Há quase
meio século um respeitado especialista na obra política de John Locke – John
Dunn – reclamava que o filósofo fora representado nas histórias da
historiografia e da filosofia como pai do iluminismo, ideólogo da burguesia,
precursor do constitucionalismo liberal inglês, livre pensador e populista,
entre outros adjetivos.[1]
Hoje, a controvérsia se mantém sobre os escritos do intelectual.
Nosso
interesse, nesta aula, não é classificá-lo nem tomar partido por uma das representações
anunciadas. Apenas propomos o exame da sua obra educacional sob um ângulo pouco
explorado: o dos usos da história na formação de pessoas. Faremos isso mediante
a leitura do Estudo [E] (1667), Sobre o estudo [SE]
(1677), Ensaio acerca do entendimento
humano [EAEH] (1690), Pensamentos sobre a
educação [PSE] (1693), Sobre o emprego do entendimento [SEE] (1697), Esboço de uma carta de Locke à Condessa de Peterborough [ECLCP] (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e o estudo para um cavalheiro [AIALEC]
(1703).[2]
Aqui,
portanto, tentaremos identificar o lugar do conhecimento histórico na
formação do gentleman, as formas
pelas quais o preceptor e o educando poderiam dela tirar melhor proveito, bem
como o entendimento sugerido em seus escritos sobre o “pensar historicamente”. Por
isso, iniciamos com uma brevíssima exposição sobre o sentido de
categorias-chave da sua teoria do conhecimento: “educação” (education), “mente” (mind), “ideias” (ideas), e faculdades (faculties)
da mente, isto é, os poderes (powers)
ou habilidades (habilities) empregados no ato de conhecer as
coisas.
Instrução, faculdades e ideias da mente
O prefácio
de PSE já indica que a educação tem o
fim de produzir cavalheiros virtuosos, hábeis e úteis em suas diferentes
ocupações.[3]
É uma educação estreitamente ligada a política, remetente aos modelos clássicos,
anunciados por Platão e Aristóteles[4]
(ainda que sejam, as duas expressões, na obra de Locke, bastante peculiares à
Inglaterra do século XVII). E isso se faz exercitando e moldando corpo e mente. Entretanto, a educação intelectual (instrução
ou, no sentido atual, o estudo dos conhecimentos científico-escolares) e a
educação física (natação, alimentação, entretenimento etc.) têm status inferior à educação moral. Assim mesmo, a educação moral é promovida mediante exercícios corporais, morais
propriamente ditos e intelectuais que, adiante, permitirão o controle dos desejos e inclinações, isto é, a submissão, por
parte do discípulo, da sua vontade à sua razão.[5]
Essa capacidade de “negar” os seus próprios desejos e inclinações constitui
propriamente a virtude.
Em relação à
mente,[6]
Locke afirma que seu lugar é o cérebro (brain)
e sua natureza análoga a “um papel em branco (white paper)[7]
ou “cera de abelha” (bees wax)[8]
quando se nasce.[9]
A frase fez época e ainda é empregada, embora represente um grande problema, já
que o “coração do debate, a existência ou a não existência de ideias inatas,
escapa à experiência empírica”.[10]
Com ou sem argumento de autoridade ou estratégias retóricas, o fato é que Locke atribui à mente[11]
o processamento de todas as ideias impressas mediante reflexão (reflection) e sensação (sensation).[12]
No EAEH, a mente é, então, estruturada sob
três grandes poderes: percepção (perception - poder de sentir e de refletir as ideias), retenção
(retention – poder de manter as ideias
simples), discernimento (discerning
- poder de distinguir ideias).
