A profusão de comemorações sobre os "500 anos" e a sua conseqüente veiculação pela mídia eletrônica têm transformado o adjetivo "histórico" numa expressão bastante familiar para a grande população de não intelectuais (momento histórico, data histórica... etc.). Entre os historiadores profissionais, onde a preocupação com os critérios de historicidade é uma constante desde os primeiros passos do noviciado, não são incomuns as querelas que envolvem a classificação de algo como histórico: sítio histórico, cidade histórica, fato histórico, fonte histórica etc. É sobre esse último elemento (fonte histórica) e seus critérios de eleição, notadamente sobre a história de Sergipe, que eu gostaria de comentar nos parágrafos seguintes.
O que pode ser classificado como fonte histórica sobre a experiência dos sergipanos? Genericamente, costumamos definir como fonte tudo aquilo que pode fornecer dados sobre o passado. As fontes históricas são os materiais que medeiam, inspiram e informam acerca da vivência humana. Ocorre que esse "tudo" pode variar bastante, pois a noção de fonte está intimamente ligada à episteme do historiador. E foi exatamente o que aconteceu com a historiografia francesa (da qual nos servimos muito bem) nos últimos cento e trinta anos. Para a "Escola Metódica" (1876...), os "traços" de natureza psicológica (um relato escrito) eram fundamentais. Ricos em informações e abundantes em exemplares, as fontes manuscritas substanciavam a escrita de uma historiografia predominantemente política que encontrava o seu sustentáculo nos tratados, nas batalhas e na origem e formação dos Estados.
A partir dos anos 1930, com a "revolução" teórico-metodológica provocada pela Escola dos Annales, os historiadores passaram a narrar todo o tipo de experiência humana (não somente a atividade política). Com isso, foram ampliados, tanto o estoque de “restos”, como as possibilidades de interpretá-los. É assim, portanto, através da historicização do método, que se pode entender as diferenças entre duas clássicas definições de fonte histórica: uma afirma "a história se faz com documentos" (Langlois & Seignobos, 1898) e outra, de Lucien Febvre (1949), que "a história se faz com palavras, signos, paisagens e telhas".
Esse pequeno exemplo de mutação é suficiente para esclarecer que as fontes não estão disponíveis na natureza à espera do historiador ("como peixes na tábua do peixeiro", diria o professor Edward Carr). É esse profissional quem eleva "traços" e "cacos" ao nível de fonte histórica. Portanto, mais que interrogar onde estão e quais são as fontes da história sergipana, urge, nesse momento, compreender como se tem pensado a questão das fontes em Sergipe. Nesse sentido, um passo importante seria considerar como a constituição os repertórios utilizados pelos historiadores locais nos últimos cento e noventa anos.
Para os cronistas (1808...), narradores presos à conjuntura, descritivos, limitados a uma missão (na maioria das vezes) administrativa, as fontes estavam no depoimento oral e em suas próprias memórias e vivência, informando sobre a trajetória político-administrativa dos municípios sergipanos. As crônicas não eram construídas sobre repertórios sistematicamente organizados (no sentido atual da expressão). Daí a dificuldade de muitos em classificá-las: as crônicas seriam fontes históricas ou fontes historiográficas? Por esses e outros motivos, os textos produzidos no século XIX (M. A. Souza, C. C. Burlamaque, A. J. Travassos, J. A. Fernandes, J. J. Montalvão, A. J. Guimarães, etc.) são, em si mesmos, fontes privilegiadas sobre a história de Sergipe.
Na historiografia dos bacharéis (1891...), as fontes estavam em notas de rodapé em, pelo menos, três obras de fôlego: História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891), História dos limites entre Sergipe e Bahia de Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior (1918) e A Capitania de Sergipe e suas ouvidorias de Ivo do Prado (1919).
Nessa época, debutam as tentativas de organização de acervos e a divulgação dos primeiros "catálogos". As fontes começam a ser transcritas e publicadas na Revista do IHGS (1913...), armazenadas na “Sessão de Arquivo" da Biblioteca Pública do Estado de Sergipe e, ainda, na residência dos próprios bacharéis, como um bem privado, um trunfo reservado para o ataque ou a defesa. Por outro lado, os historiadores locais já reconhecem, explicitamente, a importância do Arquivo Público da Bahia, da Biblioteca Nacional e nos longínquos arquivos e bibliotecas de Lisboa e Madrid como valiosos guardiães das fontes sobre a história da terra.
A natureza desses testemunhos é muito mais diversificada, comparando-se ao tempo dos cronistas: fontes impressas (jornais, bibliografia especializada, legislação); manuscritos (documentos cedidos por historiadores estabelecidos no Rio de Janeiro ou recolhidos nos cartórios sergipanos, cartas de sesmarias etc.); documentos iconográficos (cartas geográficas); e, de maneira incipiente, monumentos e vestígios arqueológicos. No conjunto, tais fontes depõem sobre a trajetória político-administrativa da província, municípios, vilas e freguesias; questões referentes ao abastecimento interno, segurança, eleições, comércio e, principalmente, a formação dos nossos limites territoriais.
Com a emergência da historiografia universitária, a noção de fonte histórica, em Sergipe, foi moldada pelas escolas Metódica e dos Annales quase paralelamente. Os sopros da "metódica" ganharam relevo no início da década de 1970 através do "Projeto de Levantamento de Fontes Primárias da História de Sergipe." A idéia dos docentes envolvidos nesse trabalho era instalar no Departamento de História um super-inventário, contemplando todos os acervos arquivísticos do Estado, e o Programa de Documentação e Pesquisa História - PDPH, instalado na UFS em 1981, foi fruto desse esforço. Com tal objetivo, o Projeto acabou por transformar, efetivamente, em fontes históricas os acervos originários de instituições públicas e privadas entre cartórios, arquivos e bibliotecas.
