“A historiografia sergipana está atravessando uma fase promissora. A assertiva pode ser facilmente comprovada em face do valor e repercussão de alguns trabalhos recentemente aparecidos, do interesse pela pesquisa regional, da metodologia haurida na Universidade, da organização do Arquivo Público do Estado e da descoberta do valor de velhas cidades como São Cristóvão e Laranjeiras.” Com essas palavras o historiador José Calazans iniciava o prefácio de História de Sergipe a partir de 1820 de Maria Thetis Nunes, em 1975. Hoje, vinte e seis anos após, prazerosamente, também podemos iniciar os comentários da continuação dessa mesma obra, explicitando que vivemos um novo período de euforia na historiografia local. Os indicadores de um salto quantitativo e qualitativo são, ainda, o lançamento de obras de relevo sobre a política, a cultura, economia, didáticas entre outras, a multiplicação dos arquivos públicos, a especialização do corpo docente, a duplicação do número de alunos do Curso de Licenciatura em História da UFS e a produção de quase uma centena de monografias sobre Sergipe nos últimos cinco anos.
Mudanças no objeto, renovação teórico-metodológica e de quadros humanos, como as que observamos no intervalo entre os dois lançamentos, estabelecem as condições ideais para examinar como os historiadores reescrevem a historiografia (Reis: 1999, 11). O caso de Sergipe Provincial, lançado em abril de 2001, é exemplar, pois trata-se de uma reescrita produzida pelo mesmo historiador. Cabe aqui, então, a questão fundamental: o que teria mudado na escrita produzida pela professora Thetis sobre a experiência sergipana do período provincial? Em primeiro lugar, o próprio título: de História de Sergipe a partir de 1820, que denotava um certo descompromisso em recortar o tempo na longa duração, migrou para Sergipe provincial I, marco de mudança jurídico-política em relação à experiência colonial. Em seguida, o próprio elemento textual. Os sete capítulos que abrangiam o período 1820/1831 ganharam mais três segmentos que enfecham uma década. Mas as idéias centrais permaneceram. A história provincial de Sergipe é narrada a partir das transformações políticas ocorridas no intervalo 1820/1840 tendo como eventos de relevo as ações dos presidentes da província, os conflitos de classe, e a repercussão dos acontecimentos de caráter “nacional” em Sergipe.
Para tratar dos sucessivos governantes, a autora utiliza-se de uma “grade diplomática” que descreve as realizações mais significativas de cada administração, o clima político imperante (conflitos intraclasse dominante, situação partidária) e o relacionamento do presidente com os líderes locais. Acerca da repercussão dos fatos “nacionais” em Sergipe como a Independência, Confederação do Equador, Abdicação de Pedro I, o Ato Adicional e a Regência, suas conclusões são mantidas e continuam sendo utilizadas pelos pesquisadores locais, dentre as quais destacaria: as causas da emancipação de Sergipe em relação á Bahia (prosperidade econômica da Capitania e reformas administrativas da Coroa), a participação dos sergipanos e a importância de Sergipe para o processo de Independência do Brasil (tropas, dinheiro e víveres), e a desmitificação do herói Labatut. Se bem que poucos são os alunos que ainda associam Labatut à experiência emancipatória sergipana, nem Labatut nem qualquer outro mito, infelizmente. O objeto de trabalho, como vimos, não sofreu alterações significativas. As primeiras décadas de Sergipe provincial continuam sendo vistas da mesma forma que há vinte e seis anos atrás: um longo desfilar de choques entre os donos do poder influenciados pelos fatos que marcaram a vida nacional (parafrazeando C. Prado Júnior e R. Faoro, bastante referenciados na obra em foco).
