O historiador francês Roger Chartier (1947/ - ) foi apresentado ao público de língua portuguesa em 1990, através da coletânea História Cultural: entre práticas e representações (Chartier, 1990). No Brasil, esse denso conjunto de ensaios ajudou a difundir algumas categorias como representação, apropriação e os termos "práticas culturais", hoje bastante conhecidos no campo da história da educação. A partir dessa obra e, notadamente, dos trabalhos anteriores sobre a história do livro e da leitura, o autor ficou conhecido como um crítico da história das mentalidades e da história serial de terceiro nível; um historiador que renunciou às explicações de “um nível pelo outro”, do cultural pelo o econômico (Roche, 2000 p.177). Dentre as mais importantes inovações propostas por Chartier, pode-se indicar o deslocamento de sua atenção das “estruturas objetivas” para os elementos culturalmente constituídos ou instituídos; dos produtos diretamente explicados por sua filiação a determinado grupo (classe) social, pelas formas de apropriação desses mesmos produtos partilhadas por diferentes grupos (Burke, 1991, p. 91-99); do “social” previamente considerado, para um sócio-cultural “em conexão com as diferentes utilizações do equipamento intelectual disponível, o utensillage mental” (Vainfas, 1997, p. 153-154); da naturalização dos objetos intelectuais para a historicização de categorias como loucura, medicina e Estado (Hunt, 1995, p. 9-10).
Tais deslocamentos acerca de métodos, fontes e temas, suscitaram debates sobre os novos apoios reivindicados pela história na segunda metade do século XX (antropologia, sociologia, filosofia, teoria literária etc.), ao tempo em que estimulavam a revisão de alguns consensos em vigor no período 1970/1980 como, por exemplo, a natureza do popular, a idéia da livre passagem do oral para o escrito a partir do invento de Gutemberg, e o caráter reprodutivista e inculcador de ideologia atribuído às instituições escolares. Todavia, o exame e o emprego das propostas de Chartier para uma história cultural no Brasil têm sido dificultados pela natureza assistemática e, às vezes, dispersiva de suas obras, originadas, na maioria dos casos, de entrevistas e debates com especialistas em torno de preocupações específicas de sua carreira e que chegam até nós em forma de reescritura. Além disso, debatemo-nos, recorrentemente, com nosso próprio hábito taxionômico de posicionar o trabalho dos teóricos da história sob determinados cânones, prática essa que se esboroa diante de um “eclético”, como Chartier, que recolhe os seus mestres e suas respectivas diretrizes, principalmente, no decorrer de cada pesquisa (Cf. Roche, 2000, p. 179). Não obstante, o livro Cultura escrita, literatura e história, lançado em 1999 pela editora Fondo de Cultura Econômica, pode minorar algumas dificuldades dos iniciantes na medida em que apresenta uma espécie de síntese das principais preocupações do autor na década de 1990.
Cultura escrita é uma edição dos encontros entre Roger Chartier e cinco dos seus principais interlocutores mexicanos: o antropólogo Carlos Aguirre Anaya; Jesús Anaya Rosique, editor, tradutor e pesquisador da história do livro; Alberto Cue, historiador e editor; Daniel Goldim, versado em língua e literatura espanholas; e Antônio Saborit, com formação básica em História e Letras. Para Goldim, o texto é direcionado aos veteranos e noviços nos escritos de Chartier, e os que têm interesse em compreender de modo mais profundo a cultura escrita (p. 7). O fio condutor das cinco jornadas, é definido pelo próprio Chartier como a discussão em torno de duas questões: como compreender as mudanças da cultura escrita na perspectiva da longa duração? Como situar a literatura no centro do conjunto de discursos que uma sociedade recebe e produz? Essas indagações são repetidas e respondidas em várias ocasiões. Neste movimento, são apresentados os grandes projetos assumidos pelo historiador francês, sobretudo, no final dos anos 1990. São projetos que tematizam a relação entre a história dos textos, a história dos livros e a história da leitura e que, por sua vez, geraram uma série de reflexões teórico-metodológicas acerca da natureza da História (discurso sobre o real) e do ofício do historiador, transformando Chartier, senão um epistemólogo stricto sensu, pelo menos, um dos historiadores mais preocupados em discutir as possibilidades e limites do seu próprio saber entre os autores da nova história cultural.
