domingo, 20 de abril de 2003

O recado das elites

Em novembro de 2001, a imprensa sergipana veiculou denúncias sobre a desregrada utilização de verbas publicitárias do governo do Estado e o enriquecimento ilícito de profissionais da comunicação, apontando, entre outras coisas, para uma relação bastante incestuosa entre políticos (com e sem mandato), empresários e jornalistas. Tais práticas, que ganharam o conhecimento público, sobretudo, através dos documentos divulgados no Cinform, foram recentemente anunciadas pela jornalista Kátia Santana, quando analisava alguns dos desafios enfrentados pela imprensa brasileira. Dizia a autora que, “além das restrições impostas pelo dono do veículo de comunicação, existem ainda as transações feitas entre muitos profissionais com os órgãos oficiais, onde o grande pacto é permitir – ou se for o caso, barrar – a divulgação de matérias favoráveis aos chefes dos Poderes públicos. Isso justifica a manutenção de editores, repórteres, diretores e radialistas figurando nas folhas de pagamento de setores governamentais...” (p. 98-99). Declarações desse tipo passaram despercebidas pelos leitores da terra, assim como os demais assuntos tratados por Kátia Santana em seu livro Ecos da política: uma retrospectiva histórica do processo político de Sergipe – 1982 a 2000 (Aracaju: Instituto Desenvolver, 2001). É exatamente sobre o valor da obra e a sua repercussão na própria imprensa que gostaria de comentar.
Ecos da política é apresentado como “um painel sobre a situação política de Sergipe”, construído a partir da “exposição sobre os fatos que estilizaram cada uma das cinco administrações estaduais” (Augusto Franco, João Alves, Antônio Carlos Valadares e Albano Franco). Quinze capítulos narram os processos de sucessão no executivo, algumas realizações e os escândalos que envolveram cada governo. A experiência política é fartamente caracterizada por desilusões, desprezos, divórcios, massacres, encantamentos, desistências e mitificações, enquanto os atores são representados como o burguês, o gladiador, alcoviteiro, mão de ferro, desorientado, clarividente, vendedor de ilusões, entre outros cognomes. Após a conclusão, trinta e cinco reproduções fotográficas retratam os referenciados em diversas situações-limite (acordos, prisões, stresse, choro, comemorações etc.). Esse é o espírito dominante da narrativa sobre a política local: um texto que oscila, desde a introdução, entre uma “ampla reportagem” (15) e uma “reprodução” da história que busca descobrir “parte de um mundo até então desconhecido e impenetrável pelos simples mortais cidadãos” (16).
O tema em si, desprezando-se até os objetivos da obra, já suscitaria grande interesse, tanto dos protagonistas da história (os políticos retratados), quanto dos formadores de opinião (os próprios jornalistas que cuidam da política). Mas o discurso de Kátia Santana não parece ter ecoado o suficiente na imprensa sergipana. Do pouco que se comentou nos jornais, há pequenos reparos em relação a datas, cargos e sobre o papel exercido por um personagem lateral na história. Nos bastidores, ao contrário, o livro tem sido criticado por jornalistas e políticos, principalmente, por cidadãos cujos nomes são citados no livro e associados a fatos nada edificantes. Políticos e jornalistas têm muitas razões nas críticas veladas. Entretanto, não cabe fazer-lhes a defesa, mas indicar o valor de Ecos como obra que se pretende uma narrativa imparcial de processos decisórios, envolvendo a vida de milhares de sergipanos. Sob esse ponto de vista, o livro apresenta muitas fragilidades.
Como “ampla reportagem”, é o trabalho excessivamente fragmentado, disperso e impreciso. Os quinze capítulos consomem apenas oitenta e sete páginas. Há um segmento subdividido em doze tópicos, assemelhando-se aos tradicionais boxes formatados nos jornais (cap. V). Os temas são distribuídos desequilibradamente, em se tratando de espaço ocupado no livro. A seqüência administrativa do executivo estadual, por exemplo, ocupa as quatro primeiras partes, e as nove restantes enfocam os acordos, desistências, eleições de personagens conhecidos  e incorporam uma miscelânea de assuntos que vai do biografismo às previsões sobre o quadro político em 2002.
Como narrativa histórica, o livro carrega um problema crônico: não há um fio condutor (ou fios condutores) e nem modelo explicativo, ou seja, os Ecos da política carecem de interpretação, requisito fundamental para quem se propõe a julgar e a “dar lições” sobre a história dos sergipanos. Na ausência desse atributo, fica sem resposta um grande problema: quem “faz a história” política é verdadeiramente o “homem iluminado”, o honesto ou o bem intencionado? Não haveria nenhum outro fator a interferir nesse processo? Qual o papel do leitor na manutenção do regime democrático? Outro problema a destacar é que não há indícios de uso de grande parte da bibliografia citada (G. Amado, A. Bittencourt, T. Oliva, I. Dantas – 1983 e 1989). E mais grave, ainda, uma referência fundamental para o entendimento da formação do campo político atual – A tutela militar em Sergipe (Ibarê Dantas, 1997) – sequer foi relacionada no final do livro.
