segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Pensar historicamente em John Locke?

Há quase meio século um respeitado especialista na obra política de John Locke – John Dunn – reclamava que o filósofo fora representado nas histórias da historiografia e da filosofia como pai do iluminismo, ideólogo da burguesia, precursor do constitucionalismo liberal inglês, livre pensador e populista, entre outros adjetivos.[1] Hoje, a controvérsia se mantém sobre os escritos do intelectual.
Nosso interesse, nesta aula, não é classificá-lo nem tomar partido por uma das representações anunciadas. Apenas propomos o exame da sua obra educacional sob um ângulo pouco explorado: o dos usos da história na formação de pessoas. Faremos isso mediante a leitura do Estudo [E] (1667), Sobre o estudo [SE] (1677), Ensaio acerca do entendimento humano [EAEH] (1690), Pensamentos sobre a educação [PSE] (1693), Sobre o emprego do entendimento [SEE] (1697), Esboço de uma carta de Locke à Condessa de Peterborough [ECLCP] (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e o estudo para um cavalheiro [AIALEC] (1703).[2]
Aqui, portanto, tentaremos identificar o lugar do conhecimento histórico na formação do gentleman, as formas pelas quais o preceptor e o educando poderiam dela tirar melhor proveito, bem como o entendimento sugerido em seus escritos sobre o “pensar historicamente”. Por isso, iniciamos com uma brevíssima exposição sobre o sentido de categorias-chave da sua teoria do conhecimento: “educação” (education), “mente” (mind), “ideias” (ideas), e faculdades (faculties) da mente, isto é, os poderes (powers) ou habilidades (habilities) empregados no ato de conhecer as coisas.

Instrução, faculdades e ideias da mente
O prefácio de PSE já indica que a educação tem o fim de produzir cavalheiros virtuosos, hábeis e úteis em suas diferentes ocupações.[3] É uma educação estreitamente ligada a política, remetente aos modelos clássicos, anunciados por Platão e Aristóteles[4] (ainda que sejam, as duas expressões, na obra de Locke, bastante peculiares à Inglaterra do século XVII). E isso se faz exercitando e moldando corpo e mente. Entretanto, a educação intelectual (instrução ou, no sentido atual, o estudo dos conhecimentos científico-escolares) e a educação física (natação, alimentação, entretenimento etc.) têm status inferior à educação moral. Assim mesmo, a educação moral é promovida mediante exercícios corporais, morais propriamente ditos e intelectuais que, adiante, permitirão o controle dos desejos e inclinações, isto é, a submissão, por parte do discípulo, da sua vontade à sua razão.[5] Essa capacidade de “negar” os seus próprios desejos e inclinações constitui propriamente a virtude.
Em relação à mente,[6] Locke afirma que seu lugar é o cérebro (brain) e sua natureza análoga a “um papel em branco (white paper)[7] ou “cera de abelha” (bees wax)[8] quando se nasce.[9] A frase fez época e ainda é empregada, embora represente um grande problema, já que o “coração do debate, a existência ou a não existência de ideias inatas, escapa à experiência empírica”.[10] Com ou sem argumento de autoridade ou estratégias retóricas, o fato é que Locke atribui à mente[11] o processamento de todas as ideias impressas mediante reflexão (reflection) e sensação (sensation).[12]
No EAEH, a mente é, então, estruturada sob três grandes poderes: percepção (perception - poder de sentir e de refletir as ideias), retenção (retention – poder de manter as ideias simples), discernimento (discerning - poder de distinguir ideias).

A respeito das ideias, é também importante rememorar o seu caráter de “objeto ou material do pensamento.”[13] As ideias chegam à mente através da sensação ou da reflexão e podem ser do tipo simples (simple ideas) e do tipo complexo (complex ideas). As ideias simples são percebidas passivamente pela mente, mediante a impressão que os objetos causam em um sentido ou em vários sentidos externos. As ideias complexas, produzidas por meio da “repetição”, “comparação’ e “união” dessas várias ideias simples,[14] podem ser dos tipos “modos”, “substâncias” e “relações”.