Concluso o projeto, as fontes para a história de Sergipe passaram também a habitar o Arquivo Público do Estado, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, o Arquivo da Cúria metropolitana, a Sessão Sergipana da Biblioteca Pública Epifânio Dória, entre outros. O PDPH, são também da década de 1980 o Arquivo do Judiciário, o Arquivo Público da Cidade de Aracaju e o Centro de Microfilmagem da UFS. Este último ainda conserva a documentação recolhida em arquivos portugueses pelos professores do Departamento de História - DHI.
No mesmo período, historiadores locais já voltavam os olhos com maior atenção para o Arquivo Nacional e os Institutos Históricos Brasileiro e da Bahia. As fontes tornam-se ainda mais diversificadas com a inclusão dos acervos fotográficos. Elas também testemunham todo tipo de experiência sergipana que interessou à administração governamental (da metrópole à província), sobretudo ao poder executivo.
Fora do DHI e, ainda, sob os ventos edificantes da "metódica", testemunhamos com freqüência o processo de construção/desconstrução/reconstrução de fontes e repertórios sobre a história local. Os pesquisadores do Núcleo de Pós-Graduação em Educação (NPGED/UFS), por exemplo, não se contentam com os instrumentos de trabalho dos Arquivos e montam o seu Inventário de fontes primárias sobre a educação do Estado de Sergipe (1998/1999); o Centro de Documentação e Pesquisa sobre o baixo São Francisco constitui seu "Banco de dados de fontes orais, escritas e iconográficas sobre a história de Sergipe" (Programa Xingó, 1999/2000); a Secretaria de Educação do Município de Aracaju busca fontes sobre o Sistema Educacional da Capital (1994/2000); o Departamento de Economia levanta fontes sobre o trabalho escravo no século XIX (1996/2000); as organizações médicas (DME-UFS/SOMED) buscam fontes para a história da medicina em Sergipe (1998/1999); os profissionais do Serviço Social vão pelo mesmo caminho, etc.
Fora da academia, a sede de memória e algumas iniciativas voluntariosas também têm aumentado o estoque de fontes para a história de Sergipe. Exemplo recente foram os "Memoriais" montados pela Secretaria de Educação do Estado em alguns municípios sergipanos. Algumas dessas instituições constituem acervos eleitos por critérios pouco científicos, mas abrigam significativos repertórios privados que devem ser considerados, como as histórias das famílias fundadoras do "lugar".
Dentro do Departamento de História, a perspectiva é que os novos olhares historiográficos dêem origem a novas fontes e repertórios que por sua vez exigirão leituras mais sofisticadas. O historiador da sociedade e da cultura que trata de temas como o crime, a religiosidade, micro-poderes, sexualidade certamente utilizará como fonte os chamados "lugares monumentais" referidos por Pierre Nora: as inscrições em pedra, a arte cemiterial do Santa Isabel; os conjuntos arquitetônicos dos mercados públicos recém restaurados; as fachadas residenciais no centro da capital; e a uniformização das vilas operárias de Estância e do bairro Industrial (Aracaju).
Esse mesmo historiador deverá compreender a estrutura de alguns ritos dos lugares simbólicos como as procissões centenárias de Bom Jesus dos Navegantes em Aracaju e dos fogaréus em São Cristóvão, como também da tradicional peregrinação ao santuário de Divina Pastora. Poderá, também, ver e “ler fotos”, cartões postais e reclames publicitários preservados nos acervos particulares, no IHGS, no Arquivo Público de Aracaju e no Arquivo do Cultart/UFS; ler os gestos das imagens e a disposição do mobiliário nos museus de Arte Sacra, Histórico, Afro, do Homem Sergipano e João Ribeiro e no Memorial da Universidade Tiradentes - UNIT; ler o gesto e a disposição espacial das estátuas e bustos instalados em Aracaju desde o início desse século.
O historiador do social, além do que já se tem conhecimento, deverá dar atenção ao estoque de lembranças dos "homens-memória" de cada comunidade (sacristãos, parteiras, coveiros, professores etc.) e dos pioneiros na fundação de determinadas instituições artísticas, intelectuais, esportivas e religiosas. Será preciso consultar acervos modestamente organizados como dos sindicatos, partidos políticos, associações comerciais, associações beneficentes, fábricas, grandes propriedades rurais, famílias "tradicionais" e dos chamados "homens comuns" (todos quase que intocados até agora). Será preciso ainda não negligenciar o acervo sonoro e imagético das emissoras de rádio AM e principalmente dos verdadeiros inventários sócio-culturais da experiência sergipana contemporânea produzidos pela TV Aperipê (o programa Videoteca Aperipê Memória é somente um exemplo ilustrativo).
Concluindo, não há fontes em geral. O historiador constrói suas fontes assim como o faz em relação aos seus problemas, hipóteses e objetos. Para cada forma de conhecer há todo um inventário a ser elaborado e esses repertórios estão sempre em construção. Mas é preciso alertar ao noviciado, que apesar da ampliação do sentido de "fonte histórica", os grandes bancos de dados sobre a experiência sergipana continuam sendo as tradicionais instituições arquivísticas organizadas a partir dos anos 1970 (os livros publicados recentemente são o principal indicador). Por isso, sinto-me à vontade para afirmar que o sucesso da pesquisa histórica em Sergipe depende ainda de arquivos acessíveis e de instrumentos de consulta eficientes. É ainda o trabalho heurístico do século XIX que deve ser efetuado em nosso Estado. Mas com a dispersão teórico-metodológica e o quase desaparecimento dos profissionais da arquivística essa tarefa está muito distante.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O historiador e suas fontes. Informe Sergipe, Aracaju, p. 2-2, 01 out. 2000.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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