Inventariados
os sentidos de educação, mente, ideias e faculdades, podemos encerrar essa rápida
introdução com as palavras do próprio filósofo que bem explicam, ao seu modo, o
ato de conhecer:
Os passos pelos quais a mente alcança várias verdades
Os sentidos inicialmente tratam com as ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes.Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se enriquecendo com ideias e linguagem, materiais com que exercita sua faculdade discursiva. E o uso da razão torna-se diariamente mais visível, ampliando-se em virtude do emprego desses materiais.[15]
Se até agora não conseguiram "fixar" e nem "compreender" os conceitos básicos propostos nesta primeira parte da aula, sugiro que se submetam a uma experiência, em parte, lockeana, assistindo ao vídeo que se segue. Mediante o trabalho da "visão" e da "audição", acompanhando o "movimento" na lousa virtual, exercitando a "memória" com a apresentação de "uma ideia após a outra", o "encadeamento" e a "repetição" deliberada, procedida pela professora "imaginada", é possível que o "entendimento" de vocês seja enriquecido o suficiente para aproveitarem melhor a segunda parte do nosso trabalho. Aproveitem também para familiarizarem-se com esse lindo idioma que é o espanhol.
Se, por outro lado, já retiveram significativamente o conteúdo inicial da aula, "pulem" o filme e sigam com a leitura, que agora trata, especificamente, dos usos da história na formação de pessoas.
Se, por outro lado, já retiveram significativamente o conteúdo inicial da aula, "pulem" o filme e sigam com a leitura, que agora trata, especificamente, dos usos da história na formação de pessoas.
A história na moral empírica de John Locke
Vimos que a
educação, para Locke, é uma espécie de doma a da vontade e das inclinações
humanas. Evidentemente, é um tipo de controle com finalidade específica: a
formação do homem bom (virtuous),
útil (useful) e capaz (able) em suas tarefas de cavalheiro.[16]
Mas em que medida o conhecimento histórico pode contribuir para essa tarefa?
Locke exerceu a atividade de historiador?
A condição de historiador em Locke é problema de muitos e já se
gastou bastante energia para convencer aos pares, sobretudo da filosofia
política e da história política, de que ele era ou não historiador. No Brasil, houve quem o defendesse como historiador, mas do tipo especulativo, que
periodizou a experiência humana de forma tripartite: época do “ouro”, da
“fantasia” e da “apropriação ampliada.”[17]
Fora daqui,
especialistas divergem, principalmente, acerca do caráter dos seus “tratados de
governo”: (1) obra que marca fim do século XVII e não início do século XVIII e,
ainda, sem caráter historiográfico;[18] (2)
obra que não apenas se apropria dos historiadores de sua época (Jean Bodin –
1530/1596) – separar história humana, eclesiástica e natural[19] e interpretar os fatos a partir dos seus contextos), mas que apresenta uma
alternativa metodológica para a pesquisa histórica (o exame da mudança dos
sentidos das palavras no tempo e a comparação transcultural);[20]
e (3) obra que oscila entre o emprego da "lógica ou julgamento qualitativo" e das "conclusões históricas ou empíricas”.[21]
De fato, se
observarmos as mais significativas tentativas de classificação das ciências produzidas
por Locke veremos que a presença da história oscila. Em 1678 ele dividiu as
principais áreas do pensamento (heads of
things) em quatro, situando a história entre as mesmas. Tinha ela a dupla
função de compreender as tradições (traditions)
que fundamentam a humanidade (Deus, criação, revelação, profecias e milagres) e
as regras ou instituições (rules or
institutes) relativas à vida religiosa e civil (política).[22]
(Não seria, portanto, nenhum anacronismo afirmar que aqui estariam
representadas as histórias sagrada e civil, respectivamente).
Em 1690
saberes controlados são a física (physica),
a ética (practica) e a semiótica (semeiotike) ou lógica (logic), respectivamente responsáveis
pelo conhecimento das coisas, das ações e dos sinais.[23]
Não sendo explicitamente uma ciência, então, onde contribuiria a história? Na descoberta
da verdade das coisas (física), na obtenção dos objetivos (ética) ou na
codificação e transferência da informação (semiótica)? Talvez seja mais simples
perceber a função da história na formação de pessoas, estritamente, nos seus
conselhos sobre educação e não em suas tentativas de classificação das
ciências.
Na obra principal do gênero em questão [PSE], a resposta de Locke é imediata: a história deleita (delights) e ensina (teaches). Deleita os mais jovens e ensina os adultos.[24] Entretanto, como os fins educacionais de Locke são predominantemente morais a história serve, antes de qualquer coisa, para conduzir ideias de qualidade, de substância e de relações, como também para exercitar e ampliar as faculdades mentais (não necessariamente nesta ordem) que permitam conhecer e governar os homens.