O projeto do autor dos anos 1990 esteve ligado, como já foi assinalado, a uma história da passagem do texto ao livro e à leitura (p. 115); uma história da cultura escrita, ou se preferirem uma expressão mais sintética, uma história da leitura que se distancia dos métodos em voga nos anos 1960 e 1970 – a história quantitativa – e das formas de classificar o social – hierarquizando os usos por meio da economia ou da política. Chartier reconhece a contribuição dos estudos sobre bibliotecas privadas e sobre a sociologia da educação, mas adverte que tais pesquisas apenas mapearam a distribuição e posse dos livros e elaboraram índices sobre a alfabetização; ações insuficientes, em termos de métodos e fontes, para responder a uma questão fundamental, a da construção do sentido (p. 234). Afinal, pergunta historiador, o que as pessoas fazem com os artefatos que recebem, com os modelos que lhe são impostos? Para o historiador, esse problema começa a ser resolvido com a adoção sistemática de um procedimento canônico na historiografia ideográfica do século XIX: a historicização dos atos, artefatos e significados constituintes da história do texto, do livro e da leitura. É preciso, então, historicizar as definições de leitor, leitura, alfabetização, edição, livro, autor (p. 20, 60, 105). É necessário examinar os sentidos, atribuídos a tais elementos, o que implica em estender os marcos temporais da investigação – estudos exeqüíveis na média e na longa duração –; e em fabricar novas fontes e novos métodos de leitura e crítica. Surgem, assim, algumas frentes de investigação centradas no exame da pontuação, ortografia, formato gráfico (p. 115), das traduções, das resenhas (p. 91-93), das delegações de leitura e escritura (p. 117), das formas de leitura e dos textos que geram paradigmas de leitura (p. 157); área de circulação de gêneros, textos, códigos; e, principalmente, dos usos e interpretação desses gêneros, textos, e códigos por uma comunidade de leitores.
Para efetivar esse projeto – o exame da produção de sentido, os usos e destinos que determinadas comunidades endereçam aos modelos que lhe são impostos – Chartier apropria-se de vários autores, aparentemente não conciliáveis em termos de origens disciplinares, interesses de pesquisa, visões sobre o saber histórico etc.. Aqui, e em grande parte da sua obra, põe em prática o que denomina de “curiosidade compartilhada”, uma forma de trabalho característica da república das letras “que consiste em apreender e compartilhar o conhecimento mediante uma rede de intercâmbios” (p. 257). Esta estratégia lhe permite empregar as categorias de hábito, de Pierre Bourdieu; processo e configuração, de Norbert Elias; e representação, de Louis Marin. Todavia, nas cinco jornadas deste livro, três autores ganham maior relevo: Michel de Foucault e a de idéia da poder-se estabelecer a propriedade sobre algo, um dispositivo de controle da difusão e circulação dos discursos (p. 90-91 e 163); Paul Ricoeur e a idéia de se produzir algo novo com o que as pessoas recebem (p. 90-91); e Michel de Certeau, e sua constatação de que tanto no cotidiano contemporâneo como no meio místico antigo, há algo em comum: a apropriação daquilo que é imposto, seja a cultura dos mass media ou a ortodoxia católica [dos séculos XVI e XVII], e a sua transformação em algo novo (p. 229). Esses três autores são o sustentáculo do principal conceito utilizado na Cultura escrita, a idéia de "apropriação", ou seja, uma espécie de uso inventivo daquilo que se recebe (p. 162). Entendido dessa maneira, incorporando as idéias de controle (Foucault) e de invenção (Ricoeur/de Certeau) simultaneamente, Chartier conserva a historicidade dos processos de apropriação, os conflitos de poder, e recupera a tensão fundamental que há entre a vontade de controle e monopólio – disciplina – e a vontade de conquista cultural – invenção. A complexidade desse processo é que vai dar origem a duas definições importantes, embora não utilizadas com freqüência nesta obra: os dispositivos de disciplina e de invenção (p. 163 e 219).
Alem de registrar os novos problemas para uma história da leitura, apontar as frentes de pesquisa, criar fontes e um corpo de conceitos, Chartier também demarca o campo de atuação dentro mesmo da história cultural. Alguns distanciamentos explicitados dizem respeito às alianças construídas pelos novos historiadores da cultura (do livro e da leitura) com a reader’s response theory, a teoria da recepção, e o new historicism que, ao considerarem a relação texto-leitor, desprezam a mediação da materialidade (p. 38) – entendida não somente como objeto escrito ou impresso, mas também como as formas de transmissão oral (p. 115 e 129) – que também pertencem ao processo de produção de sentidos. Outras diferenças são estabelecidas em relação aos historiadores que – por conta da disposição em examinar as “construções conflitivas de sentido" – podem ser estabelecidos como seus pares. Robert Darnton é o mais citado. A diferença com este pesquisador da história dos livros é sustentada a partir da crítica ao uso anacrônico de conceitos, prática comum nas ciências da informação e da comunicação, às quais Darnton é associado (p. 35-36); do reparo à “operação de dedução”, estratégia que prescreve transformações imediatas de idéias em textos, textos em livros, livros em representações dos leitores, e representações em ações revolucionárias (p. 151); da oposição à “leitura” de imagens, ritos ou paisagens com as mesmas técnicas empregadas para o exame de um texto (discursivo), como faz Darnton em O massacre de gatos (p. 200-201).