Sob o ponto de vista teórico metodológico, pequenas mudanças são operadas. No ano 2000, em conjuntura favorável (creio) autores como Plekhanov e Georg Lukács (e a noção de “totalidade”) já podem ser citados, sem restrições, colocando as transformações na estrutura econômica da sociedade como o determinante da história e da escrita sobre essa história. Apesar das escolhas de Thetis Nunes há uma quase ausência de informações sobre as relações de produção em nível local e o salto imediato para a temática das instituições jurídicas, políticas e os modos de conceber a cultura (no sentido de educação e arte). Esvaziado das questões “sócio-econômica” e “econômico-financeiras” o texto se adensa com os acontecimentos que moveram a experiência política do nacional e, fatalmente, repercutiriam na vida sergipana, transformando-se numa escrita sobre os eventos político-administrativos. Um outro ponto a destacar é que a idéia de totalidade parece indicar, puramente, uma relação de causa e efeito entre o “todo” e as “partes”. Daí então surge a seguinte pergunta: não haveria possibilidade de vida inteligente fora dos “quadros de ferro” da política nacional? Trabalhos recentes sobre a experiência republicana em Sergipe têm demonstrado o inverso: a experiência “periférica” esboçou projetos diferenciados e em alguns casos, condicionou a experiência “do centro”.
As escolhas do modelo explicativo também interferem na utilização da “tábua de valores” do historiador sobre a documentação reunida no novo livro. Para Thetis Nunes, o julgamento faz parte do ofício do historiador e o exame dos atores e acontecimentos é mediado por alguns cânones iluministas bastante recorrentes em outros títulos da mesma autora. Uma noção de história e, talvez, uma postura perante a vida: a idéia de que o conhecimento (científico) liberta o homem da sua incivilização e é o todo-poderoso responsável por seu bem-estar espiritual e material. Assim, em Sergipe Provincial I desfilam gananciosos e prepotentes donos do poder, mas também os políticos “cultos”, de visão “esclarecida” e administrações “progressistas”. Em vista disso, a história provincial de Sergipe fica indiretamente representada como uma luta do “progresso” contra o atraso, da ilustração contra o despotismo e a mesquinhez. Nesse embate, assembléias e câmaras são cenários privilegiados. Volta-se o olhar da historiadora, em muitas ocasiões, para a cadeira dos administradores/legisladores. Como resultado, o fruto das “contradições” (insurreições escravas e indígenas, por exemplo), curiosamente, passa ser visto como um “problema” de governo bem ou mau resolvido, ainda que hoje, bem sabemos, tanto em termos de postura de vida como modelo explicativo da historiografia, essa aposta iluminista não possa ser levada ao pé da letra. O conhecimento por si só, não é tudo. Nem para os mais pobres. E uma mente iluminada não consegue atuar com sucesso sobre a estrutura social bárbara sem que antes obtenha algum consenso entre os “incultos” (o próprio texto dá mostras desse fato).
Essas poucas comparações entre a obra inicial e a sua “continuação” dão mostras de que a historiografia produzida pela professora Thetis parece ter estado dentro e à margem da historiografia universitária nessas três últimas décadas. Após a leitura, tem-se a impressão de que a historiadora, por ato voluntário, resolveu praticar o ofício isoladamente (em relação aos pares da terra). É espantoso o arsenal de fontes por ela (e somente por ela) reunido. Em Sergipe Provincial, assim como na edição anterior, há transcrições de documentos seminais para o conhecimento do século XIX ainda não suficientemente trabalhados pelos historiadores locais (memoriais, descrições, apontamentos histórico-topográficos entre outros), boa parte desses, “descobertos” pela autora na Biblioteca Nacional, nos arquivos Público da Bahia e do IHGB. Isso lhe permite, inclusive, desprezar um importante livro de história sobre a produção e consumo de bens materiais no século XIX, Sergipe: fundamentos de uma economia dependente, de Maria da Glória Santana Almeida. Por outro lado fornece aos demais historiadores as possibilidades de produzir outra versão da história sobre o mesmo período. Uma prática mais que profissional, um gesto de nobreza. Observado sob o signo da mudança em um quarto de século, e, principalmente, por isso mesmo, pode-se concluir que Sergipe Provincial I, “permanece” obra clássica para a compreensão do passado sergipano. Deve ser lido, sobretudo, pelos novos historiadores (um tanto afastados das pesquisas sobre o século das “Independências”). Aguarda-se, agora, a segunda (ou seria a terceira?) parte da obra com a certeza de que a historiografia já está muito mais rica e a história sergipana menos desconhecida.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Ecos da História pátria. Informe UFS, São Cristóvão, p. 04-04, 10 abr. 2003.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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