Essa função
já está destacada no seu Estudio [E], escrito em 1667,[25]
mas é especificada nas obras subsequentes. Trata-se de um conhecimento que
possibilita ao homem, quando bem aproveitada (dependendo também das inclinações
naturais de cada um), agir dentro das regras estabelecidas pela sociedade e bem
governar a si próprio e a determinado Estado. Assim, seja para a criança e o
jovem, seja para o adulto, a história é sempre matéria de poder.
Bom exemplo
de clareza está na AIALEC, escrita
1703. Neste fragmento, a história se confunde com a política. Para Locke, “os estudos que
correspondem de modo mais imediato à vocação do cavalheiro são os que tratam
das virtudes e dos vícios, da sociedade civil e da arte do governo, portanto,
também a lei e da história.”[26]
Alguns parágrafos adiante ele especifica: “[a] política é constituída por duas
partes distintas uma da outra. A primeira compreende a origem das sociedades e
o surgimento e extensão do poder político. A segunda é a arte de governar os
homens em sociedade.” [27]
Essa
definição de política tem implicações nas leituras sugeridas uma década após a
publicação do PSE. Examinando o texto
ligeiramente, veríamos a história em ambas as “partes”: no estudo das “origens”
do poder e na “arte” de empregar esse poder. Se compararmos com a classificação
das ciências de 1678, citada há pouco, veremos que essas funções correspondem a
uma das duas subdivisões da Histórica (responsável,
como vimos, tanto pelo aprendizado das origens, quanto
pelo uso do poder). Mas não é o que percebemos quando comparamos a lista de
obras destinadas a cada uma das áreas da política.
Conhecimentos históricos proveitosos e reprováveis
Quais seriam
então essas ideias que deleitam e que ensinam ao principiante e ao cavalheiro
adulto? Em primeiro lugar, elas configurariam alguns acontecimentos destacados
em seu tempo, ocorridos entre 4.713 a.C a 4 de setembro de 1582, ou seja,
datados pelo calendário juliano.[28]
Ele não justifica esses acontecimentos mas deixa indícios de que tais ideias simples
e complexas estariam relacionadas à história sagrada (criação do mundo, Olimpíadas, fundação de Roma, nascimento de Cristo e Hégira) e às
histórias seculares antiga e nacional. Contudo, reprova as leituras (mesmo as que tratam da experiência da Roma antiga) que retratam, por exemplo, as matanças promovidas por Alexandre ou César. Esse tipo de assunto não reflete a grandeza da vida humana.
Frontispício de História da Inglaterra (Tyrrell, 1701). Desenho de M. Burghers, delin. |
As obras
sugeridas para a leitura da experiência nacional pertencem a dois períodos da
história da historiografia inglesa. São as do tipo história política, construídas
ao modo grego clássico, mas também as histórias de incipiente teor social.[35]
Do primeiro é a História do reinado
de Henrique VII (1609), de Francis Bacon (1521-1626). Trata-se de um
relato, cujos acontecimentos destacados são, predominantemente, os nascimentos,
assassinatos, casamentos e coroações de nobres, embaixadas, tratados, batalhas,
tréguas, rebeliões e execuções ocorridos entre 1485 e 1509.[36]
Mas é também uma história que oferece importante categoria para a renovação da
historiografia inglesa do final do século XVII, a ideia de “feudalismo inglês”
(english feudal tenure).[37]
Do segundo
tipo, Locke aconselha a History of England
[1700], do amigo James Tyrrell (1642-1718), que abrange do “governo dos
britânicos antes de Júlio Cesar” até os tempos do Rei Harold (1066). O livro é
iniciado com uma bibliografia comentada, contendo os erros e acertos factuais e
metodológicos de obras que trataram (diríamos, hoje, uma história da
historiografia) da experiência inglesa até então.[38]
Talvez por isso o tenha indicado. Nessa obra, afirmou Locke, os leitores
adultos poderiam escolher qualquer autor que “a curiosidade ou juízo” pudessem
conduzi-lo.[39]
É também compreensível que citasse Tyrrell por causa da sua combatente atuação
contra a tese da cadeia de sucessão hereditária, ou seja, contrária às supostas
ligações entre a família dos monarcas e a família iniciada por Adão, defendida
por Robert Filmer.[40]
Isso explicaria também a indicação do seu nome para compor o rol dos autores de
leitura obrigatória sobre a primeira parte da política, ou seja, a que trata da
“origem das sociedades e da extensão do poder”.
