Entrada principal da Universidade de Bochum, onde Jörn Rüsen leciona História Moderna. |
Colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer ao Departamento de História da UFRN, na
pessoa da professora Margarida Oliveira, pelo convite e pela acolhida.
Gostaria, antecipadamente, de agradecer a presença de todos vocês, que reservam
um tempo nas suas vidas para estudar uma relação aparentemente
irracional: o ensino de história e a teoria da história.
Jörn Rüsen |
Nesta fala, darei uma noção do lugar de Rüsen nos debates sobre
teoria da história, apontando algumas das suas filiações teóricas, questões e
motivações da sua escrita sobre teoria, metodologia e didática da história.
Para tanto, farei uso de segmentos dos escritos de cinco comentadores
autorizados pela intimidade com a obra e proximidade com o autor.
Dessa forma, o texto que lerei está dividido em duas partes: 1) a
teoria da história de Rüsen frente às mutações da história na Alemanha; 2) as
tríades rüsenianas como chaves de leitura da sua teoria. Encerro a fala
relacionando duas das principais teses da sua trilogia às possibilidades de entendimento
sobre a aprendizagem e o ensino de história.
Contextualizando contextos
Temos então cinco visões de
cinco conhecedores da obra de Rüsen, resultantes de diferentes interesses e circunstâncias
que incluem, com pesos diferenciados, os debates sobre epistemologia da história
e as conflituosas relações da sociedade alemã com o seu passado recente
(nazismo, holocausto, por exemplo). É com tais ressalvas que apresento as
informações que se seguem, deixando também claro a minha atração pela vulgata
sobre o Rüsen, principalmente, no que diz respeito ao lugar do filósofo no
debate acerca da epistemologia da história na Alemanha.
A teoria da história de Rüsen frente às
mutações da história na Alemanha
A primeira tese, consensual entre os comentadores, refere-se o
fato de o historicismo ter resistido até meados do século XX como paradigma
fundamentador da história (apesar dos vários ataques sofridos, desde o final do
século XIX) e, ainda, de a teoria da história de Rüsen ter participação
significativa no desmonte dessa tradição.
Reinhart Koselleck (1923/2006) |
Martins não deixa claro se Rüsen dá continuidade ao trabalho de
Koselleck, que se torna protagonista, sobretudo em 1972, com a publicação de Conceitos históricos fundamentais:
léxico histórico da linguagem político-social na Alemanha. Mas apresenta o
nosso autor com o mesmo destaque (talvez até maior), quando afirma que “Rüsen
apresenta um sistema moderno, abrangente e coerente de teoria da história”,
desenvolvido junto a um grupo de “historiadores, filósofos, sociólogos e politólogos”
que se reuniram entre 1973 e 1988. As preocupações deste grupo – constituídas e
constituidoras da teoria de Rüsen – excedem a questão da objetividade,
derramando-se pelos “processos históricos, “teoria e narrativa da história”,
“formas da historiografia” e “método histórico” (Martins, 2007, p. 59).
É dessas circunstâncias que Martins extrai a contribuição do filósofo
para o debate contemporâneo sobre a razão histórica. Rüsen articula o
aparentemente (para o historicismo?) inarticulável: o aparato de cognição
(metodologia da pesquisa histórica) com as formas de escrita e as funções
sociais da ciência histórica. “Na abordagem sistêmica contemporânea [de Rüsen],
a função do presente, por conseguinte dos interesses ativos atuais, é
indispensável para a elaboração de qualquer saber reconhecidamente válido” (Martins,
2007, p. 59).
Vista aérea da Universidade Witten-Herdecke, onde Jörn Rüsen leciona História Geral e Teoria da História. |
Da mesma forma que Martins, Blanke enfatiza o papel das
conferências patrocinadas pela Fundação Reimers, ocorridas entre 1975 e 1988,
que se ocuparam da “relação entre parcialidade e objetividade e o significado
dos processos históricos” na transformação da historiografia alemã da tradição
historicista para a ciência social histórica (Blanke, 2006, p. 35-36).
O proeminente lugar de Rüsen neste debate é justificado por Blanke:
Rüsen sugere uma “modificação contemporânea do historicismo”. Ele fornece à
nova ciência social histórica alemã um “suporte teórico” que “modifica, expande
e critica o historicismo. Assim, a velha oposição entre explicação e
compreensão, um dos axiomas do historicismo, é dissolvida, e agora são
interpretadas como estratégias de pesquisa complementares” (Blanke, 2006, p.
38).
Para a história da historiografia (objeto do artigo de Blanke) são
duas as contribuições de Rüsen. A primeira, ligada ao projeto “Teorias da
história: contribuições para a teoria da história” (Fundação Reimers, em Bad
Homburg), é expressa na forma de uma “tipologia sistemática da narrativa
histórica”. A segunda, ligada ao projeto “Discurso histórico” (Centro de
Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld), consiste no delineamento dos conceitos
de “estruturas”, “formas” e “funções”.
Assim, uma nova história da historiografia poderia se constituir,
incorporando a “sequência lógica” de pretensa “validade universal” dos tipos
tradicional, exemplar, crítico e genético na análise da narrativa histórica
e/ou articulando os conceitos de estruturas, formas e funções que integram os
cinco elementos da matriz disciplinar.