Inventariados os sentidos de educação, mente, ideias e faculdades, podemos encerrar essa rápida introdução com as palavras do próprio filósofo que bem explicam, ao seu modo, o ato de conhecer:
Os passos pelos quais a mente alcança várias verdades
Os sentidos inicialmente tratam com as ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes.Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se enriquecendo com ideias e linguagem, materiais com que exercita sua faculdade discursiva. E o uso da razão torna-se diariamente mais visível, ampliando-se em virtude do emprego desses materiais.[15]
Se até agora não conseguiram "fixar" e nem "compreender" os conceitos básicos propostos nesta primeira parte da aula, sugiro que se submetam a uma experiência, em parte, lockeana, assistindo ao vídeo que se segue. Mediante o trabalho da "visão" e da "audição", acompanhando o "movimento" na lousa virtual, exercitando a "memória" com a apresentação de "uma ideia após a outra", o "encadeamento" e a "repetição" deliberada, procedida pela professora "imaginada", é possível que o "entendimento" de vocês seja enriquecido o suficiente para aproveitarem melhor a segunda parte do nosso trabalho. Aproveitem também para familiarizarem-se com esse lindo idioma que é o espanhol. 

Se, por outro lado, já retiveram significativamente o conteúdo inicial da aula, "pulem" o filme e sigam com a leitura, que agora trata, especificamente, dos usos da história na formação de pessoas.




A história na moral empírica de John Locke
Vimos que a educação, para Locke, é uma espécie de doma a da vontade e das inclinações humanas. Evidentemente, é um tipo de controle com finalidade específica: a formação do homem bom (virtuous), útil (useful) e capaz (able) em suas tarefas de cavalheiro.[16] Mas em que medida o conhecimento histórico pode contribuir para essa tarefa? Locke exerceu a atividade de historiador?
A condição de historiador em Locke é problema de muitos e já se gastou bastante energia para convencer aos pares, sobretudo da filosofia política e da história política, de que ele era ou não historiador. No Brasil, houve quem o defendesse como historiador, mas do tipo especulativo, que periodizou a experiência humana de forma tripartite: época do “ouro”, da “fantasia” e da “apropriação ampliada.”[17]
Fora daqui, especialistas divergem, principalmente, acerca do caráter dos seus “tratados de governo”: (1) obra que marca fim do século XVII e não início do século XVIII e, ainda, sem caráter historiográfico;[18] (2) obra que não apenas se apropria dos historiadores de sua época (Jean Bodin – 1530/1596) – separar história humana, eclesiástica e natural[19] e interpretar os fatos a partir dos seus contextos), mas que apresenta uma alternativa metodológica para a pesquisa histórica (o exame da mudança dos sentidos das palavras no tempo e a comparação transcultural);[20] e (3) obra que oscila entre o emprego da "lógica ou julgamento qualitativo" e das "conclusões históricas ou empíricas”.[21]
De fato, se observarmos as mais significativas tentativas de classificação das ciências produzidas por Locke veremos que a presença da história oscila. Em 1678 ele dividiu as principais áreas do pensamento (heads of things) em quatro, situando a história entre as mesmas. Tinha ela a dupla função de compreender as tradições (traditions) que fundamentam a humanidade (Deus, criação, revelação, profecias e milagres) e as regras ou instituições (rules or institutes) relativas à vida religiosa e civil (política).[22] (Não seria, portanto, nenhum anacronismo afirmar que aqui estariam representadas as histórias sagrada e civil, respectivamente).
Em 1690 saberes controlados são a física (physica), a ética (practica) e a semiótica (semeiotike) ou lógica (logic), respectivamente responsáveis pelo conhecimento das coisas, das ações e dos sinais.[23] Não sendo explicitamente uma ciência, então, onde contribuiria a história? Na descoberta da verdade das coisas (física), na obtenção dos objetivos (ética) ou na codificação e transferência da informação (semiótica)? Talvez seja mais simples perceber a função da história na formação de pessoas, estritamente, nos seus conselhos sobre educação e não em suas tentativas de classificação das ciências.

