domingo, 19 de setembro de 2004

Procura-se um biógrafo

Parece estranho que, depois de biografar mais de seiscentas vidas brasileiras, o intelectual Armindo Guaraná ainda não tenha encontrado um biógrafo para a sua própria vida.
Há verbetes sobre o homem no Dicionário que leva o seu nome. Prado Sampaio foi o responsável. O extenso discurso de Damião Mendonça de Santana, pronunciado no centenário de nascimento do sancristovense, também fornece dados sobre a sua experiência pública e privada (Revista do IHGS, 1948, p. 31-55). Por esses trabalhos, pode-se notar o quanto Guaraná “mercadejou” por esse Brasil a fora, estudando ou trabalhando no Piauí, Ceará, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Mas, os textos são marcados pelas circunstâncias de produção; vinculam-se ao campo da memória. São encomiásticos, como se dizia no início do século passado. Dão poucas mostras do valor da ação do personagem nos campos do magistério, magistratura, ficção, etnografia, geografia e da escrita da história.
Sobre o autor, com alguma sorte, pode-se também flagrar um comentário do seu envolvimento na política local. É o que fez Vladimir Carvalho (2000) em A República velha em Itabaiana. Guaraná foi apresentado como um tipo ideal da relação pouco racional entre as funções judiciárias e executivas nos tempos da monarquia: “como todos os magistrados da época, [Guaraná] ingressa na magistratura sem concurso público, dependendo apenas de indicação política. (...) Não estavam os magistrados imunes à política partidária, nela se imiscuindo de forma intensa. Armindo Guaraná... não fugiu à regra. Seus artigos... retratam a participação ativa do juiz de direito nos negócio políticos, a ponto de estes virem a público.”
Mais estranho ainda é o fato de ele e (ou) a esposa Maria Luiza terem organizado o material inicial para facilitar a tarefa de seu “futuro” historiador – historiadores e políticos, deliberadamente, escrevem e organizam material visando o futuro. No Instituto Histórico e Geográfico, entre outros documentos, ainda fora de catálogo, estão depositadas as sentenças proferidas pelo magistrado Guaraná, os artigos publicados em jornais, as notas sobre a repercussão da sua obra magna e o Dicionário biobibliográfico, lançado em 1925. Desse material, duas informações me prenderam a atenção. A polêmica sobre a sua colaboração no Dicionário de Sacramento Blake e a produção de uma corografia de Itabaiana.
O primeiro dado trata-se, provavelmente, de mais um capítulo na disputa identitária entre os Estados de Sergipe e Bahia. A história é a seguinte: entre 1883 e 1902, o baiano AugustoVitorino Alves Sacramento Blake publicou o Dicionário bibliográfico brasileiro, que logo se tornou referência no assunto.
Quando se divulgava o sétimo e último volume, publicou-se uma fotografia de Blake acompanhado por Guaraná, identificado este último como colaborador do primeiro. De imediato, o jornal Bahia interrogou a Blake sobre a participação do sergipano Armindo na consecução da obra monumental, ao que o autor respondeu: “igonoro”. Infelizmente, o Vitorino já havia declarado, no terceiro volume, que Guaraná, não somente participara na elaboração de verbetes, como contribuíra para que muitos erros fossem extirpados dos demais.
Essa ingratidão desmedida provocou a intervenção de Manuel Curvelo de Mendonça – outro sergipano – e a polêmica ganhou as páginas do Jornal do Brasil. Guaraná saiu em defesa do seu nome. Publicou testemunhos de José Xavier Pires, funcionário da Imprensa Nacional, e de Silvio Romero. Ameaçou invocar o depoimento de Araripe Júnior, Moreira Guimarães, Laudelino Freire, Olavo Bilac, Ramiz Galvão, Rocha Pombo e de outros tantos intelectuais do Pará, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Como trunfo do seu trabalho, [guardou as provas do livro em disputa]. Mas, a grande vingança viria duas décadas depois. Ele produziu um impresso muito bem referenciado no Brasil em termos de levantamento bibliográfico coletivo, que é o nosso Dicionário biobibliográfico Armindo Guaraná.
O outro trabalho que me chamou à curiosidade no acervo foi a sua “Descrição de Itabaiana”. Pela data de publicação (14 nov. 1886) e estrutura textual pode, certamente, tratar-se da primeira corografia publicada em Sergipe. É trabalho sucinto. Segue de perto o esquema das corografias provinciais e municipais publicadas no século XIX. Diríamos hoje, que se trata de uma descrição física – incluindo-se nesse físico, os aspectos econômicos e sociais – como elementos de história política. Depõe sobre a situação geográfica, sobre orografia, hidrografia, condições de salubridade, riquezas minerais, fauna e flora, equipamentos urbanos – edificações, abastecimento de água etc. – demografia, produção agrícola, pecuária, industrial, comercial, instrução pública, situação eclesiástica, judiciária, além de rendas, distâncias em relação as demais localidades da província e “curiosidade natural” – um lago sobre a serra de Itabaiana.
O tópico “história”, como de costume nas corografias, é bem curtinho: os primeiros ocupantes, a primeira propriedade, a ereção da paróquia, delimitação da freguesia e da comarca etc. Mas, a “Descrição” deixa vazar algo de crítico no espírito de Armindo Guaraná quando se propunha a registrar aspectos da vida coletiva. É preciso captar esse tipo de indício, lembrando sempre que os escritos anteriores a 1891 são ainda mais preciosos. É que ainda não existia a História de Sergipe de Freire.
Penso que um futuro biógrafo de Armindo Guaraná poderá dar novo significado  a esses gêneros bastante comuns no século XIX – a biografia, a corografia – e que foram soterrados, inclusive, pela magnitude da síntese de Felisbelo.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Procura-se um biógrafo. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 19 set. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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