Anteontem, pelas nove horas da manhã, quando se preparava para sair aos seus labores quotidianos, caiu fulminado por uma síncope cardíaca o estimado sr. Luiz Carlos da Silva Lisboa, lente do Atheneu Sergipense, onde lia a cadeira de Geografia Universal.Assim, há cem anos, noticiava o Jornal de Sergipe (24/05/1903) a morte desse funcionário público que também ocupou os cargos de Secretário de Governo, Promotor Público de São Cristóvão, Presidente do Conselho Municipal de Aracaju e Secretário da Diretoria Geral da Instrução Pública de Sergipe.
A despeito de tantos predicativos, Silva Lisboa não consta entre os representantes da elite intelectual recolhida por Armindo Guaraná em seu renomado Dicionário (Cf. Guaraná, 1925; Horta e Lennon, 1976). Por qual motivo? Critérios. O fato de não ser nascido em Sergipe pode tê-lo afastado dessa obra monumental e também da memória dos pósteros. É que o Lisboa era baiano. Desterrara-se para as bandas de Sergipe ainda moço, às vésperas da fundação do Atheneu, onde mais tarde lecionaria as matérias inglês e geografia. Viera “em busca de viver mais cômodo” (Almanaque Sergipano, 1904) ou, quem sabe, à procura de um grande amor, sua “distinta parenta” Izabel Augusta Villas Boas, com quem se casou a 2 de julho de 1870 e de quem ganhou sete filhos.
Somente os filhos não justificariam o registro da sua morte. Outras crias, em papel e tinta, vincariam a passagem do professor entre os intelectuais do final do século XIX: os romances de costume, os livros didáticos e os artigos em periódicos locais (cf. RIHGB, 1908; Silva, 1920). Foram muitos os produtos, mas de todos os trabalhos do Lisboa, nenhum deve ter repercutido tanto como a Corografia do Estado de Sergipe, o primeiro livro didático da matéria cuja adoção nas escolas públicas fora autorizada pelo Estado em 1896. Às vésperas do lançamento, vamos encontrar o professor no auge do prestígio, é bem provável, com seu “Curso de Preparatórios” instalado à praça Mendes de Morais. Silva Lisboa também lecionava aos particulares, “com métodos aperfeiçoados, segundo os princípios pedagógicos modernos”, dizia o reclame (Diário Oficial, DATA? 1896).
Em 1897, porém, a situação era bem diferente. Não bastou o parecer favorável à obra, emitido pelo Conselho Superior da Instrução Pública, tampouco as cento e setenta e cinco páginas por onde informava sucintamente sobre a parte física (limites, relevo, hidrografia...), a parte política (divisões administrativa, eclesiástica, representação política...), e a topografia do Estado de Sergipe (as cidades, sua economia e equipamentos urbanos). A Corografia do Lisboa foi consumida e triturada vorazmente por Manuel dos Passos de Oliveira Teles, nada menos que o tradutor de A Geologia Cretácea e Terciária do Brasil, J. C. Branner, livro esse que veio a público sob a direção de Laudelino Freire.
“Corografia de Sergipe”, ensaio crítico publicado em Sergipenses (1903), foi o calvário de Silva Lisboa e a cruz de Oliveira Teles: “Lisboa errou: errou como tomamos como uma cruz o empenho de salvá-lo” (Teles, 1903, p. 116). O salvamento constituiu basicamente em apontar as deficiências do professor Lisboa no domínio dos conceitos da ciência geográfica; na incompreensão do funcionamento psíquico do “infantil” e na falta de método de pesquisa e de exposição dos fenômenos corográficos. Perto de cinqüenta imprecisões e erros crassos na matéria são apontados por Oliveira Teles, quase sempre de forma irônica. Os comentários do analista resultaram, indiretamente, na confecção de uma outra corografia. Ao final do ensaio, o golpe de misericórdia: “Nada mais diremos da parte topográfica, onde decerto abundam outros defeitos aos centos” (idem, 1903, p. 138).
A crítica de Oliveira Teles é primorosa fonte sobre a instituição intelectual de lugares e competências naqueles tempos de poucos limites entre os saberes e especialidades escolares, a exemplo da Corografia e da Geografia. De um lado, o funcionário público de formação secundária, mais empenhado com as lutas eleitorais e menos com a observação e experimentação científicas; sequer chegou Lisboa ao diletantismo, fustiga o crítico socorrense. Do outro, o bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, discípulo de Tobias Barreto, consumidor de autores traduzidos por Capistrano de Abreu como Wappoeus e Sellin, e do premiado manualista bandeirante Alfredo Moreira Pinto. Teles estava, sobretudo, empenhado na construção da disciplina escolar pelo seguro caminho da transposição didática.
Não coincidentemente, vem à lume, no ano seguinte, o Quadro Corográfico de Sergipe, do então parceiro de Oliveira Teles, Laudelino Freire, obra chancelada pelo conhecido pesquisador dos assuntos histórico-geográficos brasileiros, o Barão do Rio Branco. Assim, em espaço de dois anos apenas, Sergipe ganhava “três” obras de Corografia destinadas às escolas públicas e deixava mal aparados os fios que permitiriam aos pesquisadores do século XXI alguns avanços no conhecimento sobre a história do ensino de Geografia e Corografia, e do estado-da-arte da ciência geográfica no início da primeira República.
Quem matou Lisboa? Se a proveniência baiana, se as escolhas político-partidárias, se a inabilidade com as formas didáticas ou a incúria com o pensamento geográfico, ainda não o sabemos. Mas, já se sabe quem poderá lançar luzes sobre a sua obra, problematizando possíveis transposições entre o saber erudito e o saber escolar na seara da Geografia. Trata-se da mestranda Vera Maria dos Santos, de quem aguardamos a dissertação no decorrer desse 2003. Será uma bela coincidência esse cruzamento proporcionado pelo acaso histórico dos centenários aqui registrados: o do lançamento de Sergipenses (1903), onde está inserto o ensaio de Oliveira Teles, e o centenário da morte de Luiz Carlos da Silva Lisboa (22/05/1903), o primeiro autor de livro didático sobre a corografia de Sergipe.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O calvário de Silva Lisboa. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 07 set. 2003.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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