Evidentemente, essa imagem nada tem a ver com Locke, que tinha vasta cabeleira. Mas pode ser uma excelente representação
de como ele se comportaria ao imaginar sua própria infância no final do século XX, a pós as recentes pesquisas da neurociência.
Na obra principal do gênero em questão [PSE], a resposta de Locke é imediata: a história deleita (delights) e ensina (teaches). Deleita os mais jovens e ensina os adultos.[24] Entretanto, como os fins educacionais de Locke são predominantemente morais a história serve, antes de qualquer coisa, para conduzir ideias de qualidade, de substância e de relações, como também para exercitar e ampliar as faculdades mentais (não necessariamente nesta ordem) que permitam conhecer e governar os homens.
Essa função já está destacada no seu Estudio [E], escrito em 1667,[25] mas é especificada nas obras subsequentes. Trata-se de um conhecimento que possibilita ao homem, quando bem aproveitada (dependendo também das inclinações naturais de cada um), agir dentro das regras estabelecidas pela sociedade e bem governar a si próprio e a determinado Estado. Assim, seja para a criança e o jovem, seja para o adulto, a história é sempre matéria de poder.
Bom exemplo de clareza está na AIALEC, escrita 1703. Neste fragmento, a história se confunde com a política. Para Locke, “os estudos que correspondem de modo mais imediato à vocação do cavalheiro são os que tratam das virtudes e dos vícios, da sociedade civil e da arte do governo, portanto, também a lei e da história.”[26] Alguns parágrafos adiante ele especifica: “[a] política é constituída por duas partes distintas uma da outra. A primeira compreende a origem das sociedades e o surgimento e extensão do poder político. A segunda é a arte de governar os homens em sociedade.” [27]
Essa definição de política tem implicações nas leituras sugeridas uma década após a publicação do PSE. Examinando o texto ligeiramente, veríamos a história em ambas as “partes”: no estudo das “origens” do poder e na “arte” de empregar esse poder. Se compararmos com a classificação das ciências de 1678, citada há pouco, veremos que essas funções correspondem a uma das duas subdivisões da Histórica (responsável, como vimos, tanto pelo aprendizado das origens, quanto pelo uso do poder). Mas não é o que percebemos quando comparamos a lista de obras destinadas a cada uma das áreas da política.