Ensinar história na perspectiva da disciplina
formal
Já vimos que
o homem lockeano tem o poder infindo de conhecer, desde que lhe sejam
apresentadas ideias ou que lhes deem oportunidade de experimentar a reflexão e
os sentidos com certa autonomia e prazer. Contudo, não devemos esquecer que o “educar” de Locke, seja em dimensão física, moral ou intelectual, é
primordialmente um exercício (um uso sistemático) das faculdades humanas. E a
história, como conjunto de ideias simples e complexas sobre o mundo exterior,
principalmente, sobre a conduta pública e privada, individual e coletiva dos
homens, exige muito da faculdade da memória, sendo, por si mesma, um grande
instrumento para o exercício dessa faculdade.
Ensinar
história, portanto, requer o emprego de estratégias de leitura. Em 1677, Locke
chegou a afirmar que a leitura “não era outra coisa que o armazenamento de
materiais brutos, grande parte dos quais deve[ria] ser deixada de lado como
inútil”[41].
Mas a arte de ensinar não se resumia à leitura. Era necessário ler, recordar,
repetir, recordar e repetir, obedecendo sempre à ordem original dos escritos. O
preceptor, enfatiza Locke, deve sempre começar pelas ideias simples e
encadeadas, uma de cada vez e apresentar o significado das palavras. Deve, por
fim, convencer-se de que tal significado está retido (fixado) na memória do
aluno.
Dominado o
conhecimento, podem ser testados frequentemente e até arbitrariamente, mesmo
que o ensino não seja, necessariamente, de história. Ao ler um historiador
latino, por exemplo, numa hipotética aula de gramática, o preceptor deveria,
segundo Locke, questionar o aluno sobre o ano da fundação de Roma. A mesma
estratégia se adequaria ao estudo de um autor grego: “Em que ano ocorreu a
primeira Olimpíada?”
Outra
medida válida é a imitação do mestre por parte do aluno. Se este já fixou
na mente as ideias necessárias, o preceptor pode estimulá-lo a ensinar
(transferir/apresentar/comunicar ideias) a um outro aluno que ainda não deu conta da sua
tarefa. Ensinar, segundo Locke, é um excelente exercício para o aprender.
A leitura
dirigida e aferida pelo preceptor, contudo, não garante o aprendizado. Locke
parece indicar que inclinações naturais em termos de “entendimento” poderiam
influir nesse sentido, quando registra a existência de dois tipos de
observadores (observação - observations):
o homem lento (slow) e o homem rápido
em demasia (forward). O primeiro, o
lento, retém muitos fatos, mas nada reflete sobre eles. O segundo pouco fixa,
sendo capaz de generalizar a partir um único
fato. O homem ideal é aquele que retém vários fatos particulares na memória,
julga-os com os fatos (também retidos na memória) colhidos na história e faz
deduções com certa segurança.[42]
Em suma, o bom aprendiz da história é aquele que retém narrativas mas as transforma
em princípios de conduta, ou seja, que trabalha indutiva e dedutivamente.
Os materiais preliminares: geografia e
cronologia
Se as ideias
são hierarquizadas e encadeadas no ato de ensinar, se as faculdades são
exercitadas em determinada ordem, o mesmo deve ocorrer entre os demais
conhecimentos científicos. Por esse raciocínio, a história não pode ser
ensinada sem que ao aluno sejam apresentadas as ideias (e correspondentes
exercícios das faculdades) relacionadas aos estudos da geografia e da
cronologia. Na verdade, Locke estabelece uma sequência para o conhecimento das
artes liberais: primeiro a geografia, que é seguida da aritmética/astronomia,
geometria, cronologia e, por fim, a história. Mas vamos ficar apenas com a
geografia e a cronologia, saberes mais familiares ao nosso grupo de estudos.
