Detalhe de figura zoomorfa, descoberta que ilustra a capa de Canindé: Revista do Museu de Arqueologia de Xingó. |
O tema e o livro são extremamente oportunos e não é difícil justificá-lo. A "Pré-história" já é matéria universitária e o seu conteúdo será introduzido no exame vestibular. Além disso, é hora de desmontar a idéia, em voga nos ensinos médio e fundamental, de que a "vida inteligente" se inicia por aqui a partir da chegada dos povos europeus. Os "índios" podem não ter deflagrado o "processo civilizatório" mas, é evidente, possuem uma experiência de vida e esta merece ser narrada.
Em se tratando de livro didático, os enfoques sobre os pré-cabralinos são raríssimos. Deve-se, por justiça, considerar as informações contidas na História de Sergipe de Laudelino Freire (1898), que os descreve genericamente como nômades, caçadores, "geralmente brandos e tratáveis", agrupados próximo aos rios São Francisco e Real. Nos trabalhos didáticos que se seguem o quadro não se altera (Meu Sergipe - Elias Montalvão, 1916; História de Sergipe - Acrísio Torres, 1967) e somente nos anos noventa desse século uma especialista sobre a temática indígena, Beatriz Góis Dantas (1991) vai esclarecer, entre outras coisas, o "modo de ser índio" (entre os Tupinambá) e noticiar as primeiras tentativas de estudo empreendidas pela UFS na região de Xingó.
Professor Fernando Lins de Carvalho e docentes da rede municipal de Canindé do São Francisco-SE, durante oficina pedagógica. Revista Canindé, n. 2, p. 324. |
O primeiro capítulo introduz o aluno à pré-história com uma metáfora gourhaneana: a terra como um livro e os objetos como um texto que deve ser lido para o conhecimento das culturas anteriores à escrita. Noções básicas como pré-história, vestígios e sítios arqueológicos complementam a parte inicial. Ainda nesse capítulo, o autor apresenta uma periodização para a pré-história brasileira e caracteriza cada fase, destacando as controvérsias sobre a origem do homem americano, a fauna, a flora, o clima e os tipos de artefatos recolhidos. A partir daí, centrado principalmente na cerâmica, o autor vai caracterizar as diversas tradições dominantes em várias regiões do Brasil. Vale ressaltar a distribuição de ilustrações (fotografias, desenhos) em cores retratando artefatos e as tarefas cotidianas dos arqueólogos, fluxogramas e quadros explicativos enfatizando o vocabulário técnico utilizado.
O segundo capítulo trata especificamente de Sergipe. Aborda a experiência pré-cabralina sintetizada em três tradições. A primeira, cultura Canindé, constituída por grupos de caçadores, coletores e pescadores que ocuparam área correspondente ao município de Canindé do São Francisco há aproximadamente nove mil anos. A cultura Aratu, com vestígios que indicam a presença entre os séculos VII e XVII, povoou o litoral e a região central (Pacatuba, Riachuelo, Santa Luzia do Itanhy, Cristinápolis e Frei Paulo) e era também composta por caçadores-coletores que, posteriormente, desenvolveriam uma rudimentar agricultura. A mais recente, a cultura Tupiguarani, ocupou regiões de mata Atlântica entre os séculos IX e XX. Seus vestígios foram encontrados no município de Pacatuba.
Escavação em quadrícula do Sítio do Justino. Canindé do São Francisco-SE. Revista Canindé, n. 2, p. 254. |
Mas há também outro ponto importante a considerar, que é o aspecto da destinação da obra. O autor não delimitou claramente os objetivos e a clientela (o apresentador é quem os estabelece). O livro seria mesmo um instrumento didático a ser utilizado pelos alunos do ensino médio? Tenho dúvidas a esse respeito. E os senões advêm principalmente de questões didático-pedagógicas e de conteúdo (especificamente na exposição destes).