Conhecimentos históricos proveitosos e reprováveis
Quais seriam então essas ideias que deleitam e que ensinam ao principiante e ao cavalheiro adulto? Em primeiro lugar, elas configurariam alguns acontecimentos destacados em seu tempo, ocorridos entre 4.713 a.C a 4 de setembro de 1582, ou seja, datados pelo calendário juliano.[28] Ele não justifica esses acontecimentos mas deixa indícios de que tais ideias simples e complexas estariam relacionadas à história sagrada (criação do mundo, Olimpíadas, fundação de Roma, nascimento de Cristo e Hégira) e às histórias seculares antiga e nacional. Contudo, reprova as leituras (mesmo as que tratam da experiência da Roma antiga) que retratam, por exemplo, as matanças promovidas por Alexandre ou César. Esse tipo de assunto não reflete a grandeza da vida humana.
Na sugestão de leituras, Locke também deixa entrever uma certa progressão. Para as crianças, as histórias sagradas de José e seus irmãos, de David e Golias e de Jonas. Esse exemplo de história sagrada familiariza a criança com a ideia e a crença na existência do espírito. Também comunica regras morais, e estimula o gosto pela leitura[29] (capacidade de observação). Para os jovens, a História de Tito Lívio, responsável pela comunicação dos costumes romanos e, principalmente, as mudanças e as causas das mudanças do Estado. “O grande objetivo de histórias como as de Tito Lívio é dar conta das ações dos homens como parte da sociedade, e tal é o verdadeiro fundamento da política.”[30]
Frontispício de História da Inglaterra (Tyrrell, 1701).
Desenho de M. Burghers, delin.
Para os adultos, a mistura entre história e política vai ficando nítida quando comparamos as sugestões diacronicamente. Em 1693, são citados como boas leituras as obras de Justino, Eutropio, Quinto Curcio, numa primeira fase, e de Cicero, Virgílio e Horácio (considerados autores mais difíceis), em um segundo momento.[31] Em 1697, cita apenas Tito Lívio como leitura inicial.[32] Em 1703, quando sintetiza a instrução do cavalheiro na “moral” e na “política”, a lista é enorme e já inclui, como leituras próprias ao estudo “sobre a origem das sociedades e o surgimento do poder político” as suas próprias obras, junto às de Hooker, Algernon Sydney e de Samuel Pufendorf. Nenhuma delas, entretanto, leva o termo “história” em seus títulos, ao contrário do que acontece com a palavra “política”.[33] Sobre a “arte de governar”, ainda na obra de 1703, Locke indica histórias seculares, nacional e geral[34], que contêm princípios de direito e de legislação e fornecem uma ideia da Constituição e do governo ingleses.
As obras sugeridas para a leitura da experiência nacional pertencem a dois períodos da história da historiografia inglesa. São as do tipo história política, construídas ao modo grego clássico, mas também as histórias de incipiente teor social.[35] Do primeiro é a História do reinado de Henrique VII (1609), de Francis Bacon (1521-1626). Trata-se de um relato, cujos acontecimentos destacados são, predominantemente, os nascimentos, assassinatos, casamentos e coroações de nobres, embaixadas, tratados, batalhas, tréguas, rebeliões e execuções ocorridos entre 1485 e 1509.[36] Mas é também uma história que oferece importante categoria para a renovação da historiografia inglesa do final do século XVII, a ideia de “feudalismo inglês” (english feudal tenure).[37]