Mapa do Brasil no Sistema de geografia de Moll (1701), indicado como leitura por Locke. |
Já a
cronologia oferece os principais acontecimentos (já citados) em sua “ordem
natural” (do mais antigo para o mais recente). No último quartel do século
XVII, a cronologia já constituía um campo de conhecimento, que inclusive, ganhou notoriedade após sua inclusão no currículo do gentleman de Locke. Comparada à história, a cronologia era linear,
resumida, didática e objetiva, anunciava o prefácio de De Doctrina temporis (1626), de Denis Petaus, um dos seus mais
eminentes cultivadores desse saber, no início do século de Locke.[44]
Eram exatamente essas características que Locke queria ver reconhecidas
pelos preceptores e homens feitos. Cronologias, afirmava o filósofo, não são
livros de leitura. São obras de consulta. E não devem ser empregadas como
exercícios de formação do futuro cronologista. Disputas por micrologias
cronológicas não são educativas. Assim, com essas orientações, e sob o critério
da utilidade, ele oscilava entre sugerir O Teatro histórico e cronológico de Chistopher Helvicus[45]
(1581-1617) e o Breviário cronológico de
Gyles Strauchius.[46]
Como vimos,
então, a geografia oferece à memória as ideias simples e ou complexas de lugar,
distância e espaço. A cronologia, da mesma forma, apresenta à memória as
ideias, também simples e/ou complexas de duração, período e tempo. Com essas
ideias na memória, o aluno já pode estudar a história. Sem elas a história não
cumpre suas funções morais e políticas. Sem cronologia e geografia, a
história apresenta-se ao aluno como um conjunto de fatos confusos, desordenados
e desinteressantes.
Conclusão: John Locke e o “pensar historicamente”
Para
encerrar esse segundo tempo da aula, resta-nos responder à questão inicial do
curso, partindo, hoje, dos escritos educacionais de Locke. O que seria o "pensar
historicamente" para o filósofo inglês? Evidentemente, ele não se deu ao
trabalho de enfrentar esta questão. Não era um didata da história. Mas esse fato
não nos exime da responsabilidade de dar respostas, já que o problema nos
interessa profundamente. É uma questão do início do século XXI apresentada por
historiadores (nós, aqui nesta sala) que percebem, em seu cotidiano, práticas
herdadas do pensamento de Locke e de outros prescritores do ensino de história nos últimos 300 anos.
Contudo,
para respondê-la devemos tomar posição e fornecer soluções hipotéticas.
Se aceitarmos a tese de J. A. Pocock, por exemplo, de que Locke não ocupou-se
da matéria, isto é, de que os seus “tratados” sobre o governo, por exemplo, não
são peças de história, podemos concluir que o “pensar historicamente” para
Locke é simplesmente pensar, ou seja, é respeitar e empregar o mecanismo
natural das ideias que nos são apresentadas, sensível e mentalmente, na condição de uma
sequência.
Dizendo de
outro modo, refletir (observar o próprio movimento das ideias na mente) já é
reconhecer que há duração entre partes dessa sucessão ou entre o aparecimento
de duas ideias. Agir (exercitar a faculdade da vontade), por conseguinte, é
demonstrar que há uma distância entre o início e o fim dos vários movimentos
das faculdades mentais e corporais.
Em suma,
pensar e agir são o reconhecimento de que nada se pode criar ou deslocar, no movimento interior
ou exterior dos corpos humanos, individual ou coletivamente, ontem e hoje, sem
que se lance mão das ideias fixadas na mente em um tempo remoto ou breve, mas,
assim mesmo, anterior (passado). Isso nos levaria então a uma segunda
hipotética conclusão de que o “pensar historicamente” em Locke não se efetiva a
partir das estratégias do historiador (das operações processuais do ofício, em
vigor no século XVII), posto que a história, ao menos em alguns dos seus escritos educacionais,
já estaria dada, bastando ao preceptor a escolha do que fosse condizente moral e
cognitivamente ao aluno em situação didática. Em outras palavras, o historiador
do final do século XVII, contemporâneo de Locke, não pautaria os usos da
história na formação de pessoas (ou, pelo menos, Locke não consideraria a
vontade desse historiador ideal-típico).
