Raimundo Faoro (1925/2003). |
Por outro lado, a obra foi vista como uma tentativa de conciliação entre as posições de Marx e as de Weber – dialética, classe, estamento (Diehl, 1999, p. 79-80), aplaudida como a melhor macro-interpretação do Brasil (Mello, 2002, p. 138) e um exemplo notável de ciência social compreendida como totalidade (Iglésias, 2002, p. 225). Mas, há também uma faceta no alentado livro que deve ainda ser ressaltada, mesmo após quatro décadas do seu lançamento: trata-se do esforço monumental em estabelecer novos nexos e hierarquizações factuais, dando sentido a milhares de fragmentos para “abarcar, num lance geral, a complexa, ampla e contraditória realidade histórica” (Faoro, 2000, p. 2, v. 1), em outras palavras, a iniciativa de construir uma nova síntese sobre a história do Brasil.
Como documento propedêutico à escrita de síntese, o livro de Faoro oferece algumas lições. A começar pela economia da obra: como conseguiu triplicar as dimensões de um ensaio breve e conciso, que em 1958 ocupava apenas duzentas e setenta e uma páginas? Em resposta, o autor fala de “refusão” textual, e isso significa melhor esclarecimento dos conceitos, uma melhor caracterização dos acontecimentos, seja por meio da exemplificação – alongando as citações –, seja informando as datas, nomeando os atores, as instituições, e os impressos utilizados. Outra técnica de expansão empregada foi a reelaboração das introduções e o acréscimo de capítulos.
Modificações à parte, tanto o leitor comum, que torce o nariz diante das centenas de páginas, quanto o crítico do barroquismo expresso nas reedições de Os donos do poder concordam que o argumento da obra foi mantido: a idéia de que o patrimonialismo estamental, fundado no século XIV, atravessou a história portuguesa e forneceu a direção da estrutura político-social brasileira no século XX. A tese é comunicada como a execução de um mantra, dita e repetida nos quinze capítulos literalmente analíticos que configuram a obra. Na parte final, tese e fio condutor encontram-se de forma clara e distinta. A proposição de Faoro é de que a experiência brasileira não foi feudal, não foi bonapartista e nem pré-capitalista. A infraestrutura não determinou a superestrutura política. A política era autônoma. Da mesma forma, não poderia ser confundida e referida pelos teóricos como classe ou elite, tampouco rotulada de totalitária. A estrutura política brasileira foi o “estamento burocrático”: uma cria da estrutura patrimonialista transmigrada de Portugal.
Para Faoro, a sobrevivência do estamento burocrático, de 1385 a 1945, resultou na separação entre Estado e Nação e no entrave ao desenvolvimento do liberalismo econômico e político. O estamento burocrático foi tão nocivo ao Brasil que impediu, até mesmo, o nascimento de uma cultura nacional.
Por essa crítica historiográfica e sociológica, pode-se observar três significativas viradas metodológicas em Os donos do poder. A primeira diz respeito ao caráter que o fenômeno do político toma na interpretação. É, talvez, a primeira retomada de uma História política do Brasil sem os ranços da chamada História-batalha ou da História-biografia. A segunda observação, decorrente desse primado do político, diz respeito à inversão operada na estrutura marxista-leninista de explicação da experiência das sociedades. Não chega a ser uma virada “do porão ao sótão”, como referiu-se Peter Burke à História francesa das mentalidades. Mas, foi, certamente, um giro de 180 graus, da superestrutura sobre a infraestrutura, justo no período em que uma sociologia economicista estabelecia as suas bases no Brasil.
A última crítica é uma competente lição de como se deve atribuir sentido aos fatos sem se deixar mergulhar numa filosofia da História ilustrada, do tipo hegeliano. Na crítica aos marxistas e aos liberais, Faoro aponta os problemas de compatibilização da utopia do intérprete com o método interpretativo e afirma: o erro de ambos – liberais e marxistas – foi tomarem o presente – o Estado moderno – como ponto de partida e de chegada. Dado o final da história, restaria aos marxistas e liberais apenas a reconstrução da trajetória desse Estado moderno. Ora, para Faoro, essa linearidade falseia a realidade e vicia a interpretação. A utopia, nesse caso, cegou os cientistas de sua época, não permitindo avanços no diagnóstico da política e da economia brasileiras, tampouco nas propostas de intervenção. As próprias palavras do autor expressam melhor o significado dessa lição de síntese historiográfica que deve ser guardada com muita atenção pelos homens do ofício: “Sobre um mundo acabado, completo ou em via de atingir sua perfeição última e próxima, a vista mergulha no passado para reconstruí-lo, conferindo-lhe um sentido retrospectivo, numa concepção linear da História (...) Em todas essas distorções, o analista cria o modelo, teoricamente, e, para prová-lo, ajeita os fatos, os acontecimentos, em cujo apriorismo se escondem o louvor ou a censura, na prévia valoração da realidade (...) O passado tem, entretanto, suas próprias pautas, seu curso, embora não caprichoso, obra dos homens e de circunstâncias não homogêneas.” (Faoro, 2000, p. 366, 379, v. 2).
Para citar este texto:
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Raimundo Faoro: lições de síntese. Trabalho apresentado à disciplina "Leitores e Leituras do Brasil". Doutorado em Educação. PUC-SP, 10 jul. 2003.
Fonte da imagem:
Raimundo Faoro. <http://blogln.ning.com>. Acesso em: 01 dez. 2010.
Referências
BARRETO, Kátia M. Mendonça. Um projeto civilizador: revisitando Faoro. Lua Nova, São Paulo, n. 36, p. 181-196, 1995.
Para saber mais sobre Os donos do poder:
Fonte da imagem:
Raimundo Faoro. <http://blogln.ning.com>. Acesso em: 01 dez. 2010.
Referências
BARRETO, Kátia M. Mendonça. Um projeto civilizador: revisitando Faoro. Lua Nova, São Paulo, n. 36, p. 181-196, 1995.
CANDIDO, Antônio. Antônio Candido apresenta Raymundo Faoro. Estudos Avançados, São Paulo, n. 2, p. 4, nov. 1988.
CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.
COHN, Gabriel (org.). Max Weber. São Paulo: Ática, 1991.
FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados, São Paulo, v. 1, n. 1, out./dez. 1987.
__________. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958.
__________. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10 ed. São Paulo: Globo, 2000. [volumes 1 e 2]
FERNANDES, Florestan. K. Marx e F. Engels: História. 3 ed. São Paulo: Ática, 1989.
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000.
MICELI, Sérgio (org.) História das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, Revista dos Tribunais, IDESP, 1989. v. 1.
MORAES, José Geraldo Vince e REGO, José Márcio. Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1978.
PUNTONI, Pedro. A túnica rígida do passado. In: FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2000. p. 383-392.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, s/d.
Para saber mais sobre Os donos do poder:
BALBINO, Marcos Aurélio Lima. A permanência do argumento: estudo comparativo entre a 1ª e 2ª edições da obra Os donos do poder: a formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro, 2002. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – IUPERJ.
COHN, Gabriel. Persistência do geólogo pelas camadas do poder. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19, nov. 1988.
FAORO, Raymundo. Um muro secular entre a mão e a espiga. Carta Capital, São Paulo n. 13, 1995.
MELLO e SOUZA, Laura de. Raymundo Faoro: Os donos do poder. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. P. 335-355.
SANTOS JÚNIOR, Jarí dos. As categorias weberianas na ótica de Raymundo Faoro: uma leitura de Os donos do poder. Campinas, 2001. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas.
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