Do segundo tipo, Locke aconselha a History of England [1700], do amigo James Tyrrell (1642-1718), que abrange do “governo dos britânicos antes de Júlio Cesar” até os tempos do Rei Harold (1066). O livro é iniciado com uma bibliografia comentada, contendo os erros e acertos factuais e metodológicos de obras que trataram (diríamos, hoje, uma história da historiografia) da experiência inglesa até então.[38] Talvez por isso o tenha indicado. Nessa obra, afirmou Locke, os leitores adultos poderiam escolher qualquer autor que “a curiosidade ou juízo” pudessem conduzi-lo.[39] É também compreensível que citasse Tyrrell por causa da sua combatente atuação contra a tese da cadeia de sucessão hereditária, ou seja, contrária às supostas ligações entre a família dos monarcas e a família iniciada por Adão, defendida por Robert Filmer.[40] Isso explicaria também a indicação do seu nome para compor o rol dos autores de leitura obrigatória sobre a primeira parte da política, ou seja, a que trata da “origem das sociedades e da extensão do poder”.
Ensinar história na perspectiva da disciplina formal
Já vimos que o homem lockeano tem o poder infindo de conhecer, desde que lhe sejam apresentadas ideias ou que lhes deem oportunidade de experimentar a reflexão e os sentidos com certa autonomia e prazer. Contudo, não devemos esquecer que o “educar” de Locke, seja em dimensão física, moral ou intelectual, é primordialmente um exercício (um uso sistemático) das faculdades humanas. E a história, como conjunto de ideias simples e complexas sobre o mundo exterior, principalmente, sobre a conduta pública e privada, individual e coletiva dos homens, exige muito da faculdade da memória, sendo, por si mesma, um grande instrumento para o exercício dessa faculdade.
Ensinar história, portanto, requer o emprego de estratégias de leitura. Em 1677, Locke chegou a afirmar que a leitura “não era outra coisa que o armazenamento de materiais brutos, grande parte dos quais deve[ria] ser deixada de lado como inútil”[41]. Mas a arte de ensinar não se resumia à leitura. Era necessário ler, recordar, repetir, recordar e repetir, obedecendo sempre à ordem original dos escritos. O preceptor, enfatiza Locke, deve sempre começar pelas ideias simples e encadeadas, uma de cada vez e apresentar o significado das palavras. Deve, por fim, convencer-se de que tal significado está retido (fixado) na memória do aluno.
Dominado o conhecimento, podem ser testados frequentemente e até arbitrariamente, mesmo que o ensino não seja, necessariamente, de história. Ao ler um historiador latino, por exemplo, numa hipotética aula de gramática, o preceptor deveria, segundo Locke, questionar o aluno sobre o ano da fundação de Roma. A mesma estratégia se adequaria ao estudo de um autor grego: “Em que ano ocorreu a primeira Olimpíada?”
Outra medida válida é a imitação do mestre por parte do aluno. Se este já fixou na mente as ideias necessárias, o preceptor pode estimulá-lo a ensinar (transferir/apresentar/comunicar ideias) a um outro aluno que ainda não deu conta da sua tarefa. Ensinar, segundo Locke, é um excelente exercício para o aprender.
A leitura dirigida e aferida pelo preceptor, contudo, não garante o aprendizado. Locke parece indicar que inclinações naturais em termos de “entendimento” poderiam influir nesse sentido, quando registra a existência de dois tipos de observadores (observação - observations): o homem lento (slow) e o homem rápido em demasia (forward). O primeiro, o lento, retém muitos fatos, mas nada reflete sobre eles. O segundo pouco fixa, sendo capaz de generalizar a partir um único fato. O homem ideal é aquele que retém vários fatos particulares na memória, julga-os com os fatos (também retidos na memória) colhidos na história e faz deduções com certa segurança.[42] Em suma, o bom aprendiz da história é aquele que retém narrativas mas as transforma em princípios de conduta, ou seja, que trabalha indutiva e dedutivamente.