Essa inquietação de Chartier, ante à limitação dos métodos e o refinamento das questões que estabelece, levam-no à refletir sobre o próprio estatuto da história. Exemplos dessa atitude são a crítica às proposições de Hayden White para quem a história não passaria de uma sucessão de tropos linguísticos (p. 233) e às assertivas de Barthes, Foucault e Derrida, de que tudo são discursos (p. 147-148). Contra essa espécie de negação da singularidade da narrativa histórica, Chartier retoma as palavras de Michel de Certeau e afirma: “devemos considerar a história como uma escrita, compartilhando da ficção os seus procedimentos narrativos, e como uma representação de um passado que já não há, mas que existiu um dia” (p. 233). É todavia um discurso científico. Este científico, contudo, é entendido como “um conjunto de regras que permitem controlar operações destinadas à produção de objetos determinados” (de Certeau, apud. Chartier, p. 241). Em suma, a história é escritura, mas é também uma disciplina científica (p. 261). Além das considerações sobre o estatuto da disciplina, Chartier comenta sobre os limites da ação do historiador no meio social: como cientista não deve manifestar-se, além da sua esfera de competência, “sobre temas, problemas e assuntos do presente relacionados com a sua experiência e conhecimento. Como cidadão, o historiador pode falar (como o camponês, o artesão ou o empresário) de todos os problemas todavia, não tem mais ou menos autoridade que os demais cidadãos” (p. 109). Sob esse importante aspecto, o do poder de intervenção do cientista social, Chartier apresenta como modelo de intelectual, em lugar de Sartre, as figuras de Foucault e Bourdieu.
A leitura efetuada até aqui, orientou-se por apontar os projetos principais de Chartier nos anos 1990 que puderam ser sintetizados recorrentemente ao longo dos cinco capítulos do livro. Por isso, a eleição de três movimentos básicos: os problemas, as alianças e os distanciamentos. Mas, como sugere o próprio Chartier – diretamente, através dos projetos apresentados no texto – ou de forma indireta, pela própria adoção do prólogo e do epílogo – outras formas de uso do texto e do artefato intitulado Cultura escrita, literatura e história podem ser inventadas por cada leitor, dependendo do seu interesse, conveniência, cultura histórica, capacidade de intelecção, ou inserção em uma determinada comunidade de leitores. Aqui, a estratégia de leitura adotada na segunda visada sobre o texto foi migrar do prólogo ao epílogo e do epílogo às jornadas. Isso auxiliou bastante a compreensão de determinados problemas de pesquisa, as polêmicas travadas em outros livros e, principalmente, ajudou a atribuir relevo ao conceito de apropriação diante das demais categorias utilizadas neste e em outros textos. Mas, outras leituras podem ser efetuadas como a que examina o conflito entre o interesse dos entrevistadores e do entrevistado, as tentativas de direcionamento de determinados temas, a reelaboração de questões e até as negativas implícitas de Chartier em responder aos seus interlocutores. Pode-se ler a obra partindo da discriminação dos títulos e subtítulos atribuídos a determinados grupos de perguntas, como também das distâncias operadas entre esses mesmos títulos e subtítulos e as respostas fornecidas. Pode-se, enfim, extrair apenas o corpo conceitual utilizado pelo autor ou o questionário indicado para a leitura crítica de determinadas fontes históricas. Há, portanto, várias possibilidades. Por fim, importa, ainda, assinalar que a partir da leitura dessa obra (para os leigos), o historiador Roger Chartier, deixa de pertencer ao corpo exclusivo dos teóricos que oferecem poucos meios de operacionalizar a pesquisa em história cultural; deixa de aparentar um intelectual apolítico. Com esse livro, as reflexões sobre a história promovidas por Chartier quebram o "senso comum acadêmico" conservado em torno de sua obra, como estudo "solto no ar", da "representação pela representação", que conduziria a um extremo relativismo, anulando qualquer possibilidade de "leitura do real". Desmontadas tais noções, a contribuição de Chartier para a história cultural passa a ser objeto de uso de uma comunidade mais ampla de intelectuais.
Textos citados
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929/1989): a Revolução Francesa da historiografia. 2 ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. 2 ed. México: Fondo de Cultura Economica, 2000.
_____. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ROCHE, Daniel. [Entrevista]. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Trabalho de final de curso, apresentado pelo aluno Itamar Freitas ao Seminário Temático História Cultural e da Educação, ministrado pela prof.ª Dr.ª Marta Maria Chagas de Carvalho. São Paulo, PUC-SP, 2002.
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