Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus. Laranjeiras-SE, 2008. |
O que tinha de tão nefasto nessa tese? O trabalho respondia a uma questão posta pela Faculdade: quais eram, no entendimento do acadêmico, as funções desse órgão superior chamado cérebro? A resposta de Cabral obedeceu aos seguintes movimentos: 1. exposição das experiências dos fisiologistas europeus – e até das concepções de filósofos da antigüidade a psicólogos do século XIX; 2. crítica e comparação dos resultados; 3. conclusão sobre o problema apresentado; e 4. refutação dos argumentos – metafísicos, sobretudo – em contrário. A conclusão, sob o ponto de vista da fisiologia e de suas ciências auxiliares, foi a seguinte: “sensação, movimento, pensamento, sentimento, encontramo-los nós como propriedades dos elementos cerebrais: a alma porém, não, nem lhe encontramos vestígios aí”. (Cabral, 1876, p. 212).
Ora, a sentença peremptória não significava pouco para a mentalidade de acadêmicos e homens comuns de 1876. A alma que, segundo os filósofos, já havia secularmente viajado pelo coração, peito, sangue, sistema nervoso, glândula pineal, pela água contida nas cavidades cranianas e, finalmente pelo cerebelo, simplesmente não morava mais no cérebro! “Para encontrá-la aí, fora preciso primeiro procurar a fé. E a fé reside num ponto do cérebro inacessível à ciência”. (idem, p. 104).
Isso desencadeava uma importante conseqüência. Se a alma não morava no cérebro, as faculdades intelectuais – sentimento, movimento, entendimento e vontade – passavam a ser entendidas como atividades fisiológicas sob a responsabilidade exclusiva desse órgão. Nada de metafísico poderia explicar como e por que nos apaixonamos, pensamos, e aprendemos, por exemplo.
A tese não discutia sutilezas da fisiologia. Cabral era um cientificista radical: cultor da idéia de que o espírito e os métodos científicos deveriam estender-se a todos os domínios da vida intelectual e moral, sem exceção. (Cf. Zaragüeta, 1955, p. 413). Para ele, instituir a ciência positiva em lugar da metafísica significava, efetivamente, oferecer um novo mundo aos “desprotegidos” e aos “ignorantes”.
Dessa forma, o que a sociedade via como “perverso” e o Direito como “criminoso”, a ciência chamaria “doente”; onde o catolicismo classificava como “diabólico” e os espiritualistas a “impossibilidade de manifestação do Eu psicológico”, a ciência explicava em termos de desarranjos anatômicos ou desvios fisiológicos. Seria o fim dos exorcismos, das penitenciárias, masmorras e patíbulos, pregava Guedes Cabral. Triunfando a ciência positiva, viveríamos sob o domínio da “mão sábia do mestre e da droga farmacêutica”. (Cf. Cabral, 1876, p. 212-213).
O tempo passou e as suas teses ganharam registros na historiografia sobre as idéias no Brasil. Agora que história da psicologia também expande o seu olhar “para o âmbito dos estudos médicos e psiquiátricos, da religião e da reflexão política” (Cf. Campos, 2001, p. 19-22), penso que também não seria inoportuno reservar ao Guedes Cabral uma página da próxima edição do Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil (Rio de Janeiro: Imago, 2001), onde já têm lugar os sergipanos Silvio Romero e Manoel Bonfim.
Como aperitivo psicológico, segue abaixo uma mostra das idéias defendidas pelo autor. “Clorofórmio e alma” é parte de um escrito – “Cérebro e alma” – anunciado na tese como publicação futura. O texto é uma pérola em estilo – nisso não difere da tese. Foi publicado no Almanaque Literário de São Paulo (1884, p. 20-21), e é provável que tenha posto a pequenina Laranjeiras, pela primeira vez, nas residências dos leitores liberais republicanos da paulicéia.
O clorofórmio e a alma
Inúmeras vezes tenho empregado o clorofórmio em meus doentes. De cada uma delas, antes de levantar o instrumento cirúrgico, paro a refletir sobre um grande fenômeno que ali se passa.
Sim, eu tenho diante de mim um importantíssimo fato; uma coisa que mereceria toda a atenção dos que consideram o homem uma dualidade.
Ali, sobre a mesa operatória, mudo, imóvel, o cadáver.
Não é o homem, por certo; nem é o cadáver.
Aquilo está vivo; mas não tem evidentemente alma. Seu estômago digere, seus pulmões respiram, seu coração bate. Mas não tem movimento, nem sentimento, nem entendimento, nem vontade.
Qual foi, entretanto, o fenômeno físico-patológico que ali se passou?
Aniquilou-se porventura o órgão-instrumento-da alma? Está o cérebro destruído, lesado?
Não. Se podésseis impunemente ali, como se verifica na análise necroscópica, abrir a caixa óssea, vê-lo-eis em toda a integridade de sua estrutura e de sua posição natural. Células, tubos, cilynder-axis, capilares, tudo ali está: seios, cavidades, circunvoluções, nada saiu de suas posições normais. O cérebro está intacto: apenas não funciona. Eis tudo.
O que se suspendeu, portanto, ali foi só o mecanismo: o que fez a ação do anestésico foi abolir apenas a função.
Mas, essa abolição o que é em suma?
A cessação do sentimento, do movimento, do entendimento, da vontade.
Logo, todas estas cousas não eram mais do que a função daquele órgão.
Eu reflito...(sic) E como o trabalho urge, aplico vigoroso o ferro sobre as carnes.
E então, quando o gume da faca ou do bisturi silva sobre os músculos, quando range a serra sobre os ossos, e o sangue espadana daquele cadáver vivo, vivo pelos tecidos, morto pelo moral, – eu quisera ter diante de mim um sábio metafísico para responder-me – o que é a alma.
Guedes Cabral. Laranjeiras – Sergipe (Do Cérebro e alma).
Para citar este texto
FREITAS, Itamar . A alma de Guedes Cabral. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B - 6B, 04 out. 2003.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/alma-de-guedes-cabral.html>.
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