Os materiais preliminares: geografia e cronologia
Se as ideias são hierarquizadas e encadeadas no ato de ensinar, se as faculdades são exercitadas em determinada ordem, o mesmo deve ocorrer entre os demais conhecimentos científicos. Por esse raciocínio, a história não pode ser ensinada sem que ao aluno sejam apresentadas as ideias (e correspondentes exercícios das faculdades) relacionadas aos estudos da geografia e da cronologia. Na verdade, Locke estabelece uma sequência para o conhecimento das artes liberais: primeiro a geografia, que é seguida da aritmética/astronomia, geometria, cronologia e, por fim, a história. Mas vamos ficar apenas com a geografia e a cronologia, saberes mais familiares ao nosso grupo de estudos.
Mapa do Brasil no Sistema de geografia de Moll (1701), indicado como leitura por Locke.
A geografia apresenta as ideias de globo (figura), a situação e os limites do mundo, reinos e regiões. Isso se faz empregando a visão e a memória. Para esse exercício servem os impressos como o Sistema de geografia (1701), de Herman Moll (1624[?]-1763), que descreve a terra, continentes, reinos e estados sob aspectos físicos (relevo, clima, recursos naturais), políticos (divisões e subdivisões) e culturais (religiões, costumes), as coleções de mapas e os livros de viagens. À propósito, o mesmo Locke chegou a trabalhar na produção de um dos livros indicados, a Coleção de viagens editada por Mr. Churchill.[43]
Já a cronologia oferece os principais acontecimentos (já citados) em sua “ordem natural” (do mais antigo para o mais recente). No último quartel do século XVII, a cronologia já constituía um campo de conhecimento, que inclusive, ganhou notoriedade após sua inclusão no currículo do gentleman de Locke. Comparada à história, a cronologia era linear, resumida, didática e objetiva, anunciava o prefácio de De Doctrina temporis (1626), de Denis Petaus, um dos seus mais eminentes cultivadores desse saber, no início do século de Locke.[44] Eram exatamente essas características que Locke queria ver reconhecidas pelos preceptores e homens feitos. Cronologias, afirmava o filósofo, não são livros de leitura. São obras de consulta. E não devem ser empregadas como exercícios de formação do futuro cronologista. Disputas por micrologias cronológicas não são educativas. Assim, com essas orientações, e sob o critério da utilidade, ele oscilava entre sugerir O Teatro histórico e cronológico de Chistopher Helvicus[45] (1581-1617) e o Breviário cronológico de Gyles Strauchius.[46]
Fragmento de um dos quadros disponíveis no Teatro histórico e cronológico de Cristopher Helvicus (1687).
Os quadros são formados por colunas (acontecimentos históricos) e linhas (quantidade de tempo e modos de contar o tempo).
Exemplo 1: o primeiro acontecimento (linha 3, coluna 1, em verde) refere-se à tomada do Castelo Byland por William, Príncipe
de Orange. Ela aconteceu no ano 5584 (roxo), que corresponde ao ano 6348, do calendário juliano (cinza), distante 3132 anos
da saída dos judeus do Egito (cinza). Exemplo 2: o quarto acontecimento (linha 4, coluna 1, em verde) refere-se à retomada
do Castelo Schenk, após incríveis esforços, pelos holandeses. Esse fato ocorreu no ano 5585 (roxo), que corresponde ao ano
5395 do calendário judeu (cinza) e dista 2388 anos da construção de Roma (cinza).  
Como vimos, então, a geografia oferece à memória as ideias simples e ou complexas de lugar, distância e espaço. A cronologia, da mesma forma, apresenta à memória as ideias, também simples e/ou complexas de duração, período e tempo. Com essas ideias na memória, o aluno já pode estudar a história. Sem elas a história não cumpre suas funções morais e políticas. Sem cronologia e geografia, a história apresenta-se ao aluno como um conjunto de fatos confusos, desordenados e desinteressantes.

