domingo, 24 de agosto de 2003

O sergipanismo do historiador Sebrão sobrinho (1898/1973)

A historiografia de Sebrão sobrinho – sobrinho com “s” minúsculo, como nos ensina Vladimir Carvalho – é veículo e instrumento de conformação da identidade sergipana. É uma tentativa de criar tradição, um passado unificado para a pátria de Tobias Barreto. E, como a identidade pressupõe a diferença, em Sebrão, notadamente em seus Fragmentos da História de Sergipe (Aracaju: Regina, 1972), a alteridade personifica-se no vizinho estado da Bahia. A “mulata faceira” é o nosso outro. Sob esse aspecto, o autor radicaliza, ainda nos anos 1970, o discurso fundador da primeira geração de historiadores do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Ele sugere que a experiência da formação social sergipana é, por assim dizer, o roteiro da espoliação dos baianos sobre os habitantes da antiga capitania de Francisco Pereira Coutinho – Sergipe.
Mas, como esse discurso unificador é construído? Sebrão ensina: é preciso reler a documentação cartorária, estudar a etimologia da toponímia local, elaborar genealogias e dissecar os textos de cronistas e historiadores. Todo esforço é válido para sustentar a seguinte tese: o que é da Bahia é de Sergipe, e o que é de Sergipe se integra à Bahia. A Bahia tem a chave para a compreensão de muitos acontecimentos da história local, a começar pela origem do nome “Sergipe”. Diz o autor: “Mem de Sá, que não pôde conquistá-lo, como o fizera à póstera ilha de Villegagnon, lhe dera o nome de Sergipe, em homenagem a seu engenho real [localizado na Bahia] (p. 278); “Sergipe já era denominação do rio baiano, que banha o recôncavo da Mulata Velha” (p. 31). O complemento del Rei fora acrescido para diferençar o nosso Sergipe do Sergipe do Conde (o conde de Linhares, D. Fernando de Noronha, o primeiro marido de D. Felipa de Sá, filha de Mem de Sá). Essa dívida com a Bahia, não poderemos esquecer jamais, afirma Sebrão.
Além do batismo, também os primeiros sinais da sergipanidade estão ligados à experiência baiana. A identidade sergipana manifesta-se freqüentemente como reação à cobiça do vizinho sobre as riquezas do lado de cá. Nos Fragmentos, Sebrão registra todo o seu incômodo em relação a esse outro. Em primeiro lugar, enfatiza que coube aos habitantes locais a repressão aos franceses das costas sergipanas. A esses também se devem os méritos pelo início da derrota holandesa em termos de Brasil. E o que nos devolve a Bahia? Responde Sebrão: a cobrança constante dos impostos sobre o gado; o descaso com a recuperação da economia local e com a reedificação da cidade de São Cristóvão; o esquadrinhamento policial da capitania de Sergipe sob o pretexto de prear índios e combater quilombos; a extração de dinheiro e gado para equilibrar as contas da nobreza e saciar a fome na Bahia; a extração de braços armados de Sergipe para minimizar o temor baiano de uma possível invasão holandesa.
Por esses exemplos, vê-se como Sebrão despreza a historicidade das duas formações – Sergipe e Bahia – “misturando” as proveniências do nativo sergipano do período colonial e confundindo a sede do Estado português do inexistente Brasil com a entidade Bahia, que só parece ganhar a forma atual após a perda do status de base geográfica do poder central para o Rio de Janeiro.
Mas, essa atitude tem suas razões. Ressaltar a cor local exige sacrifícios. Um deles é justapor a ciência dos fatos – a História – à essência das coisas – a identidade. Esse esforço de transformar História em memória levará Sebrão a divulgar algumas teses, no mínimo, curiosas: 1) que os nascidos em Sergipe foram os primeiros a experimentarem o ofício de bandeirante. Foi  no atual território que o Governador D. Francisco de Souza garimpou em busca das minas de prata (1591/1602) de Belchior Dias Moréia; 2) que Sergipe já foi sede do poder central no Brasil. O mesmo D. Francisco bandeirante elevou a região à capitania régia. E o fez “para nela sediar o Estado do Brasil, enquanto estivesse “cavocando” a serra de Itabaiana; 3) que o “dois de Julho” é uma efeméride tão baiana quanto sergipana, posto que a derrota impingida aos portugueses foi viabilizada com suprimentos e homens sergipanos; 4) que Sergipe possui a mais antiga instituição musical do Brasil: a Filarmônica Nossa Senhora da Conceição (de Itabaiana, é óbvio).
