica, na identificação das fotografias e na   colagem do corpo textual. Seria interessante rever esses pontos antes de uma segunda edição (penso que a primeira deverá esgotar-se em breve). Entretanto, quem comprar o livro deverá superar tais obstáculos, principalmente quando constatar que eu não cheguei a comentar sobre 30% das crônicas reunidas pelo autor. Eu que não vivi a Aracaju de cinqüenta anos atrás me senti gratificado com a leitura. Para aqueles que experimentaram o cotidiano da cidade nas décadas de 1940 e 1950, além de compartilharem das imagens selecionadas, não será difícil imaginar estar ouvindo "Moonlight serenade", "Alguém me disse", "Perfídia" ou  sentindo, durante a leitura, "uma mistura de fragrância dos bons perfumes Chanel n.º 5, Five o'clock, Je revien ou Ma griffe". Aracaju romântica que eu vi e vivi é um estimulante para os sentidos de todos os barbosopolitanos.
Para citar este texto:
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Aracaju que eu não vivi. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 6-6, 22 nov. 2000.

Um comentário:

  1. Eu ainda alcancei Aracaju, ñ igual como Murilo alcançou, uma capital pacata com toques de cidade interiorana mais avançada e q, quem viajasse pra outras capitais se tinha a diferença entre outras capitais e Aracaju. Hj em dia essa diferença praticamente ñ existe mais, ninguém conhece mais ninguém como era Aracaju dos anos 60 ou 1960 pra traz. Hj, após as 22 horas quem tiver na rua da Frente, ñ se ouve mais aquele barulho das ondas do mar da Atalaia nova, nem mesmo quem mora na Barra. Aracaju hj tem inveja de RJ e SP e é trouxesse quem tiver nesses grandes centros urbanos, até mesmo Salvador, sentir saudade da tranquilidade de Aracaju, seu silêncio, carroças no lugar do automóvel, pois isso de Aracaju se acabou. Eu mesmo gostei de Aracaju mais daqueles tempos, tanto assim q, quando viajei pra outras capitais como RJ e Salvador, sentia saudade dos ares bucólico de Aracaju. Hj é besteira essa saudade em larga escala. Sente saudade, mas, ñ de uma forma doentia como era naquelas épocas porq Aracaju ñ é mais aquele Aracaju

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