Uma das diferenças marcantes entre a historiografia profissional e a historiografia-memória está no fato de que a primeira aplica um modelo de inteligibilidade a cada grupo de experiências narradas enquanto a segunda, a história-memória, permite-se isentar de referenciais teóricos, periodizações lógicas ou cronológicas adotando, em contrário, o ritmo e a "caótica" temporalidade da lembrança pessoal. Dessa forma, sem os rigores do método e os escrúpulos da ciência, a historiografia-memória toma formas variadas relativas ao talento literário e às motivações de quem a produz. Missão de Pacatuba (lançado em 27/08/2000) é um exemplo emblemático dessa segunda vertente historiográfica.
O livro é uma espécie de inventário de acontecimentos, registros orais e arquivísticos daquilo que Arisvaldo Vieira Méllo julgou como mais significativo sobre a história do seu "torrão", o município de Pacatuba. A intenção do autor é contribuir para a vida literária do lugar e divulgar a experiência dos pacatubenses, principalmente deste século, marco temporal permitido pelo alcance da sua própria memória. Entre o autor e o objeto a relação é de pura afetividade. Tanto o "estado de espírito" de Arisvaldo quanto os critérios de escolha dos fatos, atores e depoimentos justificam a forma como foi estruturada a Missão de Pacatuba: do passado ao futuro. "Uma explosão de sentimentos", uma incerteza sobre o que registrar e como iniciar a escrita. Para o autor, pelo menos duas convições: o sentimento inicial é saudosista e a clientela é uma cidade de amigos.
Seguindo esse espírito, a Missão situa a origem da comunidade e a formação do município na história da conquista do território sergipano. O capítulo inicial ainda fornece dados sobre demografia, limites, primeiros povoadores (índios, jesuítas) e a transferência da sede do município para Japoatã. Como esse segmento, são poucas as narrativas de próprio punho. Os textos sobre a vida e obra do padroeiro de Pacatuba (São Félix de Cantalício), dos problemas de demarcação de terras (índios X proprietários rurais), as homenagens aos filhos ilustres, o panorama da educação e da cultura estão recheados de transcrições. Como transcrições são também publicados o Decreto de criação da freguesia São Félix (1835) e a principal delas, o Código de Posturas do Município de Pacatuba: importante documento de 1912, onde estão normatizados os costumes, as atividades produtivas, a arrecadação, o uso do público e do privado, as penalidades e tantas outras regras impostas aos moradores do lugar. Há também muito espaço para outros colaboradores, como o prefeito Luiz Carlos dos Santos, que esclarece sobre a verdadeira localização da Usina SANAGRO (Pacatuba X Japoatã); a divulgação do maior empreendimento empresarial do município (Nilton César Almeida) e também das possibilidades de desenvolvimento do ecoturismo na região denominada como "Pantanal Nordestino" (Nelson Souza Aguiar).
Quem espera uma história cronologicamente alinhada ficará desapontado. O leitor pode acompanhar alguns eventos relevantes sobre o desenvolvimento do município como a criação da imprensa, Distrito de Paz, da Comarca, da Justiça Eleitoral e ser surpreendido em seguida com a presença de trovas saudosistas sobre o local e cartas referentes à última obra publicada pelo autor (História de Pacatuba - 1987). Mas o caráter "colecionista" da exposição não desmerece o trabalho. Como já anunciei, o ritmo e as escolhas da narração estão intimamente ligados à lembrança do autor e, por conseguinte, às suas atividades cotidianas e ao seu círculo de amigos e parentes (há ênfase nos temas ligados à magistratura e constantes referências às famílias Méllo, Prado e Melo). Pode-se notar, também, o esforço do autor em buscar "verdade histórica" nos arquivos públicos, nos periódicos e em historiadores conhecidos como Clodomir Silva e Beatriz Góis. Claro que há alguns equívocos em datas consagradas, como a da expulsão dos jesuítas, troca de nome de governadores, algumas referências encontram-se incompletas e o último texto, "Fatos da história", é bastante confuso e até descontextualizado. O título Missão também é ambíguo, talvez não corresponda ao conteúdo. Mas nada é mais prejudicial ao trabalho quanto o total desleixo dos responsáveis pela revisão, edição e diagramação do livro. As margens das páginas são exíguas, a colagem impossibilita a leitura de determinados trechos e há muitos erros de digitação e concordância nominal. Esses problemas são injustificáveis diante dos recursos técnicos que possui a gráfica editora SERCORE e da relevância que têm a obra e o autor para o universo cultural de Pacatuba.
Alguns podem "torcer o bico", dizendo não ser a obra em questão um trabalho de historiador, pelas várias insuficiências que enumerei. Mas é importante ter em mente que a produção dos textos sobre história é anterior à Universidade e mesmo após o surgimento desta, vários produtos do gênero continuaram a ser elaborados por professores primários, magistrados, jornalistas, romancistas, bibliotecários, militares e tabeliães (como o autor da Missão). A maioria tem se autodenominado historiadores e a sua atividade tem sido consumida e aceita por suas comunidades de origem como "obra de história". Esses são motivos mais que suficientes para considerá-los como historiadores e acompanhar de perto a sua labuta. Além do mais, excluí-los do rol dos "discípulos de Clio" em nada ajudaria a compreender a crescente produção historiográfica exterior ao "campo profissional", em nosso Estado, nos últimos dois anos. Há "fome" por historiografia local e a Missão de Pacatuba contribui para atender a essa demanda. De parabéns, então, está o senhor Arisvaldo Vieira de Méllo.
Para citar este texto:
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Sobre a 'Missão de Pacatuba'. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 4-4, 12 set. 2000.
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