Da proeminência factual, diante da História do Brasil, passa Sebrão à natureza do sergipano que, por sua vez é lapidada pela ação do professor: “o sergipano tem a bondade do baiano e a sizânia do alagoano de Pernambuco. Reparte-se entre o riso, a gargalhada inteligente e o esgar sanguinário, medeiando-os com qualidades congênitas, mesológicas, habilmente cultivadas pelo mestre-escola, representado pelo padre secular, pelo tabelião público ou por outro letrado qualquer, licenciado em letras forenses como advogado e, fora da rabulice, professor” (p. 53).
Essa “bondade do baiano” é apenas uma rápida concessão do sergipanismo desse autor. A Bahia é mesmo o nosso outro, um diferente ameaçador. Para se ter idéia dos limites da inventividade (freudiana?) de Sebrão, observemos essa passagem onde ele narra o processo de redução progressiva – de Itapoã ao rio Real – do território sergipano, um dos maiores crimes cometidos pela velha mulata: “Cara madre, madre incestuosa, não tendo valor para impor medo a Sergipe, rebelde a todo açaimo, saberia estonteá-lo em suas carícias fesceninas e, em danças nos rios, comeria todas as terras. Iniciara a [geofagia] das latifundiárias terras do filho e amante nos banhos do rio limítrofe entre a Mãe e o Filho, entre a Mulata Velha e o Índio, o Itapoã. Dali, ela o levaria num pisa-pisa de cateretê ao Subauma. Levando-o pela mão, ao chegar ao Itapicuru, o garoto saltou na corrente e a Mãe pulou nas costas. Seguiram para o rio Real, onde ela lhe deu formidável rasteira que quase o galaceava, afogando-o, mas ele conseguiu desvencilhar-se-lhe, que o queria todo devorado. Mais terra degluteria de Sergipe a Bahia, se não tomasse o feliz alvitre de esconder-se dela”. (p. 275).
Essa semana, Sebrão virou notícia. Pelas mãos do historiador Vladimir de Souza Carvalho, veio à lume mais uma parte da sua obra dispersa em vários jornais sergipanos. Fragmentos de histórias municipais e outras histórias (Aracaju: Instituto Luciano Barreto Júnior, 2003) trata da experiência sergipana circunscrita aos municípios de Itaporanga, Rosário do Catete, Carmópolis, Simão Dias, Lagarto, Estância, Itabaiana, Ribeirópolis, Frei Paulo e Neópolis. São mais de quatrocentas páginas, contendo os originais de Sebrão, anotados por Vladimir, produzidos a partir da década de 1940. O livro traz fotografias do historiador itabaianense em vários momentos da vida. Apresenta, inclusive, um flagrante do seu sepultamento em 1973. Observando essa imagem, penso que Sebrão, sobrinho jamais imaginaria que os grandes intelectuais da terra estariam reunidos no Instituto Luciano Barreto Júnior, trinta e um anos depois de lançados os Fragmentos da História de Sergipe, para adquirir um exemplar dos Fragmentos da História dos municípios. Quem ainda não adquiriu o livro e perdeu o prestigiado lançamento da quinta-feira, pode ainda contar com o autógrafo do organizador no próximo dia 27, quando o livro será lançado em Itabaiana. Da minha parte, vou prosseguindo com a leitura da obra que, certamente rendará mais tintas sobre as – por enquanto – curiosas teses defendidas na primeira metade do século passado.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O sergipanismo do historiador Sebrão Sobrinho. A Semana em Foco, Aracaju, p. 8 B-8 B, 24 ago. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

Nenhum comentário:

Postar um comentário