Fazer livro didático não é obra simples e sobre um tema como a pré-história, principalmente (que o digam os livros já existentes no mercado). Esse não é o primeiro caso de choque de perspectivas entre autor e clientela, ocorrido na bibliografia local e não será o último. Primeiro tem-se o fato de que a obra produzida para "leigos" deve decodificar, ao máximo, alguns "segredos" do ofício do pré-historiador. Deve, ainda, explicitar as formas como o conhecimento é produzido, os objetivos e, mais importante, as limitações dessa forma de saber. Também é preciso sugerir (ou seria mesmo convencer?) o aluno da necessidade do estudo da pré-história. Ela tem mesmo uma função? (não tenho dúvidas sobre isso). Para cumprir essa missão, talvez fosse oportuno, na obra em exame, estender um pouco mais o texto inicial esclarecendo, além dos conceitos básicos, as ciências que medeiam os estudos sobre a pré-história, as fontes, os métodos, as técnicas e o caráter estritamente hipotético-dedutivo das conclusões sobre o tema. Depois disso, sim, poderia ser apresentada a periodização.
Outra questão diretamente ligada a problemas didático-pedagógicos refere-se aos exercícios dispostos como apêndice. A estratégia do "complete a frase" está em desuso. Como instrumento didático, os exercícios devem superar o objetivo de "reter conteúdos". Devem estimular o aluno à compreensão, à investigação e (por que não?) à construção de hipóteses. Não há receitas prontas mas a idéia do exercício é também desmistificar o trabalho do pré-historiador e evitar o alheamento do aluno em relação ao livro, seja por causa do imperativo da autoridade (do autor) ou mesmo pela ausência de elementos que obstem a capacidade do leitor de imaginar a experiência dos pré-cabralinos.
Em relação à disposição dos conteúdos há também alguns reparos a fazer. Sabemos que a narrativa da experiência humana anterior aos portugueses apresenta algumas peculiaridades impostas pelos métodos e fontes de pesquisa. Uma delas diz respeito à impossibilidade de "historicizar" práticas e representações de culturas em territórios muito extensos, vivenciadas em escalas de dezenas de milhares de anos, da mesma forma com que convencionalmente procede o historiador (progressivamente). Mas não seria de todo prejudicial para os conteúdos, notadamente no segundo capítulo, se fossem enfatizadas menos as caracterizações, classificações e comparações dos vestígios entre culturas e ganhassem um pouco mais de relevo as conclusões (mesmo que hipotéticas) sobre a vivência dos homens "pré-históricos".
Observe-se que o texto torna-se mais prazeroso e inteligível quando essa estratégia é posta em uso ainda na primeira parte do segundo capítulo, na abordagem da dieta alimentar e dos rituais funerários. Para os fins propostos seria oportuno, em lugar da descrição, a narração, com vasta utilização de ilustrações (desenhos e fotografias) representando cenas de um provável cotidiano dos homens pré-cabralinos, relacionadas aos diversos vestígios listados no decorrer da pesquisa tais como: homens semeando, colhendo, arando, pescando, limpando ostras, enterrando, adornando, polindo, quebrando, habitando terraços, construindo moradias, migrando... etc. O recurso visual ajuda a cobrir algumas lacunas comuns em pesquisas do gênero. A própria capa do livro é um exemplo de como a ilustração pode servir de introdutório à compreensão do trabalho do pré-historiador bem como às formas indiretas pelas quais os homens pré-cabralinos registraram a sua existência.
Alunos de graduação da UFS em trabalho de campo no Sítio Jerimum. Revista Canindé, n. 2, p. 324. |
A tarefa da crítica é antipática por natureza, pois só pode ser exercitada após a elaboração da obra. Mas fica, assim mesmo, assinalada a minha contribuição para uma reflexão sobre o livro didático de história. Mesmo a meio caminho entre um complexo livro do gênero para o nível médio e um bom manual universitário de introdução à pré-história sergipana, o texto do professor Fernando Lins já começa a dar visibilidade à experiência local pré-cabralina e (por que não) a acrescentar novos traços diacríticos à sergipanidade. Isso é altamente relevante para um Sergipe que sofre grave crise de memória e identidade. Também nesse aspecto a contribuição do professor Fernando Lins à educação em Sergipe é inestimável.
Fonte das imagens
Canindé. Revista do Museu de Arqueologia de Xingó. Canindé do São Francisco, n. 2, dez. 2002.
Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Culturas proto-sergipanas. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 4-4, 05 nov. 2000. <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/culturas-proto-sergipanas.html>.
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