Por outro
lado, se concordarmos com Paul Ricoeur que o filósofo inglês valorizou a
faculdade da memória como elemento privilegiado da “identidade pessoal”, se seguirmos o argumento de Arthur Assis de que a exemplaridade histórica do século XVII, "concebida em termos essencialmente políticos", não tinha o mesmo sentido conservado pelas historiografias greco-romana e medieval[47] e (ainda na esteira do raciocínio de Assis) se
abonarmos a tese de Mark Glat de que Locke valorizou o estudo do passado como
elemento empírico de formação de verdades, princípios e regras (de conduta e de
governo), não apenas desafiando certo providencialismo (ainda que empregasse alguns princípios éticos da antiguidade), mas enxergando no exame
do passado também uma brecha para a mudança das regras (uma lição de que o
presente poderia ser modificado, diríamos hoje, a partir dos próprios escritos do presente - fato evidenciado com as escolhas de Tyrrell e de Pufendorf, ambos anti-absolutistas), emfim, podemos afirmar que a nossa conclusão pode ser modificada.
E muda,
principalmente, se considerarmos como plausível a sua explicação sobre o modo
pelo qual a mente opera – recebendo, selecionando, armazenando ideias e,
depois, combinando, comparando e produzindo princípios, que por sua vez são
novamente armazenados para orientar a vontade em situação da vida prática.
Reunido todos esses considerandos, poderemos afirmar que o pensar
historicamente poderia (nessa terceira hipótese) significar não somente a aplicação de operações
processuais historiadoras, mas também a própria sistematização de operações
historiadoras para a história. Dizendo de outro modo, os conselhos de Locke sobre o
ensinar história constituiriam, concomitantemente, uma forma particular de
observação histórica, tanto para a formação e aperfeiçoamento do gentleman (o aprendizado) quanto para o trabalho dos historiadores (a pesquisa e a escrita).
O vídeo abaixo encadeia as ideias de "mente", "coração", "memória", "história" e "criança", mas o resultado é bem mais prazeroso que uma aula sobre Locke.
Até a próxima semana.
Conheça as outras aulas deste curso.
Aula n. 3
Aula n. 2
Programa
Referências
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Notas
Notas
[1] DUNN,
1982, p. 5. (Primeira edição publicada em 1969).
[2] Três
desses textos foram consultados a partir da edição espanhola (LOCKE, 1986):
“Del estúdio” (1677), “Borrador de uma carta de Locke a la Condesa de
Peterborough” (1697) e “Algunas ideas acerca de la lectura y el estúdio para um
Caballero” (1703).
[3] PSE, 7 mar. 1692. (Edição espanhola, de
1988). Na ausência desse tipo de especificação, as demais citações são
extraídas das edições inglesas arroladas nas referências.
[4] HALIMI,
2005, p. 101.
[5] PSE, § 33.
[6] Não vamos nos deter sobre a já conhecida sentença de
Locke, contrária à assertiva cartesiana e de alguns absolutistas do seu tempo
de que existem “ideias inatas”. Basta lembrar que os princípios “especulativos”
e os “práticos” (ou morais, como fé ou justiça) não são adquiridos. Do
contrário, não haveria discordância entre os homens acerca de certas ideias
ditas universais e as crianças as compreenderiam ao nascer (EACH, I, Cap. I-II). O poder de conhecer
é inato mas o conhecimento é adquirido (EACH,
I, Cap. I, §2).
[7] EAEH, I, Cap. II, § 1; II, Cap. I, § 26;
PSE, § 176, 216 (1912).
[8] PSE, § 176, 216.
[9] Nos
Estados Unidos, tanto a máxima anterior quanto a solução indicadora – a
disciplina formal – predominou entre os acadêmicos, professores e
administradores escolares até a penúltima década do século XIX. No
Kindergarden, em 1890, foi substituída pelas ideias de aprendizagem de Fröebel
(HEWES, 1988), mas houve quem a defendesse, tese de doutorado, ainda em 1910,
como a base de toda a renovação educacional da moderna idade e também da
contemporânea experiência estadunidense: iniciar o conhecimento por objetos
concretos, ampliação do currículo para além da primazia da matemática, e a a
liberdade para empregar o amplo estoque de conhecimentos retidos na memória
[liberdade de pensamento?] (HODGE, 1911, p. 28-30).