Conclusão: John Locke e o “pensar historicamente”
Para encerrar esse segundo tempo da aula, resta-nos responder à questão inicial do curso, partindo, hoje, dos escritos educacionais de Locke. O que seria o "pensar historicamente" para o filósofo inglês? Evidentemente, ele não se deu ao trabalho de enfrentar esta questão. Não era um didata da história. Mas esse fato não nos exime da responsabilidade de dar respostas, já que o problema nos interessa profundamente. É uma questão do início do século XXI apresentada por historiadores (nós, aqui nesta sala) que percebem, em seu cotidiano, práticas herdadas do pensamento de Locke e de outros prescritores do ensino de história nos últimos 300 anos.
Contudo, para respondê-la devemos tomar posição e fornecer soluções hipotéticas. Se aceitarmos a tese de J. A. Pocock, por exemplo, de que Locke não ocupou-se da matéria, isto é, de que os seus “tratados” sobre o governo, por exemplo, não são peças de história, podemos concluir que o “pensar historicamente” para Locke é simplesmente pensar, ou seja, é respeitar e empregar o mecanismo natural das ideias que nos são apresentadas, sensível e mentalmente, na condição de uma sequência.
Dizendo de outro modo, refletir (observar o próprio movimento das ideias na mente) já é reconhecer que há duração entre partes dessa sucessão ou entre o aparecimento de duas ideias. Agir (exercitar a faculdade da vontade), por conseguinte, é demonstrar que há uma distância entre o início e o fim dos vários movimentos das faculdades mentais e corporais.
Em suma, pensar e agir são o reconhecimento de que nada se pode criar ou deslocar, no movimento interior ou exterior dos corpos humanos, individual ou coletivamente, ontem e hoje, sem que se lance mão das ideias fixadas na mente em um tempo remoto ou breve, mas, assim mesmo, anterior (passado). Isso nos levaria então a uma segunda hipotética conclusão de que o “pensar historicamente” em Locke não se efetiva a partir das estratégias do historiador (das operações processuais do ofício, em vigor no século XVII), posto que a história, ao menos em alguns dos seus escritos educacionais, já estaria dada, bastando ao preceptor a escolha do que fosse condizente moral e cognitivamente ao aluno em situação didática. Em outras palavras, o historiador do final do século XVII, contemporâneo de Locke, não pautaria os usos da história na formação de pessoas (ou, pelo menos, Locke não consideraria a vontade desse historiador ideal-típico).
Por outro lado, se concordarmos com Paul Ricoeur que o filósofo inglês valorizou a faculdade da memória como elemento privilegiado da “identidade pessoal”, se seguirmos o argumento de Arthur Assis de que a exemplaridade histórica do século XVII, "concebida em termos essencialmente políticos", não tinha o mesmo sentido conservado pelas historiografias greco-romana e medieval[47] e (ainda na esteira do raciocínio de Assis) se abonarmos a tese de Mark Glat de que Locke valorizou o estudo do passado como elemento empírico de formação de verdades, princípios e regras (de conduta e de governo), não apenas desafiando certo providencialismo (ainda que empregasse alguns princípios éticos da antiguidade), mas enxergando no exame do passado também uma brecha para a mudança das regras (uma lição de que o presente poderia ser modificado, diríamos hoje, a partir dos próprios escritos do presente - fato evidenciado com as escolhas de Tyrrell e de Pufendorf, ambos anti-absolutistas), emfim, podemos afirmar que a nossa conclusão pode ser modificada.
E muda, principalmente, se considerarmos como plausível a sua explicação sobre o modo pelo qual a mente opera – recebendo, selecionando, armazenando ideias e, depois, combinando, comparando e produzindo princípios, que por sua vez são novamente armazenados para orientar a vontade em situação da vida prática. Reunido todos esses considerandos, poderemos afirmar que o pensar historicamente poderia (nessa terceira hipótese) significar não somente a aplicação de operações processuais historiadoras, mas também a própria sistematização de operações historiadoras para a história. Dizendo de outro modo, os conselhos de Locke sobre o ensinar história constituiriam, concomitantemente, uma forma particular de observação histórica, tanto para a formação e aperfeiçoamento do gentleman (o aprendizado) quanto para o trabalho dos historiadores (a pesquisa e a escrita).