Arthur Assis |
Ao primeiro desafio, suposta ausência de teoria e método
histórico, Rüsen responde com a criação de um conceito: matriz disciplinar.
Assim, “pretende permitir a assimilação das diferenças existentes entre as
correntes historiográficas contemporâneas e favorecer a percepção da identidade
que lhes é comum” (Assis, [2010], p. 11). Sobre o segundo desafio, a crítica à
objetividade histórica, “Rüsen enfatiza que as narrativas históricas
estabelecem com a realidade histórica, de que pretendem dar conta, uma relação
de referência diversa daquela observada em outros tipos de narrativa”: a
representação de continuidade temporal (Assis, [2010], p. 13).
Na resenha aos segundo e terceiro volumes da trilogia, a resposta
de Rüsen à ideia de narrativa histórica como ficção já fora anunciada por Pedro
Caldas (2008). Este amplia ainda mais o leque de motivações anunciadas até
aqui. Caldas sugere circunstâncias do século XIX na construção da teoria da
história do filósofo alemão ao indagar se “estaria Rüsen respondendo ao apelo
de Nietzche, ao procurar um uso da história para a vida” (Caldas, 2008, p. 6).
Ainda no mesmo texto, Caldas faz coro com os demais comentadores a respeito do
lugar de Rüsen na transformação do historicismo alemão: “Rüsen procura mostrar
a insuficiência de dois dos modelos principais de explicação histórica”, o
“nomológico e o hermenêutico” (Caldas, 2008, p. 2).
O último comentador exposto nesta fala, Martin Wiklund (2008),
situa Jörn Rüsen entre duas correntes de pensamento político e filosófico da
Alemanha: a escola de Joachim Ritter (leitora de Aristóteles e Hegel) e a
Escola de Frankfurt (Kant, Marx, Freud e Nietzsche). A primeira tendia ao “conservadorismo
cético” e a segunda ao socialismo. A primeira produzia “análises sociológicas”
e a segunda, orientada pela “hermenêutica”, ocupava-se da “história dos
conceitos”.
Martin Willund |
O que podemos perceber – pelos recortes que fiz e, ainda, através
das lentes desses cinco comentadores – é que Jörn Rüsen situa-se no debate
sobre a epistemologia histórica na Alemanha como um conciliador dialético de
diferentes tradições políticas, filosóficas e metodológicas apresentadas sob as
mais diversas dicotomias: historicismo/história social, sociologia histórica e
teoria crítica/historicismo, objetividade/política, subjetividade/validade
científica, explicação/compreensão, modelo nomológico/modelo hermenêutico.
A conciliação dialética, que responde aos diferentes desafios (o
acerto de contas dos alemães com o seu passado, a fragmentação dos objetos e
abordagens e as críticas à objetividade historicista, por exemplo) configura-se
mediante novos conceitos (matriz disciplinar, estruturas, formas e funções) e
tipologias (tradicional, exemplar, crítica e genética).
Tais contribuições sugerem novas formas de justificar a
racionalidade da ciência da história e, consequentemente, apontam novos
caminhos para se pensar a pesquisa, a escrita e o ensino da história. Mas, como
conhecer essas e outras ideias fundadoras de um novo paradigma? Uma saída é
visitar os comentadores aqui apresentados. Outra é partir para a leitura da
própria obra e voltar aos comentadores somente depois de esgotadas as primeiras
iniciativas confortáveis de compreensão. Outra, um pouco inusitada, talvez,
seria considerar o Rüsen como um filósofo da história no sentido mais odiado do
termo no Brasil. Aquele que pensa a natureza humana e, indiretamente, aponta o
sentido para a vida (que desemboca numa utopia). Essa foi a minha primeira
escolha e vou relatar rapidamente um dos seus resultados: as tríades como chave
de leitura.
As tríades rüsenianas como chaves de
leitura da sua teoria
Como ler a trilogia? Nas minhas idas e vindas a resposta surgiu
como um insigt: identificando suas
tríades. Assim, concebi três formas de conhecer sistemicamente a teoria da
história de Rüsen. A primeira é seguir os passos da sua introdução e entender a
trilogia como obra que toca em três objetos (disciplinas em nossos cursos de
formação inicial): [1] metodologia (as regras da pesquisa), historiografia (regras de escrita) e
didática [2] (regras de aprendizagem).
A segunda estratégia é fazer a leitura buscando identificar os
conceitos-chave anunciados no projeto “Estudos históricos modernos: estruturas,
formas e funções em uma perspectiva histórica”, empreendido por Rüsen junto ao “Centro
de Pesquisa Interdisciplinar de Bielefeld”. Os termos foram extraídos da matriz
disciplinar (Cf. Blanke, 2006, p. 41): “estrutura” (“ideias” ou “teorias” e
“métodos”), “forma” (de representação dos resultados da pesquisa) e “função” (função
e usos da história na vida cotidiana).