[10] Para
Patrik Menneteau, isso não diminui a importância do filósofo nos progressos
alcançados em vários domínios do conhecimento. A argumentação de Locke,
entretanto, é vitoriosa mediante o emprego alternado de vocabulários
filosóficos e metafóricos, questões retóricas, repetições dogmáticas que
impedem-no de fornecer as provas experimentais. (MENNETEAU, 2008, p. 65).
[11] Para
Locke, todo o conhecimento humano é percebido pela mente, mediante a impressão (impression) causada pelo contato dos
sentidos externos (visão, audição, tato, paladar e olfato) com as diferentes
qualidades dos objetos (espessura, temperatura, luminosidade etc.). Além disso,
todo conhecimento humano é produzido por meio da a observação da mente sobre sua própria atividade
(reflexão). Agrupando tais operações, surge a renomada frase de que “todas as
ideias derivam da sensação ou da reflexão” (PSE,
I, Cap. 1, § 2).
[12] EAEH, II, Cap. III, § 1.
[13] EAEH, II, Cap. I, § 1-2.
[14] EAEH, II, Cap. II, § 2.
[15] EAEH, I, Cap. I, § 15.
[16] PSE, Dedicatória.
[17] JORGE
FILHO, 1992.
[18] POCOCK,
1983, p. 157.
[19] BARROS,
2012, 178. Esta é uma das características de Bodin, partilhada também por
Locke.
[20] GLAT,
1981, p. 5, 18-9.
[21]
TARLTON, 2004. p. 251, 268.
[22] E, § 1-2. As quatro áreas são: Philosophica (que trata do exercício do
entendimento), History (exercício da
memória – conhecimento dos fundamentos da humanidade e das regras sociais), Immitanda (exercício do corpo da vontade
– conhecimento das práticas de boa conduta pública ou privada, bem como de
cuidados com a saúde) e Acquirenda
(conhecimento das causas e consequências dos fenômenos físicos e naturais –
história natural).
[23] EAEH, IV, Cap. XXI.
[24] PSE, § 184.
[25] “Nela
[história] se verá um retrato do mundo e da natureza da humanidade, e aprenderá
portanto a pensar os homens como eles realmente são [...]. Nela também se podem
encontrar grandes e úteis ensinamentos de prudência, e ser advertido contra as
armadilhas e travessuras do mundo” E-
1763. (1986, p. 381).
[26] AIALEC (1986, p. 355)
[27] AIALEC (1986, p. 357)
[28] CCP (1986, p. 354).
[29] PAE, § 159.
[30] ECLCP (1986, p. 353).
[31] PAE, § 184.
[32] CCP (1986, p. 352).
[33] Política eclesiástica – Mr. Hooker; Sobre o governo – Algernon Sydney; os
dois tratados sobre o governo civil –
John Locke; De officio hominis et civis e De jure naturali et gentium – Puffendorf. AIALEC (1986, p. 357-358).
[34] Sobre a
história geral, Locke indica: History of
the World – Walter Raleigh; An
institution of general history – William Howel; Relections nyemales, De
rationi et methodo legendi – Degory Wheare. AIALEC (1986, p. 357-358).
[35] Para J.
G. A. Pocok, os historiadores ingleses só deixam de escrever,
predominantemente, ao modo de Tucídides e Tácito a partir das obras de James
Harrington – Answer to the Nineteen
Propositions (1642) e The commonwalth
of Oceana (1656) – que passam a ganhar conotação social (em oposição ao
político-individual). POCOK, 1983, p. 153.
[36] BACON,
1902 (Primeira edição em 1609).
[37] POCOK,
1983, p. 151.
[38]
TYRRELL, 1700
[39] LOCKE, Algunas ideas acerca de la lectura y el
estúdio para um caballero - 1703 (1986, p. 355).
[40] POCOK,
1983, p. 156; 2011, p. 1.
[41] E,
§ 8 (1986, p. 391).
[42] SEE § 13.
[43]
Informações do tradutor. AIALEC
(1986, p. 359, n. 9).
[44] BARRET,
2012. Cap. 1.
[45] AIALEC – 1703 (1986, p. 360).
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