O vídeo abaixo encadeia as ideias de "mente", "coração", "memória", "história" e "criança", mas o resultado é bem mais prazeroso que uma aula sobre Locke.
Até a próxima semana.





Conheça as outras aulas deste curso.
Aula n. 3
Aula n. 2
Programa


Referências

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Notas

[1] DUNN, 1982, p. 5. (Primeira edição publicada em 1969).
[2] Três desses textos foram consultados a partir da edição espanhola (LOCKE, 1986): “Del estúdio” (1677), “Borrador de uma carta de Locke a la Condesa de Peterborough” (1697) e “Algunas ideas acerca de la lectura y el estúdio para um Caballero” (1703).
[3] PSE, 7 mar. 1692. (Edição espanhola, de 1988). Na ausência desse tipo de especificação, as demais citações são extraídas das edições inglesas arroladas nas referências.
[4] HALIMI, 2005, p. 101.
[5] PSE, § 33.
[6] Não vamos nos deter sobre a já conhecida sentença de Locke, contrária à assertiva cartesiana e de alguns absolutistas do seu tempo de que existem “ideias inatas”. Basta lembrar que os princípios “especulativos” e os “práticos” (ou morais, como fé ou justiça) não são adquiridos. Do contrário, não haveria discordância entre os homens acerca de certas ideias ditas universais e as crianças as compreenderiam ao nascer (EACH, I, Cap. I-II). O poder de conhecer é inato mas o conhecimento é adquirido (EACH, I, Cap. I, §2).
[7] EAEH, I, Cap. II, § 1; II, Cap. I, § 26; PSE, § 176, 216 (1912).
[8] PSE, § 176, 216.
[9] Nos Estados Unidos, tanto a máxima anterior quanto a solução indicadora – a disciplina formal – predominou entre os acadêmicos, professores e administradores escolares até a penúltima década do século XIX. No Kindergarden, em 1890, foi substituída pelas ideias de aprendizagem de Fröebel (HEWES, 1988), mas houve quem a defendesse, tese de doutorado, ainda em 1910, como a base de toda a renovação educacional da moderna idade e também da contemporânea experiência estadunidense: iniciar o conhecimento por objetos concretos, ampliação do currículo para além da primazia da matemática, e a a liberdade para empregar o amplo estoque de conhecimentos retidos na memória [liberdade de pensamento?] (HODGE, 1911, p. 28-30).
[10] Para Patrik Menneteau, isso não diminui a importância do filósofo nos progressos alcançados em vários domínios do conhecimento. A argumentação de Locke, entretanto, é vitoriosa mediante o emprego alternado de vocabulários filosóficos e metafóricos, questões retóricas, repetições dogmáticas que impedem-no de fornecer as provas experimentais. (MENNETEAU, 2008, p. 65).
[11] Para Locke, todo o conhecimento humano é percebido pela mente, mediante a impressão (impression) causada pelo contato dos sentidos externos (visão, audição, tato, paladar e olfato) com as diferentes qualidades dos objetos (espessura, temperatura, luminosidade etc.). Além disso, todo conhecimento humano é produzido por meio da a observação da mente sobre sua própria atividade (reflexão). Agrupando tais operações, surge a renomada frase de que “todas as ideias derivam da sensação ou da reflexão” (PSE, I, Cap. 1, § 2).
[12] EAEH, II, Cap. III, § 1.
[13] EAEH, II, Cap. I, § 1-2.
[14] EAEH, II, Cap. II, § 2.
[15] EAEH, I, Cap. I, § 15.
[16] PSE, Dedicatória.
[17] JORGE FILHO, 1992.
[18] POCOCK, 1983, p. 157.
[19] BARROS, 2012, 178. Esta é uma das características de Bodin, partilhada também por Locke.
[20] GLAT, 1981, p. 5, 18-9.
[21] TARLTON, 2004. p. 251, 268.
[22] E, § 1-2. As quatro áreas são: Philosophica (que trata do exercício do entendimento), History (exercício da memória – conhecimento dos fundamentos da humanidade e das regras sociais), Immitanda (exercício do corpo da vontade – conhecimento das práticas de boa conduta pública ou privada, bem como de cuidados com a saúde) e Acquirenda (conhecimento das causas e consequências dos fenômenos físicos e naturais – história natural).
[23] EAEH, IV, Cap. XXI.
[24] PSE, § 184.
[25] “Nela [história] se verá um retrato do mundo e da natureza da humanidade, e aprenderá portanto a pensar os homens como eles realmente são [...]. Nela também se podem encontrar grandes e úteis ensinamentos de prudência, e ser advertido contra as armadilhas e travessuras do mundo” E- 1763. (1986, p. 381).
[26] AIALEC (1986, p. 355)
[27] AIALEC (1986, p. 357)
[28] CCP (1986, p. 354).
[29] PAE, § 159.
[30] ECLCP (1986, p. 353).
[31] PAE, § 184.
[32] CCP (1986, p. 352).
[33] Política eclesiástica – Mr. Hooker; Sobre o governo – Algernon Sydney; os dois tratados sobre o governo civil – John Locke; De officio hominis et civis e De jure naturali et gentium – Puffendorf. AIALEC (1986, p. 357-358).
[34] Sobre a história geral, Locke indica: History of the World – Walter Raleigh; An institution of general history – William Howel; Relections nyemales, De rationi et methodo legendi – Degory Wheare. AIALEC (1986, p. 357-358).
[35] Para J. G. A. Pocok, os historiadores ingleses só deixam de escrever, predominantemente, ao modo de Tucídides e Tácito a partir das obras de James Harrington – Answer to the Nineteen Propositions (1642) e The commonwalth of Oceana (1656) – que passam a ganhar conotação social (em oposição ao político-individual). POCOK, 1983, p. 153.
[36] BACON, 1902 (Primeira edição em 1609).
[37] POCOK, 1983, p. 151.
[38] TYRRELL, 1700
[39] LOCKE, Algunas ideas acerca de la lectura y el estúdio para um caballero - 1703 (1986, p. 355).
[40] POCOK, 1983, p. 156; 2011, p. 1.
[41] E, § 8 (1986, p. 391).
[42] SEE § 13.
[43] Informações do tradutor. AIALEC (1986, p. 359, n. 9).
[44] BARRET, 2012. Cap. 1.
[45] AIALEC – 1703 (1986, p. 360).
[46] PAE – 1693, § 13.
[47] ASSIS, 2011, p. 113-4; 2014, 29-30.

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