A última estratégia procura seguir a concepção de homem esboçada
por Rüsen. Aqui também a tríade impera. É o homem detentor de intelecto,
vontade e sensibilidade. Dizendo de outro modo, é homem aquele ser capaz de
conhecer racionalmente (cognição), de orientar-se no tempo e construir
identidades (política) e de convencer mediante estratégias linguísticas, por
exemplo (estética).
Assim, ideias/teorias e métodos correspondem à disciplina
metodologia da história, ao conceito de estrutura e à dimensão cognitiva do
homem. “Formas de representação” correspondem à disciplina historiografia, ao
conceito de forma e à dimensão estética humana. Por fim, as funções de
orientação e de construção identitária correspondem à disciplina didática, ao
conceito de função e à dimensão política do homem.
Conclusão: dicotomias, tríades, teses,
teoria e ensino de história.
Vimos o caráter abrangente e dialético da teoria de Rüsen por meio
dos seus comentadores. Essas características fazem de Rüsen um autor
“ecumênico”. Para as nossas pesquisas, no entanto, a importância da sua teoria
da história está nas possibilidades que ela abre para a discussão do ensino de
história dentro da teoria da história.
Essas possibilidades vocês conhecerão ao longo do curso coordenado
pela professora Margarida Oliveira. Da minha parte, gostaria apenas de
demonstrar como essa integração das três possibilidades de leitura sistêmica da
teoria da história de Rüsen pode facilitar a compreensão de algumas das suas
teses que remetem diretamente ao ensino de história tal e qual o concebemos no
Brasil: 1. a ciência da história está enraizada na vida humana concreta (onde
se localizam os seus fundamentos e critérios de racionalidade) e a essa deve
voltar (Cf. Rüsen, 2001, p. 22; 2007, p. 16); 2. é através da forma e da função
que o trabalho do historiador se completa e que o saber histórico ganha vida
(Cf. Rüsen, 2007b, p. 10).
Essas duas teses autorizam-nos a afirmar que, para Rüsen,
comunicar os resultados da pesquisa histórica às crianças e adolescentes,
auxiliando-os a orientarem-se no tempo e a construírem suas identidades é
trabalho do profissional de história. E, por fim, se o profissional de história
quiser executar essas tarefas com racionalidade (e honestidade intelectual)
deve explorar de forma equilibrada todas as potencialidades do humano. Dizendo
de outro modo, deve também o professor levar em conta as estratégias: “política
da memória coletiva [...], cognitiva da produção do saber histórico [...]
estética da poética e da retórica da representação histórica” (Cf. Rüsen, 2001,
p. 164).
Muito obrigado!
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen.
Palestra proferida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte por ocasião
da abertura do curso de extensão Curso de extensão “Teoria, pesquisa e ensino de História: para o
conhecer o pensamento de Jörn Rüsen”. Natal, 4 out. 2011. Disponível em:
<http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>.
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O livro didático ideal de Jörn Rüsen e as representações de uma didática para a história. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/o-livro-didatico-ideal-de-jorn-rusen-e.html>.
Fontes das imagens
Universidade de Bochum. Disponível em: <http://www.alemanhaporquenao>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://idw-online.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Capas da trilogia (Teoria da história) de Jörn Rüsen. Foto de Itamar Freitas. 21 mar. 2012.
Arthur Assis. Disponível em: <http://www.kwi-humanismus.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Universidade de Witten-Herdecke. Disponível em: <http://www.regiobild.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Reinhart Koselleck. Disponível em: http://www.fotomarburg.de. Capturado em: 21 mar. 2012.
Martin Wiklund. Disponível em: <http://www.humanioradagarna.se>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://idw-online.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Capas da trilogia (Teoria da história) de Jörn Rüsen. Foto de Itamar Freitas. 21 mar. 2012.
Arthur Assis. Disponível em: <http://www.kwi-humanismus.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Universidade de Witten-Herdecke. Disponível em: <http://www.regiobild.de>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Reinhart Koselleck. Disponível em: http://www.fotomarburg.de. Capturado em: 21 mar. 2012.
Martin Wiklund. Disponível em: <http://www.humanioradagarna.se>. Capturado em: 21 mar. 2012.
Referências
ASSIS,
Arthur. A teoría da história de Jörn
Rüsen: uma introdução. Goiânia: Editora da UFG, [2010].
BLANKE, Hors
Walter. Para uma história da historiografía. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoría e história da
historiografía. São Paulo: Contexto, 2006.
pp. 26-54.
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A arquitetura da teoria: o
complemento da trilogia de Jörn Rüsen. Fênix
- Revista de História e Estudos Culturais. [sdt.], v. 5, n. 1.
MARTINS,
Estevão de Resende. Historiografia alemã no século 20: encontros e
desencontros. In: MALERBA Jurandir, ROJAS, Carlos Aguirre (Org.). Historiografia contemporânea em perspectiva
crítica. Bauru: Edusc, 2007. pp. 45-67.
RÜSSEN,
Jörn. Razão histórica: Teorias da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.
______. História viva – Teoria da história III:
formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
WILKUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido
histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen. História e Historiografia. [Ouro Preto],
n. 1, p. 19-44, ago. 2008.
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