Um ponto importante na obra de Kátia Santana é o reconhecimento de que “a imprensa deu grande contribuição ao desvirtuamento da informação” (16). Talvez, por isso, tenha se negado a “apresentar uma interpretação pessoal” (16) do que leu, ouviu e presenciou, ao longo da sua atividade jornalística. Entretanto, os indícios da parcialidade são explicitados no momento em que atribui valores aos feitos ou aponta caracteres da personalidade dos retratados. É no mínimo deselegante referir-se aos protagonistas como “dublê de empresário”, “negro tímido” (88), reproduzir denominações depreciativas, como “Nojeira” (56), até mesmo em relação a segmentos da população como “mauricinhos e patricinhas da city” (88), que também têm direito ao voto. Há exemplos, em sinal invertido, quando dispara uma seqüência positiva em relação ao personagem Jerônimo – “a força que ecoa do interior”: moço bonito, de gestos afáveis que distribui atenção e articula como um corisco, vivo, perspicaz e habilidoso (104).
É certo que não se pode julgar uma obra de História e mesmo o trabalho jornalístico apenas pela maior ou menor quantidade e exatidão das notícias que oferece (Croce, 1992), mas o excesso de equívocos e a falta de objetividade podem levar ao problema da parcialidade e transformar a obra em panfleto. Não é indicado, por exemplo, reduzir a ação administrativa dos governadores a lugares comuns, tipo: Augusto Franco “foi o governador que mais realizou obras em Sergipe” (19); “A venda da Energipe foi o único fato que movimentou a sua administração [de Albano Franco]” (41); “João... se torna um administrador politicamente bem equilibrado, embora, administrativamente, o seu governo esteja em fase caótica” (28); o interventor Antônio Militão, que nada fez” (35). Ora, quais os significados para equilibrado, caótico, fazer mais etc.? A demonstração de equilíbrio da autora (em situação ideal) estaria na apresentação de indicadores sobre as administrações e na comparação dos seus resultados. O que importa nesse tipo de análise “é saber o que fez com os meios de que dispôs. Esse é o limite do jornalismo, para não dizer da atividade honesta. Daí por diante é política, para não dizer mais.” (Freitas, 2001). Algumas imprecisões chegam a incomodar por se tratarem de fatos bastante conhecidos e dificilmente passariam pelo crivo dos revisores da obra, tais como: “Augusto [Franco]articula para que o senador Gilvan Rocha entre no páreo para derrotar João” (23); “convenção do PMDB em 2000” (60) etc.
Certo é, também, que não se deve criticar uma obra jornalística ou de História como literatura ou eloqüência (Croce, 1992), mas algum zelo com o vernáculo é imprescindível. Assim, uma próxima edição de Ecos da política teria forçosamente que eliminar problemas de ortografia – dar cobertura a manifestação (34); concordância nominal – ovos mexido (60), capítulos... alteradas (15), eleições... direta (22); concordância verbal – líderes que contrapunha; impropriedades vocabulares, como: fatos deletatos (15), fatos que estilizaram (16), que as acusações não desmoronem o seu governo (28), pagamento na boca do caixa (37), Valadares põe fim à lua-de-mel com JB (35); e construções esdrúxulas, como: Valadares “avisa que os insatisfeitos peçam demissão que o governo paga seis meses de salário com se estivessem trabalhando normal” (33).
Apesar dos senões, Ecos da política traz importante contribuição à minúscula sociedade de consumidores de livros sergipanos. Em primeiro lugar, Kátia Santana registra o trabalho dos jornalistas, livrando parte da nossa memória da condenada morte súbita, que é a publicação em periódico diário. Em segundo lugar, a matéria reunida em livro sobre acordos, trajetórias e rupturas ganha fôlego na memória desses ledores, distanciando-se do descarte presumível, provocado pela sucessão de escândalos que estamos presenciando. Ecos da política também contribui decisivamente para o processo democrático quando externaliza estratégias de construção de auto-imagens e as práticas de formação da opinião “pública”, apontando os interesses dos detentores do poder econômico, dos que se fazem representantes do povo e dos profissionais veiculadores da informação. O maior exemplo dessa virtude está no corajoso anúncio sobre o conjunto de reuniões que resultou no acordo entre Albano Franco e Jackson Barreto nas eleições de 1998. Todavia, se, nos mecanismos de comunicação, “não há opção para editores e jornalistas que são obrigados a dizer, exatamente, o que os seus patrões desejam” (98), um problema retórico permanece insolúvel: a quem interessariam os ecos dessa política que acabou de ser narrada? Seria o anúncio autorizado de que não há caminho alternativo à tradição mandonista em Sergipe?

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O recado das elites. Informe UFS, São Cristóvão, p. 04-05, 20 abr. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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